terça-feira, 1 de dezembro de 2020

Gabriel G Márquez - Cem Anos de Solidão (2.1) - A nova casa...

 Cem Anos de Solidão


Gabriel Garcia Márquez


(2.1)



para jomí garcía ascot 

e maría luisa elío





A NOVA CASA, branca como uma pomba, foi estreada com um baile. Úrsula tinha tido aquela ideia na tarde em que viu Rebeca e Amaranta transformadas em adolescentes, e quase se pode dizer que o principal motivo da construção foi o desejo de conseguir para as moças um lugar digno onde receber as visitas. Para que nada deixasse a desejar, trabalhou como um mouro, enquanto se executavam as reformas, de modo que antes que estivessem terminadas já tinha encomendado custosos objetos para a decoração e os serviços de copa, e a invenção maravilhosa que haveria de suscitar o assombro do povo e o júbilo da juventude: a pianola. Levaram-na aos pedaços, embalada em vários caixotes, que foram descarregados junto com os móveis vienenses, os cristais da Boemia, a louça da Companhia das Índias, as toalhas da Holanda e uma rica variedade de lâmpadas e lampiões, e floreiras, guardanapos. A casa importadora enviou por sua conta um técnico italiano, Pietro Crespi, para que armasse e afinasse a pianola, instruísse os compradores do seu manejo e os ensinasse a música da moda impressa nos seis rolos de papel. 

Crespi era jovem e louro, o homem mais belo e galante que se havia visto em Macondo, tão escrupuloso no vestir que, apesar do calor sufocante, trabalhava de camiseta brocada e um grosso paletó de pano escuro. Ensopado de suor, mantendo uma distância reverente dos donos da casa, esteve semanas trancado na sala, numa dedicação semelhante à de Aureliano na sua oficina de ourives. Certa manhã, sem abrir a porta, sem convocar nenhuma testemunha para o milagre, colocou o primeiro rolo na pianola, e o martelar atormentador e o ranger constante das ripas de madeira cessaram num silêncio de assombro, diante da ordem e da limpeza da música. Todos se precipitaram para a sala. José Arcadio Buendía pareceu fulminado, não pela beleza da melodia, mas pelo movimento autônomo do teclado da pianola, e instalou na sala a máquina de daguerreotipia de Melquíades, com a esperança de obter o retrato do executante invisível. Neste dia, o italiano almoçou com eles. Rebeca e Amaranta, servindo a mesa, intimidaram-se com a fluidez com que usava os talheres aquele angélico de mãos pálida e sem anéis. Na sala de estar, contígua à de visitas, Pietro Crespi ensinou-as a dançar. Indicava-lhes os passos sem tocá-las, marcando o compasso um metrônomo sob a amável vigilância de Úrsula, que não abandonou a sala um só instante enquanto as filhas recebiam as lições. Pietro Crespi vestia então umas calças especiais, muito flexíveis e justas, e umas sapatilhas de balé. “Você não precisa se preocupar tanto”, observava José Arcadio à sua mulher. “Esse sujeito é maricas.” Ela, porém, não desistiu da vigilância enquanto não terminou a aprendizagem e o italiano não foi embora de Macondo. Então começou a organização da festa. Úrsula fez uma lista severa dos convidados na qual os únicos escolhidos eram os descendentes dos fundadores, exceto a família de Pilar Ternera, que já tinha tido outros dois filhos de pais desconhecidos. Era na realidade uma seleção de classe, só que determinada por sentimentos de amizade, pois os favorecidos eram não só os mais antigos íntimos da casa de José Arcadio Buendía, desde antes de empreender o êxodo que culminou com a fundação de Macondo, mas também os seus filhos e netos eram os companheiros habituais de Aureliano e Arcadio desde a infância, e as suas filhas eram as únicas que visitavam a casa para bordar com Rebeca e Amaranta. O Sr. Apolinar Moscote, o governante benévolo cuja atuação se reduzia a sustentar com os seus escassos recursos os dois guardas armados com cassetetes de madeira, era uma autoridade ornamental. Para ajudar nas despesas domésticas, suas filhas abriram um ateliê de costura, onde ao mesmo tempo que faziam flores de feltro, preparavam docinhos de goiaba e escreviam cartas de amor por encomenda. Mas, apesar de serem recatadas e prestativas, as mais belas do povoado e as mais preparadas nas danças modernas, não conseguiram ser levadas em conta para a festa.

