Maria Firmina dos Reis
Úrsula
Dominado unicamente pela ideia de revê-la, o mancebo correu apressadamente, e quase sem descanso, logo que terminou na comarca de *** a missão de que o haviam encarregado, e que tão penosa se lhe tornou depois que conheceu Úrsula; mas Tancredo mal podia prever quantas dores amarguravam a alma da pobre donzela.
Entretanto raiou o dia apetecido, e que devia levá-lo para junto de sua jovem desposada, e nesse dia o coração arfava-lhe, ora com um arrebatamento apaixonado, ora com um triste desassossego, e ele enterrava as esporas nas ilhargas do brioso animal que o conduzia, e redobrava o ardor de sua carreira.
E na sua impaciência a distância parecia-lhe imensa.
— Túlio, – exclamou Tancredo vendo que fugiam as horas – será possível que ainda hoje deixemos de chegar à sua casa?!
Túlio nada respondeu, e parecia não tê-lo ouvido: com efeito, o negro cismava profundamente; porque a aproximação daqueles lugares trazia-lhe mais de uma recordação.
— Não me ouviste, meu bom amigo – continuou Tancredo. – Túlio, quero vê-la hoje, agora mesmo se nos for possível. Ah! Não sabes como a amo... Ela é tão bela... o sorriso nos seus lábios é como a gota do orvalho no cálice de uma flor.
— Túlio, apressemos os cavalos.
— Morreriam, senhor – tornou Túlio arrancando-se aos seus pensamentos.
— Oh! – exclamou Tancredo contrariado – E ela me espera! Parece que lhe escuto o palpitar do coração, que vejo a ânsia com que me aguarda, e ouço-lhe um som queixoso, e um suspiro lhe perpassar pelos lábios, embaciando o vivo rubor, que os tinge.
E então ela chamar-me-á ingrato, e esquecido da minha promessa. Oh meu Deus! ... Túlio, tu não sabes quanto essa ideia me aflige. Demo-nos pressa; tu andas tão devagar!... Ah! Hoje mesmo Úrsula deve ter a seus pés o homem que mais sabe adorá-la sobre a terra.
Túlio também sentia uma vaga inquietação, e esse desassossego, que começava a tornar-se sensível no jovem apaixonado, há muito o tocava ao vivo: é que a cada um deles figurava-se que Úrsula reclamava socorro, que algum pesar a oprimia.
Tancredo amava apaixonadamente a essa menina de olhar meigo e arrebatador; Túlio tinha-a visto no berço, e a sua afeição para com ela era profunda e desinteressada.
Entretanto, tinham já percorrido longo espaço, quando duas estradas se lhes apresentaram à vista.
— Agora – disse Túlio – tomemos a estrada de Santa Cruz; é a que devemos preferir. Daqui à casa de minha senhora temos só meia légua, e a outra dar-nos-á mais que o dobro.
— Louvado seja Deus! – exclamou o mancebo com alegre reconhecimento. – Tomemos a estrada de Santa Cruz. E meteram os cavalos a galope.
— É tão somente para satisfazer a vossa impaciência – tornou Túlio – que propus essa estrada com preferência à outra; ao contrário...
— Por quê? – interrompeu o mancebo ingenuamente.
— Por quê! – repetiu Túlio – porque eu havia prometido a mim mesmo, e às cinzas de minha mãe, nunca mais trilhar esta maldita estrada: porque sentirei pungentes e tristes recordações ao passar pela fazenda de Santa Cruz.
— Espera, – interrogou Tancredo – parece-me que já ouvi falar desse nome. A quem pertence essa fazenda?
— Ao comendador P. – respondeu Túlio gravemente.
— É verdade – tornou o cavaleiro – É do irmão da senhora Luísa B.
— Sim, – prosseguiu o negro com voz amarga. – é desse homem de sangue, dessa fera indômita. Oh! Vós não conheceis o comendador, e vossa alma generosa terá de repugnar em face das barbaridades, que ele pratica cada dia. Implacável é o seu ódio, e a pobre senhora Luísa B. bem o tem experimentado. Pobre senhora! Seu marido foi também um homem cruel; mas a cólera do comendador o seguiu por toda a parte, e Deus sabe... talvez lhe abreviasse os dias...
— Pois quê?! – interrogou Tancredo – Julgas, Túlio, que fosse o comendador o assassino de Paulo B.?
