quinta-feira, 1 de setembro de 2022

Dostoiévski - O Idiota: Primeira Parte (9b.) - Ardalión Aleksándrovitch Ívolguin

O Idiota



Fiódor Dostoiévski


Tradução portuguesa por José Geraldo Vieira


Primeira Parte


9b.


- Ardalión Aleksándrovitch Ívolguin-- disse o general, curvando-se e sorrindo, com dignidade - Um antigo soldado hoje na desgraça, e pai de uma família que se sente feliz ante a perspectiva de incluir uma tão encantadora...
Mas não pode concluir, porque Ferdichtchénko, instalando-se às pressas em uma cadeira atrás dele, pesadamente o abateu sobre ela: o general inconscientemente anuiu porque uma coisa dessas logo depois do jantar o comovia tanto que as pernas lhe fraquejavam. Ou melhor, caiu sobre a cadeira.
Mas isso não o desconcertou.
Recuperou as maneiras, encarou Nastássia Filíppovna com um sorriso complacente, deliberada e galantemente ergueu os dedos dela até aos seus lábios. Tentar desconcertar o general era empresa difícil. Ele sabia perfeitamente que ainda tinha um exterior bem apresentável, e se não fosse certo desmazelo poderia passar...
Movera-se no passado sempre em boas rodas sociais, das quais acabara sendo excluído havia apenas uns dois ou três anos. Dera daí para cá em se abandonar a certas fraquezas, sem peias. Apesar disso, porém. ostentava uns restos de maneiras agradáveis bem espontâneas. O aparecimento do general, de quem já ouvira tanto falar, parece que deleitou Nastássia Filíppovna.
E ei-lo que recomeçava:

- Segundo me consta, aqui o meu filho...

- Sim, o seu filho... Mas convenhamos que o pai não deixa também de ainda ser bonitão! ... Por que nunca foi me ver? Fechou-se assim, voluntariamente, ou isso foi obra de seu filho? A quem comprometeria o senhor, indo ver-me?

- Os filhos do século dezenove e os seus respectivos pais... - explicou o general.

- Nastássia Filíppovna, desculpe por um instantinho Ardalión Aleksándrovitch, pois alguém o está procurando... - disse Nina Aleksándrovna em voz alta.

- Desculpá-lo em quê? Já me tinham falado tanto dele! Almejava tanto conhecê-lo. Que faz ele, presentemente? Reformou-se? Ora, não vá me deixar, general! Fique, não vá embora!

- Eu lhe prometo que ele voltará, ou irá vê-la. Mas agora ele precisa descansar.

- Ardalión Aleksándrovitch, oh... - estão dizendo que o senhor precisa descansar - reagiu Nastássia Filíppovna, fazendo ar de decepção e de amuo, como uma criança a quem privam do brinquedo.

O general esmerou-se em tomar a sua posição ainda mais néscia do que antes. E pondo a mão sobre o coração, solenemente, desaprovou a ordem da esposa, dizendo:

- Oh! Querida, querida!

- Mamãe, a senhora não se retira? - disse Vária, de modo significativo. perto da porta para onde se arredara.

- Não, Vária, devo permanecer aqui, até ao fim...

Nastássia Filíppovna ouviu muito bem tanto a pergunta como a negativa, mas isso parece que aumentou o seu entusiasmo. Fez mais perguntas ao general, com muita vivacidade. Daí a cinco minutos o general, em estado triunfante de espírito, provocava risadas em certa parte do grupo.
Kólia puxou o príncipe pela aba do casaco.

- Saia com ele, de qualquer jeito. Isto não pode continuar. É um favor que lhe suplico.

- Havia lágrimas de indignação nos olhos do pobre rapaz.

- Oh! Este maldito Gánia!

Enquanto isso, em resposta a dada pergunta de Nastássia Filíppovna, o general explicou:

- Tive a fortuna de ser, deveras, um amigo íntimo de Iván Fiódorovitch Epantchín. Eu, ele e o falecido Príncipe Liév Nikoláievitch Míchkin, cujo filho tive a fortuna de reabraçar hoje depois de vinte anos de separação, éramos, os três, inseparáveis; formávamos, por assim dizer, uma bela cavalgada, como os três mosqueteiros, Atos, Portos e Aramis. Mas, um está na sepultura, ai dele! Derrubado pela calúnia e por uma bala. O segundo está diante da senhora, lutando ainda e sempre contra calúnias e balas.

