domingo, 6 de julho de 2014

histórias davóinha: a memória é cega 13cp

casarão canela preta


a memória é cega
Ensaio 13cp – 2ª edição 1ª reimpressão


baitasar



a voz de avoinha continuava se repetindo como uma memória atrapalhada ou era coisa que eu não sabia entender, Odiá é coisa qui si aprendi, fiquei cismado com as palavras davó antes dela avoar das minhas costas pra ficar embaixo do meu banco, espremida e de cócoras. não tinha como saber, nem jeito para imaginar um lugar ensinando a odienta aparência dos gritos e das ameaças, Cuidado, neinho, tem gente qui acha mais bão anunciá qui matá é mió. 

senti um arrepio de medo, pedi proteção de Iansã. não queria descobrir que existe uma passagem com vampiros, lobisomens e bruxas. um lugar que reprova, desaprova, condena, até rejeitar o asqueroso rejeitado. e pronto, o degenerado está pronto para se destacar na saliência dos odientos: egoísta e interesseiro, a representação do transe apagado do nascimento: a morte. um morto-vivo que não aprendeu que a vida é de todos, não é de um só, Miúdo, vamô mostrá da alegria qui nóis tem pra cantá e dançá.

não olhei davó, mas lhe respondi com o despeito que não estava nas palavras, voava junto com elas escondido. usava pano nos olhos, fingia brincar de cabra-cega para não me mostrar ofensivo radicalista, mas não consegui evitar o retruque desaforado, Até parece que avoinha acredita que os pretos só cantam e dançam, pronto tinha dito, mas a importância tava no não dito, o que ficou engasgado na vontade do dito

E ocê, uqui acha? Foi ocê qui saiu da escola pra sê cobradô das passagi na catraca, arranquei o pano dos olhos e a brincadeira das crianças deixou de ser brincadeira, E avoinha? Só quis ser avoinha?

silêncio. depois da respiração funda, veio uma brisa de amor e encantamento. ela suspirava as palavras, Ocê tá certo, mais tumbém tá errado. Gostava de cuidá duseus tio e tia. Era o certo qui tinha qui sê feito. Useu davô gostava dos festejo na cama. Eu adorava sê a bailarina. Era só dá corda e eu dançava pra ele festejo e confeito da bailarina. Qui era bão era bão, mais escuitá... não tô de arrependimento, mais ia fazê uma ou otra coisinha diferente, caso pudesse dá uma demão de tinta nova.

minha davó, minha querida avoinha, somente ela para me arrancar a deseducação da boca sem um grito ou olhar de desaprovação, Avoinha, não quero ensinar ninguém.

Uqui ocê qué? Desandô da escola e sentô nesse banco de cobradô. É isso qui ocê qué?

não precisei pensar a resposta, E se for? É a solução para os meninos pretos e pobres com vergonha de serem mais um peso, mais uma boca, ela nem estava escondida nem de brincadeira, me olhava fundo nos olhos, Não quero viver nas costas dos tiuzin, queria dizer assim, mas não sabia explicar que ia fazer o que tinha que fazer para ajudar. do mesmo jeito que ela fez o que precisava fazer. ela podia ajudar não atrapalhando

A vontade davó tem quisê vontade do neinho. Eu quero pra ocê aquilo qui faltô prus preto do Canela Preta: um banco diferente do banco do cobradô: o banco da escola. Se fô preciso, vai vivê do mesmo jeito quius branco qui vive nas costa do painho e da mâinha, inté se achá. Inté tê sua xícara de café com amô, paz e esperança, sem medo das bala perdida.