— Não sei, senhor – suspirou o negro. – O comendador nunca procurou justificar-se; e graves suspeitas pesam ainda hoje sobre ele.
Nesse comenos cortavam eles ao meio a situação do comendador, deixando ao nascente a casa de sua residência, bela na aparência, de uma construção sólida, e elegante; porém hermeticamente fechada; e ao poente um longo cercado de pau a pique, no centro do qual erguia-se uma cruz sobranceira: era o cemitério.
Ambos levaram as mãos aos chapéus, e reverentes descobriram a cabeça.
O sol começava já a amortecer seus raios.
A essa mesma hora, também alguém caminhava apressadamente para a casa de Luísa B., e que, como Tancredo, amava cegamente ao lírio daquelas solidões. Esse alguém era o comendador Fernando P.
Fernando P. vinha da cidade de ***, e suas cavalgaduras arfavam de cansaço pela rapidez da marcha. Mas à hora que Tancredo atravessava a fazenda de Santa Cruz, a Fernando P. faltava mais de uma légua para aí chegar.
Ambos caminhavam pois para o mesmo lugar, tinham ambos pressa, Tancredo, unicamente para ver a mulher de suas adorações, Fernando, porque nutria graves suspeitas de que outro lhe seria preferido. Ele começava a sentir no fundo da alma o desassossego mortal do ciúme e da vaidade; mas cônscio do terror que infundia àqueles que o conheciam, cobrava às vezes um pouco de calma e dizia:
— Não é possível! Embora ela o ame, não poderá resistir à minha vontade. E demais onde está agora esse insensato? Na comarca de***, quando voltar tudo estará feito: Úrsula será já minha esposa, e ele, resignado, ou esquecido, ou mesmo desesperado; mas respeitando minha posição social e meu nome, morrerá de inveja, embora amaldiçoando a minha felicidade. Mas, se pelo contrário!... Não é possível! Se pelo contrário, ai dele!
Tudo isto repetia o comendador a si mesmo, devorando a estrada, que trilhava, cego por uma frenética paixão.
Entretanto o rico sítio de Santa Cruz oferecia aos jovens viajantes o mais belo panorama que se pode imaginar. Era sobre uma colina donde se gozava a poética perspectiva do campo, que a tinham colocado; a sua formosura era portanto natural; porque os renques de coqueiros, que se alinhavam, fazendo um semicírculo em frente da casa do comendador, e dos ranchos dos negros, a mão do tempo e o abandono do proprietário tinham reduzido a um penoso estado de morbidez, que causava dó.
Ainda as casas dos escravos, que outrora tinham sido de um aspecto agradável, tapadas de barro e cobertas de telha, hoje mal representavam esse singelo asseio de outras eras. Já arruinadas, desmoronavam-se aqui e ali; porque os desgraçados escravos do comendador, espectros ambulantes, não dispunham de uma só hora no dia, que pudessem dedicar em benefício de suas moradas; à noite trabalhavam ordinariamente até o primeiro cantar do galo. Esfaimados, seminus, espancados cruelmente, suspiravam pelas duas ou três horas de sono fatigado, que lhes concedia a dureza de seu senhor.
Desgraçados! Que até a hora das trevas e do repouso, à hora em que a brisa geme apaixonada, como amante que anela o ardente hálito do seu adorador, em que a erva escuta o segredo terno da viração, em que o cantor da espessura afaga o plumígero habitante de seu ninho amoroso, um momento de sossego e amor lhes é vedado!
Não há descanso para o seu corpo, nem tranquilidade para seu espírito desvairado pelo terror de tantos e tão contínuos sofrimentos!
Mísero escravo!!!... Tantas dores há em seu coração; e nós as não compreendemos!...
Túlio tinha recaído em suas profundas meditações, e Tancredo, que começava a sentir-se feliz com a ideia de rever o objeto de seu amor, admirava a beleza natural dessa soberba situação, quando de repente, voltando-se para o seu companheiro, perguntou-lhe:
— Habitaste algum dia estes lugares, meu Túlio?
— Se os habitei, perguntais?! Ah! Este é o lugar de meu nascimento; mas que detesto, que eu amaldiçoo do fundo da minha alma; porque aqui minha pobre mãe, à força de tratos os mais bárbaros, acabou seus míseros dias!
