Maria Firmina dos Reis
Úrsula
A Fernando, porém, tardava por demais a hora da vingança; vigiava de parte a sua presa, seguia-lhe os passos, e nutria de infernal esperança o coração ávido de sangue e vingança.
Na hediondez de seu ódio e de seu ciúme, arrancava os cabelos, dilacerava o rosto, e blasfemava contra Deus e contra os homens.
E essa hora tão ardentemente desejada chegou enfim, e ele afagou-a com medonho sorriso. Era um dia belo, como a suprema felicidade, esse da vingança para um coração que só se aprazia no ódio!
Tancredo, todo entregue às doçuras de um amor que lhe fazia esquecer as dores com que uma outra mulher por tanto tempo lhe havia ulcerado o coração, nem uma ideia vaga lhe perpassava pela mente da surda e atroz vingança que o comendador lhe preparava.
Julgava-o resignado, e escondido no fundo de sua fazenda, amaldiçoando-lhe a ventura, ou sonhando ilusões fagueiras de que Úrsula, mais tarde, medrosa de o ter desdenhado, fosse correndo implorar-lhe perdão.
Nesse pressuposto estava Tancredo, que já esquecido mesmo dos tristes precedentes da sua vida, porque acabava de ver Úrsula, esse anjo de paz, que lhe sorria, chamou o seu fiel Túlio para encarregá-lo de algumas ordens, que só por ele seriam bem desempenhadas. Mas Túlio não apareceu.
Era o dia destinado para celebrar-se no convento de *** a cerimônia do seu casamento; e por isso a desaparição de Túlio assaz o surpreendeu.
Entretanto a noite começava a povoar de sombras o espaço da terra.
A demora de Túlio indo a mais, Tancredo passou da surpresa à inquietação, e uma ideia terrível lhe atravessou a mente. Mas tratou de repelir tão funesto pensamento que lhe voltava sempre, e cada vez tomando maiores proporções de realidade.
Então procurou informações sobre o comendador, ninguém lhas soube dar; e antes suspeitavam todos que estivesse em Santa Cruz.
Depois de fazer em vão procurar por Túlio, aflito por um acontecimento aliás tão estranho, Tancredo, acompanhado de alguns de seus amigos, seguiu para o convento de ***, onde devia receber aos pés do altar a mulher de suas adorações.
A noite ia já adiantada quando eles franquearam a porta do santuário. Os círios, que iluminavam o trono do Senhor de misericórdia e de bondade, os sinos, que tocavam alegremente no alto da torre, as flores, que juncavam o pavimento da igreja, não distraíram a Tancredo de seus tristes pressentimentos acerca da desaparição de Túlio, e o coração gemia de angústia. Ele então, indagando a si mesmo, achava estranho o sentimento penoso que lhe nascia na alma, porém embalde tentava recobrar a serenidade de ânimo. Túlio figurava-se-lhe em perigo iminente, e toda a felicidade que o aguardava não lhe apagava esse crescente desassossego; porque essa felicidade começava a parecer-lhe que mais tarde se tornaria amarga. Mas esse estado de angústia e pesar desapareceu com a presença de Úrsula, bela e ridente, e que tão meigamente lhe sorria.
Vinha acompanhada das jovens religiosas, que já a amavam: no meio dessas virgens consagradas ao Senhor, era como uma rosa entre açucenas. Trajava simples vestido de seda preta, e mimosas pérolas ornavam-lhe o colo de neve, brandamente agitado pelo voluptuoso arfar do peito. A fronte altiva, e jaspeada agrinaldava-a uma capela de odoríferas flores de laranja, e o véu de castidade flutuava-lhe sobre os ombros nus e bem contornados, e encobria-lhe os negros e aveludados cabelos.
Assim era ela mais formosa que nunca, e Tancredo, vendo-a tão radiante de mocidade e de amor, olvidou suas penosas inquietações para só rever-se nela, para render-lhe um culto de apaixonada veneração.
E ela sorriu com um sorriso que transportou-o de felicidade, e esse sorriso feiticeiro e angélico arrancou-lhe do fundo da alma o orgulho feminil – era como a lembrança de que seu amor apagara ainda mesmo as cinzas do de Adelaide.