A davó lê o futuro por que não esquece do passado?

fiz a pergunta já desajeitado com a insistência birrenta de avoinha, estava com medo de ser radicalista com davó, ser acusado de panfletário. ela pulou e fez de novo, ficou de cócoras no meu balcão. fechei os olhos com força

Qui razão tem essa prugunta, miúdo? 


pensei em dormir e desaparecer com avoinha, mas não podia dormir. dormindo faria chegar mais rápido o que está por vir. respirei fundo e expliquei que ela falava num tambor que nem existe, coisas que não existem são apenas isso, coisas que não existem. uma vida servil é apenas uma vida servil, Davó, eu acho que existe outra vida que não existe, mas enquanto se vive essa vida que existe essa outra não existe. Ela fica num lugar qualquer, um lugar de sonhos e desejos. É muita vontade que não existe esperando por aí. Esperando para existir.

Neinho, no mundo qui num é coisa nehuma, num tem nada mais novo ou causo mais antigo. É preciso creditá qui pode fazê existí dum otro jeito. No mundo qui existi é preciso escoiê um lado e fazê a boa luta, ela desceu do balcão e apareceu em pé, ao lado do grandão. levou uma das mãos à testa, parecia secando o suor. depois pareceu ter congelado olhando longe do lugar em que estava, cruzei os braços e abaixei a testa. agora, quis dormir

Esse daqui... apontava com o dedo fura-bolo esticado e duro na direção do grandão com a perna engessada

O que tem ele, avoinha?


já tinha levantado a cabeça do meu descanso temporário. ela subiu e desceu os ombros, fez careta de desprezo. não parecia querer responder. abaixou a voz, parecia querer cantar algum segredo que ia acontecer e não tinha permissão de comentar. tinha aparência de precisar obedecer alguma ordem, uma conveniência que tinha decidido desprezar, Ajuda os precisado, mais vai esquecê pra modo ditê uqui qué: a vida de conforto e uso sem medida das coisa e das pessoa. É fácil desaprendê o lado qui se aprendeu respeitá. Num dia, vai pensá qui é dono ditudo, vai querê cortá as árvore e derrubá o casarão. Vai fazê sabendo uqui tá fazendo. E ocê num vai deixá, mais useu querê não vai tê importância.

fiquei mais duvidando que acreditando. olhei o magrão grandão enfiado no alçapão do teto do rocinante. não sabia porque o magrão ia cortar tantas árvores. não imaginava o motivo para tanto desprezo com a vida. não acreditava na notícia de avoinha, parecia malícia desocupada de qualquer utilidade, E se ele plantar mil para cada árvore arrancada, perguntei e procurei davó com os olhos, ela tinha feito de novo, me deixou conversando sozinho

E ocê credita?

levei susto. ela me apareceu no lado a lado, fumando o fumo de corda do tigão. reconheci pelo aroma doce, parece que ela pegou gosto. ofereceu. rejeitei, mas até que queria fumar junto, E desde quando, neinho?

fiz cara de desentendido e repliquei outra pergunta, Desde quando o quê, davó?

Ocê faz gosto de fumá esse fumo de corda do Tigão?

Eu não fumo, davó. Avoinha faz tanta cara de gosto que me dá cobiça, só pelo jeito de ver avoinha prazeirosa.

Presta tenção, se sua avó pudesse controlá as lei esse apego ia tê otro gosto, otro faro. Ocê sabe como qui é fingimento de acompanhamento... a molecada usa cinco contra um e pensa qui tem companhia de bailarina, olhei avoinha espantado, ela sabia mais coisa de mim que eu mesmo. senti um calorão subir até a bochecha, Num tem precisão de ficá acabrunhado, todo mundo dobra alguma esquina. Fingi qui gosta quando num gosta, falsea qui faz quando não faz, esconde a idiotice. A coisa fica ruim quando a imbecilidade dobra as esquina com ruindade e inventa uqui fô preciso pra enganá com falsidade.

não estava escutando avoinha, pelo menos, achava que olhava encantado a cabeça do magrão, lá fora. o alçapão aberto. levei a mão no pescoço, segurei minha guia. lembrei o aviso de avoinha, Essa guia tá pendurada em ocê pra proteção do amô qui tá dentro de ocê e do desamô qui vem de fora.

não rezei nem pedi, mas quase vi o joão torto raspar o teto do rocinante em algum fio embarrigado pelo caminho. e lá se foi embora a cabeça do cortador de árvores e demolidor do casarão. o mal cortado pela cabeleira

Neinho, cabeça tem dono. E ocê precisa respeitá a cabeça.