— Oh! – exclamou Tancredo vivamente tocado.
— Minha mãe – continuou o jovem negro – era a escrava predileta de minha senhora: essa predileção chamou sobre ela parte do ódio que Fernando P. votava à sua irmã.
Deveis saber que esse homem amaldiçoado comprou as numerosas dívidas que meu senhor legou à órfã e à sua viúva, com o intuito tão somente de reduzi-la ao último extremo de miséria, como a reduziu; porque seus diversos credores ter-se-iam comovido, e talvez lhe facultassem os meios de os ir pagando sem grande detrimento de sua fortuna, aliás tão arruinada.
— Que vingança tão mesquinha!... – interrompeu Tancredo indignado.
— Pois bem – prosseguiu Túlio, com voz lagrimosa – minha desgraçada mãe fez parte daquilo que ele comprou aos credores, e talvez fosse ela mesma uma das coisas que mais o interessava. Quando ela se viu obrigada a deixar-me, recomendou-me entre soluços aos cuidados da velha Susana, aquela pobre africana que vistes em casa de minha senhora, e que é a única escrava que lhe resta hoje!
Minha mãe previa a sorte que a aguardava; abraçou-me sufocada em pranto, e saiu correndo como uma louca.
Ah! Quão grande era a dor que a consumia! Porque era escrava, submeteu-se à lei que lhe impunham, e como um cordeiro abaixou a cabeça, humilde e resignada.
Bem pequeno era eu – continuou Túlio após uma pausa entrecortada de soluços –; mas chorei um pranto bem sentido por vê-la se partir de mim, e só comecei a consolar-me, quando mãe Susana à noite balouçando-me na rede, disse-me:
— Não chores mais, meu filho, basta. Tua mãe volta amanhã, e te há de trazer muito mel, e um balaio cheio de frutas.
— Enxuguei os olhos e dormi na doce esperança de revê-la; e à noite sonhei que a vira carregada de frutas, como a boa velha me havia dito. Embalde a esperei no outro dia! Porém mãe Susana, que chorava enquanto eu cuidava dos meus brinquedos, sorria-se quando me via, e procurava fazer-me esquecer minha mãe e seus afagos.
Minhas forças eram ainda débeis para compreender toda a extensão da minha desgraça, e por isso as saudades que me ficaram, pouco e pouco, foram-se-me adormecendo no peito.
Eu estava já crescido; mas nunca mais a havia visto; era-nos proibida qualquer entrevista.
Um dia, disseram-me: — Túlio, tua mãe morreu!
Ah! Senhor! Que triste coisa é a escravidão!
Quando minuciosamente me narraram – continuou ele com um acento de íntimo sofrer – todos os tormentos da sua vida, e os últimos tratos, que a levaram à sepultura, sem nunca mais tornar a ver seu filho, sem dizer-lhe um último adeus, gemi de ódio, e confesso-vos que por longo tempo nutri o mais hediondo desejo de vingança. Oh! Eu queria sufocá-lo entre meus braços, queria vê-lo aniquilado a meus pés, queria... Susana, essa boa mãe, arrancou-me do coração tão funesto desejo.
E o pobre Túlio desatou a chorar em desespero; porque era a recordação das desditas de sua mãe!
Tancredo também tinha na alma uma chaga mal cicatrizada, e as dores do negro encontraram eco em seu coração. Tancredo chorou também, e o silêncio da tarde recolheu soluços que não podiam envergonhá-los.
Alguns momentos depois estavam à porta da casa onde haviam deixado Úrsula, lacrimosa, porém cheia de lisonjeiras esperanças, e Luísa B., suposto que ao aproximar-se da morte, todavia feliz pela futura felicidade de sua filha. Mas essa porta estava fechada, um sinistro pressentimento afetou o coração de ambos. Bateram e ao abrir-se a porta só Susana apareceu, que vendo-os disse:
— Podeis entrar. – E as lágrimas lhe espadanaram pelo rosto.
Tancredo e Túlio olharam-se em silêncio; esse choro não o compreendiam eles.
— Chorais? E de que, mãe Susana? – perguntou Túlio, beijando-lhe respeitoso a mão.
— Meu filho, – soluçou a velha – tudo para mim acabou! E a pobre menina lá foi sozinha ao cemitério orar sobre a sepultura de sua mãe!