- Que balas?

- As que estão aqui, no meu peito. Recebi-as debaixo das muralhas de Kars, e quando o tempo muda me dou conta delas. Malgrado isso, no mais que a mim respeita, vivo como um filósofo: passeio, jogo damas no meu café como um burguês comanditado, e leio o Indépendance. Mas com Epantchín, o terceiro, o nosso Portos, não tenho mais nada a ver, depois daquele escândalo, há dois anos, na estrada de ferro, com um cãozinho lulu.

- Um cãozinho? Como assim? - perguntou Nastássia Filíppovna com uma curiosidade faiscante. - Com um cãozinho de colo? Vejamos. Na estrada de ferro, ainda por cima!... - insistiu, fechando um pouco os olhos, como quando alguém quer recordar alguma coisa.

- Foi um caso idiota. Nem merece a pena contar. E tudo por causa da governante da Princesa Bielokónskaia, mistress Schmidt. Nem merece a pena repetir.

- O senhor tem de me contar! - insistia alegremente Nastássia Filíppovna.

Ferdichtchénko observou:

- O senhor também nunca me contou. C’est du nouveau.

- Ardalión Aleksándrovitch! - suplicou outra vez Nina Aleksándrovna.

E Kólia exclamou:

- Pai, lá no corredor querem falar urgentemente com o senhor!

- Trata-se de uma história estúpida e pode ser contada em duas palavras - decidiu-se o general, com muita complacência. - Dois anos atrás, sim, aproximadamente há dois anos, logo depois da inauguração da estrada de ferro de X... estava eu já nesse tempo em trajes civis, mas ainda muito ocupado com um caso importante que se prendia à minha promoção antes da reforma. Tomei um bilhete de primeira classe, entrei, sentei-me, pus-me a fumar. Ou melhor, já entrei fumando; tinha acendido o meu charuto lá fora. Fumar nem era proibido nem permitido. Tolerava-se, pode-se dizer assim. Naturalmente depende da pessoa que fuma. De mais a mais a janela estava aberta. Um pouco antes do apito, duas senhoras subiram, com um cachorro pequenino assim, se sentaram no mesmo compartimento, diante de mim. Entraram atrasadas. Uma delas estava vestida de maneira extravagante, em azul-claro. A outra, mais sobriamente, de seda preta, com uma capa. Que eram bonitas, não havia dúvida; mas tinham um ar desdenhoso, e falavam inglês. Fiz que não reparei e continuei a fumar. Hesitei, mas estava ao lado da janela e como a janela estava aberta, prossegui. O cão estava sobre os joelhos da dama de azul-claro. Era um bichinho pequenininho, assim como o meu punho fechado, todo preto, com manchas brancas, uma perfeita raridade! Tinha uma coleira de prata, com uma inscrição. E logo percebi que as damas ficaram aborrecidas com o meu charuto, é lógico. Uma delas se pôs a fitar-me com o seu olhão de tartaruga. Fiquei impassível; e elas... nem bico! Se me dissessem alguma coisa, me advertissem, me pedissem, para que é que a gente tem língua, afinal de contas? Mas estavam caladas. Subitamente, sem advertência, dou-lhe a minha palavra de honra, sem a menor advertência, como se inopinadamente tivesse ficado maluca, a tal de azul desmaiado me arrancou o charuto da boca e o atirou pela janela. O trem ia desembestado, a toda. Fitei-a, perplexo. Uma mulher selvagem, sim, positivamente uma mulher inteiramente do tipo selvagem, muito embora de maneiras, alta, bonitona, com faces rosadas, aliás rosadas até demais. Os olhos dela fulguravam, me hipnotizando. Sem proferir uma palavra, e com extraordinária cortesia, a mais perfeita, a mais refinada cortesia, eu, delicadamente segurei o cachorrinho pela coleira, com dois dedos, assim, e o atirei pela janela afora, em busca.., do meu charuto!... Ele apenas soltou um ganido! O trem ia por aí afora a toda velocidade.

- O senhor é um monstro! - ria-se, a perder, Nastássia Filíppovna, batendo as mãos, como uma criança.

- Bravo! Bravo! - aplaudia Ferdichtchénko.

