domingo, 2 de novembro de 2025

crônica - um professor bagunceirinho (11)

um professor bagunceirinho (11)

baitasar

   começo o ritual diário da chamada, o registro histórico das presenças no início de mais um dia letivo, os nomes flutuando na memória, alguns se escondendo na rotina que emerge, o registro que o tempo determina, cada nome uma história, uma presença marcada; lógico, o livro das presenças aberto ainda não revela a jornada traçada, é apenas o registro do presente tornado passado, a formalidade de um ritual importante sobre quem está presente ou ausente, um fio que conecta alunos e alunas, o testemunho da continuidade, preservando o tempo, guardando nomes enquanto a rotina se estrutura, cada nome é uma palavra, cada presença uma janela de possibilidades, cada falta uma digital da história que esvazia a escola
   o case sobre a mesa
   hoje, a curiosidade se parece com uma chama que arde serena e sem véu, os olhares viajando fagueiros e delicados, as perguntas contidas, represadas e inquietas, não querem atrapalhar mais que o necessário, buscam por respostas urgentes às suas perguntas, acho que aprendem a crescer – estufando o aprendizado do adiamento e da tardança – , minha voz se espalha sozinha, no brilho dos olhos o desejo, talvez de tocar estrelas, buscar o novo, é visivelmente um fogo intenso e controlado
   está mais descomplicado e sossegado acomodar a turma em seus lugares, a bisbilhotice com o estojo preto e imenso do sax estabelece um acordo entre essa criançada interessante e interessada, querem as respostas sobre o caso do estojo, um mistério a ser desvendado
   termino a chamada sem nenhuma interrupção, eu mesmo não acredito, surpresa, continuam em silêncio, as bocas abertas caladas, o inesperado dançando em redor, aquele mundo se curvando ao novo encanto, um segredo irá emergir do estojo
   e se o espanto, apesar de inesperado, não trazer maravilhamento ou alegria, é um risco, cheguei com o estojo sem anúncio ou convite, e se essa tal admiração se mostrar sem brilho ou luz que acalente seus corações, não tenho plano B, o eco destas dúvidas se repetindo, uma sombra silente assusta, desvia o curso, perturba a paz, reinventa a confusão, A surpresa que traz, não traz o que faz, repeti para mim, antes de guardar o caderno estojo da chamada

Professor...

O que foi, Ana?

   olho sobre o estojo, está sentada na primeira fórmica verde, colada na minha mesa, os olhos negros estalados atrás daquela bolsa imensa, o cabelo crespo empoderando autonomia, os fios sem definição, as pontas repicadas, bastante volume e com formato redondo, tanta beleza humana diferente em cada uma dessas crianças

Vai demorar?

   minha risada surge enquanto percebo o brilho da que desconhece, onde perguntas florescem com pressa, quer diminuir a distância, o mistério alentando o encontro, vai começar o vaivém das perguntas, o tropeço doce que tenta entender o que não é seu, a tela em branco, a dúvida que convida caminharmos juntos até descobrirmos que talvez o segredo não seja possuir a verdade, mas abrir a possibilidade da surpresa e do encantamento

O que vai demorar, Ana?

   a resposta vem rápida, sabe que estou bordejando sobre o prato principal – que para mim era o acessório acidental –, O senhor abrir esse troço e mostrar o que tem dentro...
   confesso que ainda não sei bem o que estou fazendo, e incoerente, a minha resposta segue o raciocínio do planejamento, não está errada, mas eu acabei de colocar um bode na sala, Não, não vai demorar. Mas antes temos algumas tarefas para fazer. Assim, que terminarmos eu mostro o que tem dentro do estojo.
   um desassossego instantâneo se estabelece na turma, o vento que não para, a ebulição do mar revolto sem lua, pensamentos acelerados, sem repouso, a tensão, a dor, um fôlego intenso busca o inalcançado, incerto, ansioso, passos se aproximam, Felipe, senta no seu lugar!

Eu posso olhar de pertinho?

Não. Olhem dos seus lugares por enquanto...

   sei que o desejo não cabe em diques, tampouco é contido com gritos e ameaças, ele atravessa frestas e fissuras, gritos servem apenas para desgastar todos, ensinam apenas a submissão ao mais forte ou àquela que grita mais alto

Ah, professor! Mostra o que tem dentro desse caixão!

   o desejo encontra rotas novas, contorna barreiras, transforma o medo em mapa

Calma, Graziela...

   olho a turma, a curiosidade mostra sua semente que insiste em nascer, um vento que arrebola a pele do silêncio confortável, arrancando as pétalas do repouso, uma a uma, bem me quer mal me quer, bem me quer mal me quer, acende uma fogueira na barriga da noite, as faíscas das labaredas não pedem licença ao tamborilar suave do desassossego, o peito inquieto não se cala, sem dor, sem alívio, é apenas um pressentimento, uma curiosidade que transforma a sala em uma caverna que não se aquieta com as sombras, onde cada criança guarda uma hipótese é o coração aprendendo ouvir o sussurro que ainda não sabe falar, o novo escondido que faz gemer, empurra para dentro do sonho a curiosidade, não é fuga, é vida em movimento

Está bem... está bem! Vou abrir a caixa da surpresa. Mas ninguém vai escapar das tarefas de hoje!

   a válvula se abrindo, empurrando as tarefas ensaiadas e pensadas para algum canto da sala, e junto, a prudência e a ordem, a contenção para manter o equilíbrio se rompe, procura o curso livre, gritos de alegria, a vitória conquistada pela insistência, ecos que não se acabam, a luta persistente que insiste, chama, segue em frente, ensaia voos, sorrisos e lágrimas fecundam sonhos, geram ventos, a esperança tece a vitória que renasce na dança, faz a sala estremecer de tanto querer, levantam e gritam sua vitória, não há tempo nem muro que os contenha, nem esse professor pode ou quer conter essa alegria que nos chama, a vida insiste em vencer

Então, façam silêncio e sentem em seus lugares!

   o silêncio chega rápido, as cadeiras de fórmica verde são ocupadas de imediato, já não me espanto, esperam pelo segredo a ser sussurrado, o instante mudo, um espaço silencioso para enxergar, a calma instantânea onde quase tudo se revela, uma possível verdade oculta a ser revelada, o detalhe esquecido, observo meus alunos e alunas, percebo que a curiosidade e a coragem estão me permitindo aprender o momento para descobrir que o que é oculto precisa curiosidade para ser desvendado, o rio dos pensamentos sempre procura o curso da liberdade, a repressão não é morada segura
   pego o estojo sobre a fórmica verde da minha mesa
um professor bagunceirinho (11)

Nenhum comentário:

Postar um comentário