— Úrsula? – perguntou Tancredo, rompendo o seu morno silêncio. – Morreu a senhora Luísa B.?
— Oh! Parece – tornou Susana com amargo dissabor – que aquele maldito homem jurou exterminar esta infeliz família!
— De quem falas, Susana? Quem é esse homem? – perguntou ansioso o cavalheiro, coligindo por estas palavras que alguma desgraça havia sucedido.
— De quem falo, senhor? Ah! É do senhor comendador P.!
— Dize-nos o que aconteceu. Mas primeiro que tudo, onde está Úrsula?
— E onde é o cemitério? – inqueriu Tancredo, tomando as rédeas a seu cavalo.
— Em Santa Cruz, senhor – replicou a africana, curvando a cabeça para a terra.
— Partamos, Túlio! – ajuntou o cavaleiro, e depois acrescentou: – Não é possível que tenha ido a Santa Cruz; porque a teríamos encontrado sem dúvida.
— Há tantas estradas para lá, – disse Túlio – que é muito possível que a não víssemos.
— E demais – acrescentou Susana – ela sofre tão cruelmente pela morte de sua mãe, como pela perseguição de seu tio, que...
— Perseguição de seu tio!? – interrogou vivamente Tancredo, de novo chegando-se para a velha. – Que receia ela do comendador?
— Ah! Senhor, creio que ela me disse que se não chegásseis agora, estava perdida; porque o senhor Fernando P. abreviou os dias de sua mãe, e jura que há de ser o esposo da pobre menina.
Foi só o que no meio da sua dor me pôde confiar. Pobre menina!
— Pois bem, – redarguiu Tancredo – tudo está remediado. E galoparam de novo em busca da donzela.
continua pág 107...
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Maria Firmina dos Reis nasceu em São Luís, no Maranhão, no dia 11 de outubro de 1825. Filha bastarda de João Pedro Esteves e Leonor Felipe dos Reis. Foi uma escritora brasileira, considerada a primeira romancista brasileira.
Em 1847, aos 22 anos, ela foi aprovada em um concurso público para a Cadeira de Instrução Primária, sendo assim a primeira professora concursada de seu Estado. Maria demonstrou sua afinidade com a escrita ao publicar “Úrsula” em 1859, primeiro romance abolicionista, primeiro escrito por uma mulher negra brasileira.
O romance “Úrsula” consagrou Maria Firmina como escritora e também foi o primeiro romance da literatura afro-brasileira, entendida esta como produção de autoria afrodescendente. Em 1887, no auge da campanha abolicionista, a escritora publica o livro “A Escrava”, reforçando sua postura antiescravista.
Ao aposentar-se, em 1880, fundou uma escola mista e gratuita. Maria morre aos 92 anos, na cidade de Guimarães, no dia 11 de novembro de 1917.
Em 1975, Maria recebe uma homenagem de José Nascimento Morais Filho que publica a primeira biografia da escritora, Maria Firmina: fragmentos de uma vida.
A importância da obra de Firmina, primeira escritora negra de que se tem notícia em nossa literatura, se deve ao pioneirismo na denúncia da opressão a negros e mulheres no Brasil do século XIX. Antes do Navio negreiro de Castro Alves, declamado pela primeira vez em 1868, Firmina já descrevia em seu livro Úrsula, de 1859, a crueldade do tráfico de pessoas sequestradas na África e transportadas nos porões dos “tumbeiros”. Neste mesmo romance, a crítica da escritora abrange o retrato lamentável da condição feminina da época ao delinear personagens como o pai de Tancredo ou o comendador, tiranos não só de escravos, mas também de mulheres.
Maria Firmina foi uma voz profundamente legítima e dissonante que não encontrou acolhida e reconhecimento em seu tempo. Longe de fracassar, essa voz ressoa hoje cheia de significado, recriminando males que ainda assombram e permeiam nossa sociedade.
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Úrsula - Apresentação
Úrsula - Maria Firmina dos Reis: uma voz em conflito
Úrsula - Prólogo
Úrsula - I Duas almas generosas (1)
Úrsula - I Duas almas generosas (2)
Úrsula - II O delírio (1)
Úrsula - II O delírio (2)
Úrsula - III A declaração de amor (1)
Úrsula - III A declaração de amor (2)
Úrsula - IV A primeira impressão
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