Ptítsin, que quando o general apareceu na sala também ficara sem jeito, agora também ria. E riu o próprio Kólía que gritou ainda.

- Bravo!

- E eu tinha direito a fazer o que fiz! Perfeitamente! - explicou o general, todo entusiasmado, em triunfo - Se os charutos são proibidos em um carro de primeira classe, quanto mais os cachorros!

- Bravo, pai, esplêndido! Eu faria a mesma coisa! - exclamou Kólia, jovialmente.

Mas Nastássia Filíppovna perguntou, pressurosa:

- E a dama? Que fez ela?

- A dama? A de azul? É aí que a coisa descamba para o desagradável - redarguiu o general, franzindo as sobrancelhas - Sem proferir uma só palavra e sem me avisar, me esbofeteou. Uma mulher selvagem, de um tipo inteiramente selvagem.

- E o senhor?

O general fechou os olhos, franziu ainda mais as sobrancelhas. encolheu os ombros, atirou as mãos para os lados, fez uma pausa, depois, de súbito, confessou:

- Perdi a cabeça.

- Maltratou-a? Deu-lhe uma lição?

- Por honra minha, não o fiz. O que se seguiu foi uma cena escandalosa. Maltratá-la, porém, não o fiz. Simplesmente brandi o meu braço, o necessário para afastá-la... Mas quis o demônio que a tal de azul-claro fosse a governante inglesa, ou uma espécie quase de amiga da família Bielokónskii, sendo que a de preto, conforme depois vim a saber, era a infanta mais velha das Bielokónskii, uma donzela já, velhusca, de uns trinta e cinco anos. Ora, a senhora sabe em que termos a Generala Epantchiná está ligada à família Bielokónskíi. Todas as seis princesinhas tiveram chiliques, choramingaram, guardaram luto pelo cãozinho, a governante inglesa deu gritinhos! Um completo manicômio. Naturalmente que eu tinha de me desculpar, manifestar o meu arrependimento. Escrevi uma carta. Recusaram receber-me, a mim e à carta. E a Epantchiná me descompôs, vedou-me a entrada em sua casa, rompeu comigo.

- Mas, permita uma observação: como é que o senhor explica isto? - perguntou Nastássia Filíppovna, atrapalhando-o – Há cinco ou seis dias li, no Indépendance, sempre leio o Indépendance, uma anedota exatamente igual à sua história. Precisamente a mesma coisa! Só que tem que se passou entre um francês e uma inglesa, em uma estrada de ferro renana. O charuto foi arrancado da mesma maneira, o cachorro foi atirado pela janela como o seu. E acabou do mesmo jeito. E até o vestido também era azul!

O sangue subiu à cara do general. 

Kólia também enrubesceu e tapou o rosto com as mãos. 

Ptítsin virou-se e saiu precipitadamente. 

Ferdichtchénko era o único que ainda ria.

Quanto a Gánia, nem é preciso falar. Todo o tempo estivera de pé, em uma agonia indizível.

Mas o general afiançou:

- Pois lhe asseguro que a mesma coisa se passou comigo.

- De fato, papai teve uma questão com mistress Schmidt, governante das Bielokónskii - asseverou Kólia -, estou me lembrando agora. Mas a dama, sem piedade, persistiu:

- Como? Exatamente a mesma coisa? A mesma história nas extremidades opostas da Europa, e iguais, minúcia por minúcia, até a cor do vestido azul pálido? Vou lhe mandar o Indépendance Belge.

- Mas note que o incidente que se passou comigo foi há dois anos - teimou ainda o general.

-Ah! Então, está bem!

- E Nastássia Fillíppovna ria como se estivesse com um ataque histérico.

- Papai, estou lhe pedindo; ouça, vamos até lá dentro, preciso lhe dar uma palavrinha - disse Gânia, com voz entrecortada e com certa acrimônia, puxando o pai maneirosamente pelo ombro. Havia um lampejo de infinito ódio em seus olhos. Neste momento a campainha da porta da frente tocou de modo violento. E de maneira tal que devia até ter arrebentado. Anunciava uma visita excepcional.
Kólia correu a abrir a porta.

Havia um lampejo de infinito ódio em seus olhos.

Neste momento a campainha da porta da frente tocou de modo violento. E de maneira tal que devia até ter arrebentado. Anunciava uma visita excepcional. 
Kólia correu a abrir a porta.


continua página 100...

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