quinta-feira, 30 de junho de 2016

7.O Livro dos Abraços - A arte para as crianças - Eduardo Galeano

Eduardo Galeano


7. O Livro dos Abraços


A arte para as crianças 


Ela estava sentada numa cadeira alia, na frente de um prato de sopa que chegava à altura de seus olhos. Tinha o nariz enrugado e os dentes apertados e os braços cruzados. A mãe pediu ajuda: 

— Conta uma história para ela, Onélio — . Pediu — Conta, você que é escritor... 

E Onélio Jorge Cardoso, esgrimindo a colher de sopa, fez seu conto: 

— Era uma vez um passarinho que não queria comer a comidinha. O passarinho tinha o biquinho fechadinho, fechadinho, e a mamãezinha dizia: "Você vai ficar aviãozinho, passarinho, se não comer a comidinha". Mas o passarinho não ouvia a mamãezinha e não abria o biquinho... 

E então a menina interrompeu: 

— Que passarinho de merdinha — opinou. 


A arte das crianças

Mario Montenegro canta os contos que seus filhos lhe contam. Ele senta no chão, com seu violão, rodeado por um círculo de filhos, e essas crianças ou coelhos contam para ele a história dos setenta e oito coelhos que subiram um em cima do outro para poder beijar a girafa, ou contam a história do coelho azul que estava sozinho no meio do céu: uma estrela levou o coelho azul para passear pelo céu, e visitaram a lua, que é um grande país branco e redondo e todo cheio de buracos, e andaram girando pelo espaço, e saltaram sobre as nuvens de algodão, e depois a estrela se cansou e voltou para o país das estrelas, e o coelho voltou para o país dos coelhos, e lá comeu milho e cagou e foi dormir e sonhou que era um coelho azul que estava sozinho no meio do céu.


Os sonhos de Helena

Naquela noite, os sonhos faziam fila, querendo ser sonhados, mas Helena não podia sonhá-los todos, não dava. Um dos sonhos, desconhecido, se recomendava: 


— Sonhe-me, vale a pena. Sonhe-me, que vai gostar. Faziam fila alguns sonhos novos, jamais sonhados, mas Helena reconhecia o sonho bobo, que sempre voltava, esse chato, e outros sonhos cômicos ou sombrios que eram velhos conhecidos de suas noites voadoras.


Viagem ao país dos sonhos

Helena acudia, em carruagem, ao país onde os sonhos são sonhados. Ao seu lado, também sentada na boléia, ia a cachorrinha Pepa Lumpen. Pepa levava, debaixo do braço, uma galinha que ia atuar em seu sonho. Helena trazia um imenso baú cheio de máscaras e trapos coloridos. 


O caminho estava muito cheio de gente. Todos iam para o país dos sonhos, e faziam muita confusão e muito ruído ensaiando os sonhos que iam sonhar, e por isso Pepa ia resmungando, porque não a deixavam concentrar-se como se deve.


O país dos sonhos

Era um imenso acampamento ao ar livre. Das cartolas dos magos brotavam alfaces cantoras e pimentões luminosos, e por todas as partes havia gente oferecendo sonhos para trocar. Havia os que queriam trocar um sonho de viagem por um sonho de amores, e havia quem oferecesse um sonho para rir a troco de um sonho para chorar um pranto gostoso. 


Um senhor andava ao léu buscando os pedacinhos de seu sonho, despedaçado por culpa de alguém que o tinha atropelado: o senhor ia recolhendo os pedacinhos e os colava e com eles fazia um estandarte cheio de cores. 

O aguadeiro de sonhos levava água aos que sentiam sede enquanto dormiam. Levava a água nas costas, em uma jarra, e a oferecia em taças altas. 

Sobre uma torre havia uma mulher, de túnica branca, penteando a cabeleira, que chegava aos seus pés. O pente soltava sonhos, com todos seus personagens: os sonhos saíam dos cabelos e iam embora pelo ar.


Os sonhos esquecidos


Helena sonhou que deixava os sonhos esquecidos numa ilha. Claribel Alegria recolhia os sonhos, os amarrava com uma fita e os guardava bem guardados. Mas as crianças da casa descobriam o esconderijo e queriam vestir os sonhos de Helena, e Claribel, zangada, dizia a eles: 


— Nisso ninguém mexe. 

Então Claribel telefonava para Helena e perguntava: 

— O que eu faço com seus sonhos?


O adeus dos sonhos

Os sonhos iam viajar. Helena ia até a estação do trem. Da plataforma, dizia adeus aos sonhos com um lencinho.




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Titulo original: El libro de los abrazos Primeira edição em junho 1991. Tradução: Eric Nepomuceno Revisão: Ana Teresa Cirne Lima, Ester Mambrini e Valmir R. Cassol Produção: Jó Saldanha e Lúcia Bohrer ISBN: 85.254.0306-0 G151L Galeano, Eduardo O livro dos abraços / Eduardo Galeano; tradução de Eric Nepomuceno. - 9. ed. - Porto Alegre: L&PM, 2002. 270p.:il.;21cm 1. Ficção uruguaia. I.Título. CDD U863 CDU 860(895)-3 Catalogação elaborada por Izabel A. Merlo, CRB 10/329. Texto e projeto gráfico de Eduardo Galeano © Eduardo Galeano, 1989


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