OS SERTÕES
Euclides da Cunha
Volume 1
A Luta
I . Antecedentes.II . Causas próximas da luta. Uauá.III . Preparativos da reação. A guerra das caatingas.IV . Autonomia duvidosa.,
IV - Autonomia duvidosa
Ia-o demonstrar a campanha emergente... cópia mais ampla de outras que em todo o Norte têm aparecido, permitindo aquilatar-se de antemão tais dificuldades.
As medidas planeadas pelo general Solon denotavam, portanto, exata previsão de sucessos semelhantes, na luta excepcionalíssima para a qual nenhum Jomini delineara regras, porque invertia até os preceitos vulgares da arte militar.
Malgrado os defeitos do confronto, Canudos era a nossa Vendéia. O chouan e as charnecas emparelham-se bem com o jagunço e as caatingas. O mesmo misticismo, gênese da mesma aspiração política; as mesmas ousadias servidas pelas mesmas astúcias, e a mesma natureza adversa, permitiam que se lembrasse aquele lendário recanto da Bretanha, onde uma revolta depois de fazer recuar exércitos destinados a um passeio militar por toda a Europa, só
cedeu ante as divisões volantes de um general sem fama, “as colunas infernais” do general Turreau — pouco
numerosas mas céleres, imitando a própria fugacidade dos vendeanos, até encurralá-los num círculo de dezesseis
campos entrincheirados.
Não se olhou, porém, para o ensinamento histórico.
É que se preestabelecera a vitória inevitável sobre a rebeldia sertaneja insignificante.
O governo baiano afirmou “serem mais que suficientes as medidas tomadas para debelar e extinguir o grupo de
fanáticos e não haver necessidade de reforçar a força federal para tal diligência, pois as medidas tomadas pelo
comandante do distrito significavam mais prevenção que receio”; e aditava “não ser tão numeroso o grupo de
Antônio Conselheiro, indo pouco além de quinhentos homens, etc.”
Contravinha o chefe militar entendendo ter a repressão legal vingado o círculo das diligências policiais,
cumprindo-lhe não mais prender criminosos “mas extirpar o móvel de decomposição moral que se observava no
arraial de Canudos em manifesto desprestígio à autoridade e às instituições”, acrescentando que a força federal
deveria seguir bastante forte para se subtrair à contingência de “retiradas prejudiciais e indecorosas”. O governo
estadual, porém, agindo dentro do elástico art. 6º da Constituição de 24 de fevereiro, cerrou a controvérsia
levantando o espantalho de uma ameaça à soberania do Estado, e repelindo a intervenção que lhe implicava
incompetência para manter a ordem nos seus próprios domínios. Deslembrara-se que em documento público se
confessara desarmado para suplantar a revolta e que apelando para os recursos da União justificava naturalmente a
intervenção que procurava encobrir.
Vinha serôdio o falar em soberania apisoada pelos turbulentos impunes. Ademais ninguém se iludia ante a
situação sertaneja. Acima do desequilibrado que a dirigia estava toda uma sociedade de retardatários. O ambiente
moral dos sertões favorecia o contágio e o alastramento da neurose. A desordem, local ainda, podia ser núcleo de
uma conflagração em todo o interior do Norte. De sorte que a intervenção federal exprimia o significado superior dos
próprios princípios federativos: era a colaboração dos Estados numa questão que interessava não já à Bahia, mas ao
país inteiro.
Foi o que sucedeu. A nação inteira interveio. Mas sobre as bandeiras vindas de todos os pontos, do extremo
norte e do extremo sul, do Rio Grande ao Amazonas, pairou sempre, intangível, miraculosamente erguida pelas
exegetas constitucionais, a soberania do Estado...
Para a resguardar melhor foi removido da Bahia o chefe da força militar, que traçara a sua atitude retilineamente
pela lei. E somente depois disto a coluna do major Febrônio — até então oscilante entre Monte Santo e Queimadas e
objetivando nas contramarchas as vacilações do governo — seguiu reforçada pela tropa policial e adstrita às
deliberações do governo baiano.
Perdera-se esterilmente o tempo — que o adversário aproveitara, aparelhando-se a um revide enérgico. Num
raio de três léguas em roda de Canudos, fizera-se o deserto. Para todos os rumos e por todas as estradas e em todos os
lugares, os escombros carbonizados das fazendas e dos pousos avultavam, insulando o arraial num grande círculo
isolador, de ruínas. Estava pronto o cenário para um emocionante drama da nossa história.
continua 105...
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Leia também:
OS SERTÕES - A Terra: I Preliminares
OS SERTÕES - A Terra: II Do alto de Monte Santo
OS SERTÕES - A Terra: III O clima
OS SERTÕES - A Terra: IV As secas
OS SERTÕES - A Terra: V Uma categoria geográfica que Hegel não citou
OS SERTÕES - O Homem: I Complexidade do problema etnológico no Brasil
OS SERTÕES - O Homem: II ... A gênese do jagunço
OS SERTÕES - O Homem: II ... Um parêntese irritante
OS SERTÕES - O Homem: III ... O sertanejo é, antes de tudo, um forte
OS SERTÕES - O Homem: IV ... Antônio Conselheiro, documento vivo
OS SERTÕES - O Homem: IV ... Como se faz um monstro ...
OS SERTÕES - O Homem: V... Canudos antecedentes
OS SERTÕES - O Homem: V Polícia de bandidos
OS SERTÕES - O Homem: V... Agrupamento bizarro
OS SERTÕES - O Homem: V Uma missão abortada
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OS SERTÕES - O Homem: V Polícia de bandidos
OS SERTÕES - O Homem: V... Agrupamento bizarro
OS SERTÕES - O Homem: V Uma missão abortada
OS SERTÕES - A Luta: IV - Autonomia duvidosa
OS SERTÕES - Travessia do Cambaio: I - Monte Santo. Triunfos antecipados.
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Os Sertões, de Euclides da Cunha
Fonte: CUNHA, Euclides da. Os Sertões. São Paulo: Três, 1984 (Biblioteca do Estudante).
Texto proveniente de: A Biblioteca Virtual do Estudante Brasileiro A Escola do Futuro da Universidade de São Paulo Permitido o uso apenas para fins educacionais.
Os Sertões, de Euclides da Cunha
Fonte: CUNHA, Euclides da. Os Sertões. São Paulo: Três, 1984 (Biblioteca do Estudante).
Texto proveniente de: A Biblioteca Virtual do Estudante Brasileiro A Escola do Futuro da Universidade de São Paulo Permitido o uso apenas para fins educacionais.
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