Enquanto Úrsula e as moças desencaixotavam os móveis, poliam as louças e penduravam quadros de donzelas em barcas carregadas de rosas, infundindo um sopro de vida nova nos espaços pelados que os pedreiros construíram, José Arcadio Buendía renunciou à perseguição da imagem de Deus, convencido da sua inexistência, e estripou a pianola para decifrar a sua magia secreta. Dois dias antes da festa, afogando-se numa poça de cravelhas e martelos que sobravam, fazendo lambança entre um meandro de cordas que desenrolava por um extremo e que tornavam a se enrolar pelo outro, conseguiu descompor o instrumento. Nunca houve tantos sobressaltos e correrias como naqueles dias, mas as novas lâmpadas de alcatrão se acenderam na data e na hora previstas. A casa se abriu, ainda cheirando a resinas e a cal úmida, e os filhos e netos dos fundadores conheceram a varanda dos fetos e das begônias, os aposentos silenciosos, o jardim saturado pela fragrância das rosas, e se reuniram na sala de visitas, diante da invenção desconhecida que tinha sido coberta por um lençol branco. Os que conheciam o piano-forte, popular em outras povoações do pantanal, ficaram um pouco decepcionados; mais amarga ainda foi a desilusão de Úrsula, quando colocou o primeiro rolo para que Amaranta e Rebeca abrissem o baile, e o mecanismo não funcionou. Melquíades, já quase cego, e caindo de velhice, recorreu às artes da sua antiquíssima sabedoria para tentar consertá-lo. Por fim, José Arcadio Buendía conseguiu mover por engano um dispositivo emperrado, e a música saiu, primeiro aos borbotões, e logo num manancial de notas arrevesadas. Batendo nas cordas, colocadas sem nem concerto e afinadas com temeridade, os martelos se desencaixaram. Mas os teimosos descendentes dos vinte e intrépidos que desbravaram a serra em busca do mar pelo Ocidente passaram por cima dos escolhos do quiproquó melódico e o baile se prolongou até o amanhecer.

Pietro Crespi voltou para montar a pianola de novo. Rebeca e Amaranta o ajudaram a ordenar as cordas e o secundaram nas suas risadas pelo arrevesado das valsas. Era extremamente afetuoso e de tão boa índole que Úrsula renunciou à vigilância. Na véspera da sua viagem, improvisou-se com a pianola restaurada um baile de despedida, e ele fez com Rebeca uma demonstração virtuosística das danças modernas.

