terça-feira, 1 de dezembro de 2020

OS SERTÕES, Euclides da Cunha - O Homem: II ... A gênese do jagunço

OS SERTÕES 


Euclides da Cunha

Volume 1



O HOMEM




A gênese do jagunço


A demonstração é positiva. Há um notável traço de originalidade na gênese da população sertaneja, não diremos do Norte, mas no Brasil subtropical.

Esbocemo-lo; e para não nos delongarmos demais, afastemo-nos pouco do teatro em que se desenrolou o drama histórico de Canudos, percorrendo rapidamente o rio de S. Francisco, “o grande caminho da civilização brasileira”, conforme o dizer feliz de um historiador.

Vimos, de relance, em páginas anteriores, que ele atravessa as regiões mais díspares. Ampla nas cabeceiras, a sua dilatada bacia colhe na rede de numerosos afluentes a metade de Minas, na zona das montanhas e das florestas. Estreita-se depois passando na parte mediana pela paragem formosíssima dos gerais. No curso inferior, a jusante de Juazeiro, constrita entre pendores que a desnivelam torcendo-a para o mar, torna-se pobre de tributários, quase todos efêmeros, derivando, apertada por uma corredeira única de centenares de quilômetros, até Paulo Afonso — e corta a região maninha das caatingas.

Ora, sob esta tríplice disposição, é um diagrama da nossa marcha histórica, refletindo, paralelamente, as suas modalidades variáveis.

Balanceia a influência do Tietê.

Enquanto este, de traçado incomparavelmente mais próprio à penetração colonizadora, se tornou o caminho predileto dos sertanistas visando sobretudo a escravização e o descimento do gentio, o S. Francisco foi, nas altas cabeceiras, a sede essencial da agitação mineira, no curso inferior o teatro das missões, e na região média a terra clássica do regime pastoril, único compatível com a situação econômica e social da colônia.

Bateram-lhe por igual as margens o bandeirante, o jesuíta e o vaqueiro.

Quando, mais tarde, maior cópia de documentos permitir a reconstrução da vida colonial, do século XVI ao fim do XVIII, é possível que o último, de todo olvidado ainda, avulte com o destaque que merece na formação da nossa gente. Bravo e destemeroso como o primeiro, resignado e tenaz como o segundo, tinha a vantagem de um atributo supletivo que faltou a ambos — a fixação ao solo.

As bandeiras, sob os dous aspectos que mostram, já destacados, já confundidos, investindo com a terra ou com o homem, buscando o ouro ou o escravo, desvendavam desmedidas paragens, que não povoavam e deixavam porventura mais desertas, passando rápidas sobre as “malocas” e as “catas”.

A sua história, às vezes inextricável como os dizeres adrede obscuros dos roteiros, traduz a sucessão e enlace destes estímulos únicos, revezando-se quer consoante a índole dos aventureiros, quer de acordo com a maior ou menor praticabilidade das empresas planeadas. E neste permanente oscilar entre aqueles dous desígnios, a sua função realmente útil, no desvendar o desconhecido, repontava com incidente obrigado, consequência inevitável em que se não cuidava.

Assim é que extinta com a expedição de Glimmer (1601) a visão enganadora da Serra das Esmeraldas, que desde meados do século XVI atraíra para os flancos do Espinhaço, um após outros, inacessíveis a constantes malogros, Bruzzo Spinosa, Sebastião Tourinho, Dias Adorno e Martins Carvalho, e desaparecendo ao norte o país encantado que idealizara a imaginação romântica de Gabriel Soares, grande parte do século XVII é dominada pelas lendas sombrias dos caçadores de escravos, centralizados pela figura brutalmente heroica de Antônio Raposo. É que se haviam apagado quase que ao mesmo tempo as miragens da misteriosa Sabarabuçu e as das Minas de Prata, eternamente inatingíveis; até que, renovadas pelas pesquisas indecisas de Pais Leme, que avivou, depois de um apagamento quase secular, as veredas de Glimmer; alentadas pelas oitavas de ouro de Arzão pisando em 1693 as mesmas trilhas de Tourinho e Adorno; e ao cabo francamente ressurgindo logo depois com Bartolomeu Bueno, em Itaberaba, e Miguel Garcia, no Ribeirão do Carmo, as entradas sertanejas volvessem ao anelo primitivo e, irradiando do distrito de Ouro Preto, se espraiassem de novo, mais fortes, pelo país inteiro.

Ora, durante este período em que, aparentemente, só se observam, no litoral a luta contra o batavo e no âmago dos planaltos o espantoso ondular das bandeiras, surgira na região que interfere o médio S. Francisco um notável povoamento do qual os resultados somente depois apareceram.






Função histórica do rio S. Francisco


Formara-se obscuramente. Determinaram-no, em começo, as entradas à procura das minas de Moreia que embora anônimas e sem brilho parecem ter-se prolongado até ao governo de Lencastre, levando até às serranias de Macaúbas, além do Paramirim, sucessivas turmas de povoadores.1 Vedado nos caminhos direitos e normais à costa, mais curtos porém interrompidos pelos paredões das serras ou trancados pelas matas, o acesso fazia-se pelo S. Francisco. Abrindo aos exploradores duas entradas únicas à nascente e à foz, levando os homens do Sul ao encontro dos homens do Norte, o grande rio erigia-se desde o princípio com a feição de um unificador étnico, longo traço de união entre as duas sociedades que se não conheciam. Porque provindos dos mais diversos pontos e origens, ou fossem os paulistas de Domingos Sertão, ou os baianos de Garcia d’Ávila, ou os pernambucanos de Francisco Caldas, com os seus pequenos exércitos de tabajaras aliados, ou mesmo os portugueses de Manuel Nunes Viana, que dali partiu da sua fazenda do Escuro, em Carinhanha, para comandar os emboabas no Rio das Mortes, os forasteiros, ao atingirem o âmago daquele sertão, raro voltavam.