O cântico das virgens, tão solene e santo, começou, e suas notas melodiosas confundiram-se com os acentos ternos e acordes do órgão: os círios projetavam uma luz vívida, que se derramava em ondas por todo o santuário, e iluminava esse quadro de felicidade.
E o cântico das virgens do Senhor, e a melodia do órgão, se lhe internavam pelo coração, e pareciam-lhe um coro de anjos nas moradas celestiais.
A benção do sacerdote unia-os para sempre, e o incenso ondulava em torno do altar.
Por fim cessaram a música e os cânticos, e as felicitações sinceras dos amigos acolheram Úrsula e a Tancredo: – o ato religioso do casamento estava consumado. Seus corações transbordavam de prazer, o universo não bastava para conter seus corações.
No meio de sua extrema ventura, veio assaltar a Tancredo a ideia da desaparição de Túlio. Não podia esquecer o seu fiel companheiro que ali não estava para também congratulá-lo. Uma nuvem de amargura e tristeza veio por mais de uma vez perturbar-lhe o coração, e angustiá-lo.
Pobre Túlio! Bem se havia ele esforçado por estar junto ao seu amigo, mas como?...
Pelo cair da tarde esse fiel negro passava descuidosamente por uma esguia e tortuosa travessa, a essa hora completamente deserta, quando de repente ante si viu dois homens de fisionomias sinistras, e que engatilhando as pistolas, e pondo-as ao peito, disseram acenando-lhe para a porta de um casebre insignificante e velho, que lhes ficava fronteiro:
— Entra aqui, e se gritares morres.
O jovem negro olhou em cheio esses dois homens, que tão bruscamente o acometiam, e conquanto não fosse medroso, estremeceu involuntariamente.
Túlio lembrou-se do comendador, e julgou-se perdido. Imaginou nesse momento extremo mil meios de seduzi-los, ou de fugir-lhes, tudo foi inútil; porque a esses homens, tão versados no crime, era impossível enganar ou comover: resignou-se, pois, e obedeceu.
Entrou em um corredor escuro e úmido como uma sepultura, e a porta fechou-se sobre eles.
— Que intentais de mim? – interrogou Túlio com voz firme.
— Mais tarde o saberás – respondeu-lhe um dos dois com um sorriso frio e afrontoso.
E esse mesmo homem tocou com as pontas dos dedos em uma porta lateral. Esta abriu-se como por encanto, devassando um quarto quase tão úmido e escuro como o lugar onde se achavam.
Já não havia a claridade do dia, e a luz de uma vela a não substituíra ainda.
— Acompanha-nos! – disseram ambos com voz que revelava fria crueldade.
Túlio recuou no limiar da porta, porque no meio desse quarto Fernando P. passeava.
— Entra covarde! – tornaram ambos – Túlio obedeceu.
O comendador cruzava o quarto com passos desordenados. Pálido como um espectro, com os cabelos erriçados, os lábios convulsos e contraídos, as comissuras dos lábios espumantes, pintava-se-lhe no todo a desesperação, e o ódio infame, e a vingança não satisfeita.
Era Otelo no seu ciúme, Satanás expulso do céu e ferido no orgulho.
Parecia nada ter visto, nem ouvido do que se passava em torno de si, porque continuou no seu passeio insano malgrado o ranger sinistro dessa porta, que gemeu nos gonzos como o sibilar da serpente.
Cruzou o quarto ainda por muitas vezes, depois, estendendo a mão para os seus dois sicários, acenou-lhes para a porta.
Esta ordem muda foi prontamente cumprida. Os sicários saíram – a porta tornou-se a fechar.
— Queres tu servir-me? – perguntou o comendador com um tom seco e breve.
Túlio conheceu que estava perdido; mas recobrando toda a sua energia, como sucede sempre ao homem nos lances apertados da existência, respondeu sem hesitar:
— Dizei, meu senhor, o que determinais ao vosso escravo?
— Dize-me, onde está Tancredo?
Como se fora um ferro na brasa, esse nome pareceu requeimar-lhe os lábios, que tingiram-se de uma cor lívida, e tremeram convulsos.
— Creio que está em sua casa – redarguiu o negro sem perturbar-se.
— Mentes! – gritou-lhe o comendador, devorando-o com horrível olhar – Mentes! ... Parvos! Julgam que o meu ódio os não segue como as suas próprias sombras!