Eu sei, avoinha... eu sei, mas é um pecado cortar as árvores e derrubar o casarão, davó estava pendurada no corrimão aéreo, balançava agarrada numa das mãos. e no que deixei as vistas piscarem ela desapareceu entre o povaréu

o joão lá na frente, eu aqui atrás

ninguém descia nas paradas do rocinante. as pessoas se empurravam para subirem. na porta da frente, uma velhinha gritava para que o torto abrisse a porta. fiz que não vi e nem ouvia. ninguém viu. até que o joão torto viu, Abre, motorista... quero subir!

o joão abriu a porta. pensando no mundo que não existia - antes da velhinha subir, e passou a existir depois da velhinha subir - sabe-se lá, se devia ou não abrir a porta. mas ele abriu, Senhora... não pode...

ela subiu com a mesma agilidade da língua, Com licença, obrigada... com licença... desculpe, desculpe... eu pedi a sua licença... obrigada, foi se enfiando na contramão até ficar atrás do motorista. um pressentimento de desconfiança me fez pensar que o torto não tomou a melhor decisão. por fim, pelo que me consta, daquela viagem em diante, os velhinhos iriam querer subir na porta da frente. foi o primeiro movimento para deixar a catraca livre para os velhos. estava feito. foi a primeira vez que subiriam na frente e não pagariam

Tem causo, neinho, quié preciso empurrá na goela debaixo dos fazedô das lei.

davó sabia antes que ninguém. não sei por que avoinha resolveu entrar e sair do outro mundo. tinha medo de perguntar o que ela ainda podia querer ou imaginar. aquela velhinha começou um querer que não parou mais, Desculpe o mau jeito, seu motorista... mas a chuva... quem sabe, num dia destes tenham o direito de lugares reservados. têm coisas que levam algum tempo a mais para serem acontecidas, como avoinha não se cansa de repetir, A imbecilidade precisa sê convencida qui a vida de todos tem importância, mais tem vida qui precisa recebê mais cuidado inté pudê seguí sozinha nas própria perna. Cadum tem seu destino de viajante pra fazê e pra chegá.


Desculpe o mau jeito...

o torto não respondeu. olhou de má vontade nos espelhos e acionou as portas. minha atenção foi desviada das portas. ouvi vozes de crianças. pelo menos, duas crianças estavam no rocinante. escutava a falação, mas não vi as crianças subirem. fiquei preocupado. não brinco com a proteção das crianças. conheço bem a dificuldade de ser pequeno entre selvagens grandões. fiquei todo retesado, a vista estrelada procurando um contato. arregaladas. devia estar com a minha pior cara de assustado. depois que ouvi a voz da mãezinha fiquei menos tenso. pareceu-me ser a mãe. orientação de mãe é diferente, parece toda angústia e preocupação, Mauro, Mauro... onde estão os teus irmãos?

Aqui, mãe... não conseguia vê-los, mas me pareceu que a mãezinha e os pintinhos estavam se reunindo. subi no banco e lá do alto da ponta dos pés, constatei o meu alívio. estavam seguros com a mãe

a porta do fundo não fechava. o torto tentava fechar e abria. abrir e fechar. fechar e abrir, Um passinho mais à frente, por favor! A porta precisa fechar, o empurra-empurra continuava. o gado amassado. ninguém queria ficar para trás, esperando o próximo carregamento. sabe-se lá, quando viria. eu não sabia. em cada parada mais passageiros, mais apertos, mais tarifa para o patrão da sociedade anônima, mais conformação com a própria amargura, mais nada, Feeeechaaa!

