segunda-feira, 2 de janeiro de 2023

OS SERTÕES, Euclides da Cunha - A Luta: IV - Autonomia duvidosa

OS SERTÕES 

Euclides da Cunha

Volume 1



A Luta



Preliminares

I . Antecedentes.
II . Causas próximas da luta. Uauá.
III . Preparativos da reação. A guerra das caatingas.
IV . Autonomia duvidosa.,



IV - Autonomia duvidosa

Ia-o demonstrar a campanha emergente... cópia mais ampla de outras que em todo o Norte têm aparecido, permitindo aquilatar-se de antemão tais dificuldades. 

As medidas planeadas pelo general Solon denotavam, portanto, exata previsão de sucessos semelhantes, na luta excepcionalíssima para a qual nenhum Jomini delineara regras, porque invertia até os preceitos vulgares da arte militar. 

Malgrado os defeitos do confronto, Canudos era a nossa Vendéia. O chouan e as charnecas emparelham-se bem com o jagunço e as caatingas. O mesmo misticismo, gênese da mesma aspiração política; as mesmas ousadias servidas pelas mesmas astúcias, e a mesma natureza adversa, permitiam que se lembrasse aquele lendário recanto da Bretanha, onde uma revolta depois de fazer recuar exércitos destinados a um passeio militar por toda a Europa, só cedeu ante as divisões volantes de um general sem fama, “as colunas infernais” do general Turreau — pouco numerosas mas céleres, imitando a própria fugacidade dos vendeanos, até encurralá-los num círculo de dezesseis campos entrincheirados. 

Não se olhou, porém, para o ensinamento histórico. 

É que se preestabelecera a vitória inevitável sobre a rebeldia sertaneja insignificante. 

O governo baiano afirmou “serem mais que suficientes as medidas tomadas para debelar e extinguir o grupo de fanáticos e não haver necessidade de reforçar a força federal para tal diligência, pois as medidas tomadas pelo comandante do distrito significavam mais prevenção que receio”; e aditava “não ser tão numeroso o grupo de Antônio Conselheiro, indo pouco além de quinhentos homens, etc.” 

Contravinha o chefe militar entendendo ter a repressão legal vingado o círculo das diligências policiais, cumprindo-lhe não mais prender criminosos “mas extirpar o móvel de decomposição moral que se observava no arraial de Canudos em manifesto desprestígio à autoridade e às instituições”, acrescentando que a força federal deveria seguir bastante forte para se subtrair à contingência de “retiradas prejudiciais e indecorosas”. O governo estadual, porém, agindo dentro do elástico art. 6º da Constituição de 24 de fevereiro, cerrou a controvérsia levantando o espantalho de uma ameaça à soberania do Estado, e repelindo a intervenção que lhe implicava incompetência para manter a ordem nos seus próprios domínios. Deslembrara-se que em documento público se confessara desarmado para suplantar a revolta e que apelando para os recursos da União justificava naturalmente a intervenção que procurava encobrir. 

Vinha serôdio o falar em soberania apisoada pelos turbulentos impunes. Ademais ninguém se iludia ante a situação sertaneja. Acima do desequilibrado que a dirigia estava toda uma sociedade de retardatários. O ambiente moral dos sertões favorecia o contágio e o alastramento da neurose. A desordem, local ainda, podia ser núcleo de uma conflagração em todo o interior do Norte. De sorte que a intervenção federal exprimia o significado superior dos próprios princípios federativos: era a colaboração dos Estados numa questão que interessava não já à Bahia, mas ao país inteiro. 

Foi o que sucedeu. A nação inteira interveio. Mas sobre as bandeiras vindas de todos os pontos, do extremo norte e do extremo sul, do Rio Grande ao Amazonas, pairou sempre, intangível, miraculosamente erguida pelas exegetas constitucionais, a soberania do Estado... 

Para a resguardar melhor foi removido da Bahia o chefe da força militar, que traçara a sua atitude retilineamente pela lei. E somente depois disto a coluna do major Febrônio — até então oscilante entre Monte Santo e Queimadas e objetivando nas contramarchas as vacilações do governo — seguiu reforçada pela tropa policial e adstrita às deliberações do governo baiano. 

Perdera-se esterilmente o tempo — que o adversário aproveitara, aparelhando-se a um revide enérgico. Num raio de três léguas em roda de Canudos, fizera-se o deserto. Para todos os rumos e por todas as estradas e em todos os lugares, os escombros carbonizados das fazendas e dos pousos avultavam, insulando o arraial num grande círculo isolador, de ruínas. Estava pronto o cenário para um emocionante drama da nossa história.


continua 105...

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OS SERTÕES - A Luta: IV - Autonomia duvidosa
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Os Sertões, de Euclides da Cunha

Fonte: CUNHA, Euclides da. Os Sertões. São Paulo: Três, 1984 (Biblioteca do Estudante).

Texto proveniente de: A Biblioteca Virtual do Estudante Brasileiro A Escola do Futuro da Universidade de São Paulo Permitido o uso apenas para fins educacionais.


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