A terra, do mesmo passo exuberante e acessível, compensava-lhes a miragem desfeita das minas cobiçadas. A sua estrutura geológica original criando conformações topográficas em que as serranias, últimos esporões e contrafortes da cordilheira marítima, têm a atenuante dos tabuleiros vastos; a sua flora complexa e variável, em que se entrelaçam florestas sem a vastidão e o trançado impenetrável das do litoral, com o “mimoso” das planuras e o “agreste” das chapadas desafogadas, todas, salteadamente, nos vastos claros das caatingas; a sua conformação hidrográfica especial de afluentes que se ajustam, quase simétricos, para o ocidente e o oriente ligando-a, de um lado à costa, de outro, ao centro dos planaltos — foram laços preciosos para a fusão desses elementos esparsos, atraindo-os, entrelaçando-os. E o regime pastoril ali se esboçou como uma sugestão dominadora dos gerais.

Nem faltava para isto, sobre a rara fecundidade do solo recamado de pastagens naturais, um elemento essencial, o sal, gratuito, nas baixadas salobras dos “barreiros”.[1]


[1] “Todos os animais buscam com sofreguidão esses lugares, não só mamíferos como aves e repteis. O gado lambe o chão atolando-se nas poças, bebe com delícia aquela água e come o barro.” Escragnolle Taunay. Tratando dos lugares a montante da Barra do Rio Grande, diz Aires de Casal: “Há várias lagoas pequenas em maior ou menor distância do rio, todas de água mais ou menos salobra, em cujas margens o calor do sol faz aparecer sal como geada. A água destas lagoas (e mesmo a doce) filtrada por uma porção de terra adjacente em cochos de pau ou de couro finamente furados e exposta em tabuleiros ao tempo em oito dias cristaliza ficando sal alvo como marinho. Quase todo esse sal para o centro de Minas Gerais.” Corografia Basílica, II, p. 169.

Constitui-se, desta maneira favorecida, a extensa zona de criação de gado que já no alvorecer do século XVIII ia das raias setentrionais de Minas a Goiás, ao Piauí, aos extremos do Maranhão e Ceará pelo ocidente e norte, e às serranias das lavras baianas, a leste. Povoara-se e crescera autônoma e forte, mas obscura, desadorada dos cronistas do tempo, de todo esquecida não já pela metrópole longínqua senão pelos próprios governadores e vice-reis. Não produzia impostos ou rendas que interessavam o egoísmo da coroa. Refletia, entretanto, contraposta à turbulência do litoral e às aventuras das minas, “o quase único aspecto tranquilo da nossa cultura”.1 À parte os raros contingentes de povoadores pernambucanos e baianos, a maioria dos criadores opulentos, que ali se formaram, vinha do Sul, constituída pela mesma gente entusiasta e enérgica das bandeiras.





Os jagunços: colaterais prováveis dos paulistas


Segundo o que se colhe em preciosas páginas de Pedro Taques, foram numerosas as famílias de S. Paulo que, em contínuas migrações, procuraram aqueles rincões longínquos e acredita-se, aceitando o conceito de um historiógrafo perspicaz, que o “vale de S. Francisco já aliás muito povoado de paulistas e de seus descendentes desde o século XVII, tornou-se uma como colônia quase exclusiva deles”. É natural por isto que Bartolomeu Bueno, ao descobrir Goiás, visse, surpreendido, sinais evidentes de predecessores, anônimos pioneiros que ali tinham chegado, certo, pelo levante, transmontando a Serra do Paranã; e que ao se reabrir em 1697 o ciclo mais notável das pesquisas do ouro, nas agitadas e ruidosas vagas de imigrantes, que rolavam dos flancos orientais da Serra do Espinhaço ao talvegue do Rio das Velhas, passassem mais fortes talvez, talvez precedendo as demais do descobrimento das minas de Caeté, e sulcando-as de meio a meio, e avançando em direção contrária como um refluxo promanado do Norte, as turmas dos “baianos”, termo que como o de “paulista” se tornara genérico no abranger os povoadores setentrionais.




continua 042...

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Leia também:

OS SERTÕES, Euclides da Cunha - A Terra: I Preliminares
OS SERTÕES, Euclides da Cunha - A Terra: I A entrada do sertão
OS SERTÕES, Euclides da Cunha - A Terra: I Primeiras impressões
OS SERTÕES, Euclides da Cunha - A Terra: II Do alto de Monte Santo
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OS SERTÕES, Euclides da Cunha - O Homem: I Complexidade do problema etnológico no Brasil
OS SERTÕES, Euclides da Cunha - O Homem: I Variabilidade do meio físico
OS SERTÕES, Euclides da Cunha - O Homem: I ...e sua reflexão na História
OS SERTÕES, Euclides da Cunha - O Homem: II ... A gênese do jagunço
OS SERTÕES, Euclides da Cunha - O Homem: II ... O vaqueiro


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Os Sertões, de Euclides da Cunha

Fonte: CUNHA, Euclides da. Os Sertões. São Paulo: Três, 1984 (Biblioteca do Estudante). 

Texto proveniente de: A Biblioteca Virtual do Estudante Brasileiro A Escola do Futuro da Universidade de São Paulo Permitido o uso apenas para fins educacionais.



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