a porta fecha. obediente. desapaixonada. neutra. isenta. incaracterística. ela obedece ao joão torto

o ar escapando do balcão. o joão acelerando o rocinante. a lata com as sardinhas arrancava da parada. um exército de obreiros retornando para suas casas. desconjuntados. injuriados. sem rufar de tambores. sem clarins. anônimos. suados. escurecidos. o rocinante escurecia no crepúsculo. a memória é cega; assim conseguimos fazer tudo igual, todos os dias, com cara de novidade, Espera! Espera, João!

alguém batia na barriga do rocinante. e nas pernas. e nas ancas. desviei o pescoço a tempo de ouvir o relincho do animal. empinou e se agarrou sobre as duas patas dianteiras. todos foram jogados para frente. a porta traseira liberou

um cego. a sua bengala. e a chuva. não faltava mais nada, Calma, miúdo. Quando ocê acha qui tá ruim, pode ficá pió, as lembranças davó martelavam minha cabeça, o neinho inda não viu tudo, espera começá chuvê.

João, segura o 69! Tem um cego querendo subir!

o torto imobilizou o animal, Cego?

gritou do seu lugar protegido no rocinante. depois, pediu à velhinha parada atrás dele, Senhora... senhora... precisa liberar o espelho.

É... um cego! respondeu a velhinha com os cabelos ficando arrepiados, O senhor quer o espelho livre? Pare de entupir pessoas aqui dentro! Onde o senhor acha que posso ir? Sentada no seu colo?

pronto, pensei. estava virando zona. torcida de futebol. assovios. gritos. xingamentos para a mãe do árbitro. os meninos chorando assustados. a mãezinha cantando uma canção de ninar. o grandão tirou a cabeça do alçapão e me olhou. abriu a boca, mas se engoliu. não disse, mas percebi que ele pensou a situação toda e achou que seria melhor ficar em silêncio. o baixinho continuava agarrado em sua cinta. dormindo. a professora sorria seu sorriso mais amarelo. coitada. fiquei com dó. um dia inteiro competindo com gritos e desaforos. e agora, isso, Lugar de cego e velho é em casa, o torto não tem noção do perigo, mas, mesmo contra a própria vontade, depois de acionado os freios e aberto a porta da frente, esperava pelo cego. bem que vale aquele ditado, Depois da porteira aberta passa a boiada inteira.

lembrei a escola e o senhor newton, A lei da inércia.

só avoinha não mexeu. nadica de qualquer pouquinho. paradinha me olhando. sorrindo. tive vontade de lhe desaforar

Mifioneto, queria continuá a história do preto Josino, não acreditei no que estava ouvindo. davó parecia ser a causa daqueles descontroles que não paravam. parecia querer me desaconselhar da vida de cobrador das passagens. não acreditei no que tava pensando, Essa não é a melhor hora, avoinha.

Bobice. Continuo depois do cego subí, estava com a língua preparada para retrucar avoinha quando deu-se o aviso do desastre, Chuva!

virei o nariz para trás, lá tava a chuva vindo forte e graúda, O cego! O cego!

um rapaz cabeludo até os ombros, o mesmo que acabara de levantar para a velhinha encrespada sentar, desceu para ajudar o cego. lembrei-me da sugestão davó para largar a ocupação sem serventia de cobrar passagens e procurar uma colocação de mais utilidade, como um cego precisando de guia. respondi que o salário também precisava ter serventia, mas que ia dar mais atenção. assunto de futuro.

os dois subiu no rocinante. o cego enfiou a mão no bolso e retirou o dinheiro da passagem. o dinheiro passou de mão em mão. mãos solidárias. não precisava troco. girei a catraca, Esse é o que passa na praça dos pedalinhos?

Vai até a Boa Esperança, respondeu o futuro matador de árvores, Obrigado.




olhei o magrão e não pude deixar de pensar nas pequenas solidariedades e nas pequenas omissões, uma produz cachopas de lembranças graúdas, enquanto a outra... duradouros esquecimentos



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