E tu, vil escravo! Pretendes iludir-me?! Sim, demais me tarda a hora da vingança!... Úrsula, encerrada no convento de *** aguarda hoje pela cerimônia que a vai unir para sempre ao homem da sua escolha... ao homem por quem desprezou meu amor, e até meu ódio! Oh! Juro-lhe pelo inferno, que o sorriso de sonhadas delícias, que sorriem sobre a minha desesperação, apagará de seus lábios minha justa e completa vingança. Tancredo! Hoje mesmo o anjo pálido da morte te dará o beijo de idolatrada esposa; e a terra úmida do sepulcro serrará sobre ti as brancas cortinas do leito nupcial.
— Introduz-me no seu quarto, Túlio – continuou delirante – quero matar esse homem antes que seja o esposo de Úrsula! Eu te cumularei de favores; dar-te-ei metade da minha fortuna se ma pedires.
— Senhor! – exclamou Túlio aceso em legítima cólera – Que ação tão vil pratiquei eu algum dia que possa merecer-vos semelhante conceito?
— Estás louco, imbecil? Não vês que peço, quando podia mandar?
— Covarde! – bradou Túlio, esquecendo a pessoa com quem falava, e quanto essa palavra insultuosa o poderia perder – Matai-me muito embora, estou em vosso poder; mas não me insulteis! Não, nunca espereis que proteja o assassino, mormente contra aquele que me arrancou da escravidão!
— Cala-te! – interrompeu o comendador roxo de ira – Esqueceste acaso de quem sou? – Fechou os punhos, e dos lábios gotejou-lhe sangue, rugiu como uma onça, e arremessou-se sobre o negro.
Túlio, aliás, aguardava imóvel esse último esforço da desesperação; mas a Fernando caíram os braços inertes, e por um segundo ficou absorto e contemplativo, como se ante si estivera um espectro: depois tocou a campainha, e esperou.
O relógio deu oito badaladas. Era noite. Os dois homens apareceram.
— Entreguem-no à guarda de Antero. Sua cabeça responder-me-á por qualquer eventualidade.
continua pág 126...
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Maria Firmina dos Reis nasceu em São Luís, no Maranhão, no dia 11 de outubro de 1825. Filha bastarda de João Pedro Esteves e Leonor Felipe dos Reis. Foi uma escritora brasileira, considerada a primeira romancista brasileira.
Em 1847, aos 22 anos, ela foi aprovada em um concurso público para a Cadeira de Instrução Primária, sendo assim a primeira professora concursada de seu Estado. Maria demonstrou sua afinidade com a escrita ao publicar “Úrsula” em 1859, primeiro romance abolicionista, primeiro escrito por uma mulher negra brasileira.
O romance “Úrsula” consagrou Maria Firmina como escritora e também foi o primeiro romance da literatura afro-brasileira, entendida esta como produção de autoria afrodescendente. Em 1887, no auge da campanha abolicionista, a escritora publica o livro “A Escrava”, reforçando sua postura antiescravista.
Ao aposentar-se, em 1880, fundou uma escola mista e gratuita. Maria morre aos 92 anos, na cidade de Guimarães, no dia 11 de novembro de 1917.
Em 1975, Maria recebe uma homenagem de José Nascimento Morais Filho que publica a primeira biografia da escritora, Maria Firmina: fragmentos de uma vida.
A importância da obra de Firmina, primeira escritora negra de que se tem notícia em nossa literatura, se deve ao pioneirismo na denúncia da opressão a negros e mulheres no Brasil do século XIX. Antes do Navio negreiro de Castro Alves, declamado pela primeira vez em 1868, Firmina já descrevia em seu livro Úrsula, de 1859, a crueldade do tráfico de pessoas sequestradas na África e transportadas nos porões dos “tumbeiros”. Neste mesmo romance, a crítica da escritora abrange o retrato lamentável da condição feminina da época ao delinear personagens como o pai de Tancredo ou o comendador, tiranos não só de escravos, mas também de mulheres.
Maria Firmina foi uma voz profundamente legítima e dissonante que não encontrou acolhida e reconhecimento em seu tempo. Longe de fracassar, essa voz ressoa hoje cheia de significado, recriminando males que ainda assombram e permeiam nossa sociedade.
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