Arcadio e Amaranta se igualaram em graça e destreza. Mas a exibição foi interrompida porque Pilar Ternera, que estava com os curiosos, atracou-se às mordidas e puxões com uma mulher que se atreveu a comentar que o Arcadio tinha nádegas de mulher. Por volta da meia noite, Pietro Crespi se despediu com um discursinho sentimental, prometeu voltar muito brevemente. Rebeca o acompanhou até porta e, logo depois de ter fechado a casa e apagado as lâmpadas, foi para o quarto chorar. Foi um pranto inconsolável que se prolongou por vários dias e cuja causa nem Amaranta soube. Não era estranho o seu hermetismo. Embora parecesse expansiva e cordial, tinha um temperamento e um coração impenetrável. Era uma adolescente esplêndida, de ossos largos e firmes, mas se obstinava em continuar usando a cadeirinha de balanço com que chegou à casa, muitas vezes reforçada e já desprovida de braços. Ninguém havia descoberto que ainda nessa época conservava o hábito de chupar o dedo. Por isso não perdia ocasião de se fechar no banheiro, e tinha adquirido o costume de dormir com a cara virada para a parede. Nas tardes de chuva, bordando com um grupo de amigas na varanda das begônias, perdia o fio da conversa e uma lágrima de saudade lhe salgava o céu da boca quando via as faixas de terra úmida e os montículos de barro construídos pelas minhocas no jardim. Estes prazeres secretos, vencidos em outros tempos pelas laranjas com ruibarbo, irromperam num desejo irreprimível quando começou a chorar. Voltou a comer terra. Da primeira vez, fê-lo quase por curiosidade, certa de que o gosto ruim seria o melhor remédio contra a tentação. E, com efeito, não pôde suportar a terra na boca. Mas insistiu, vencida pela ânsia crescente, e pouco a pouco foi satisfazendo o apetite ancestral, o gosto pelos minerais primários, a satisfação sem par do alimento original. Jogava punhados de terra nos bolsos e os comia aos grãozinhos, sem ser vista, com um confuso sentimento de felicidade e raiva, enquanto adestrava suas amigas nos pontos mais difíceis e conversava sobre outros homens que não mereciam o sacrifício de que se comesse por eles a cal das paredes. Os punhados de terra faziam menos remoto e mais certo o único homem que merecia aquela degradação, como se o chão que ele pisava com as suas finas botas de verniz em outro lugar do mundo transmitisse a ela o peso e a temperatura do seu sangue, num sabor mineral que deixava uma cinza áspera na boca e um sedimento de paz no coração. Uma tarde, sem nenhum motivo, Amparo Moscote pediu licença para conhecer a casa. Amaranta e Rebeca, desconcertadas pela visita imprevista, atenderam-na com um formalismo duro. Mostraram-lhe a mansão reformada, fizeram-na ouvir os rolos da pianola e lhe ofereceram laranjada com biscoitinhos. Amparo deu uma lição de dignidade, de encanto pessoal, de boas maneiras, que impressionou Úrsula nos breves instantes em que assistiu à visita. Ao fim de duas horas, quando a conversa começava a arrefecer, Amparo aproveitou um descuido de Amaranta e entregou uma carta a Rebeca. Esta conseguiu ver o nome da mui ilustríssima senhorita D. Rebeca Buendía, escrito com a mesma letra regular, a mesma tinta verde e a mesma disposição das palavras com que estavam escritas as instruções de manejo da pianola, e dobrou a carta com a ponta dos dedos e escondeu-a no seio, olhando para Amparo Moscote na expressão de gratidão sem fim nem condições e uma calada promessa de cumplicidade até a morte. A repentina amizade de Amparo Moscote e Rebeca Buendía despertou as esperanças de Aureliano. A lembrança da pequena Remedios não tinha deixado de torturá-lo, mas não encontrava oportunidade de vê-la. Quando passeava pelo povoado com os seus amigos mais próximos, Magnífico Visbal e Gerineldo Márquez — filhos dos fundadores de iguais nomes — procurava-a com olhar ansioso no ateliê de costura e só via as irmãs mais velhas. A presença de Amparo Moscote na casa foi como uma premonição. “Tem que vir com ela”, se dizia o em voz baixa. “Tem que vir.” Tantas vezes repetiu, e com tanta convicção, que uma tarde em que moldava na oficina um peixinho de ouro teve a certeza de que ela tinha respondido ao seu chamado. Pouco depois, com efeito, ouviu a vozinha infantil, e ao levantar a vista com o coração gelado de pavor viu a menina na porta, com um vestido de organdi rosado e botinhas brancas.

— Não entre aí, Remedios — disse Amparo Moscote no corredor. — Eles estão trabalhando.

Aureliano não lhe deu tempo de obedecer. Levantou o peixinho dourado preso numa correntinha que lhe saía boca e disse:

— Entre.

Remedios se aproximou e fez algumas perguntas sobre o peixinho, que Aureliano não pôde responder devido a um repentino ataque de asma. Queria ficar para sempre junto dessa pele de lírio, junto desses olhos de esmeralda, muito perto dessa que a cada pergunta lhe dizia senhor com o mesmo respeito com que o dizia a seu pai. Melquiades estava no canto, à escrivaninha, garranchando signos indecifráveis. Aureliano o odiou. Não pôde fazer nada, a não ser dizer a Remédios que lhe ia dar de presente o peixinho, e a menina se assustou tanto com o oferecimento que abandonou às carreiras a oficina. Naquela tarde, Aureliano perdeu a recôndita paciência com que tinha esperado a ocasião de vê-la. Descuidou do trabalho. Chamou-a muitas vezes, em desesperados esforços de concentração, mas Remedios não respondeu. Procurou-a no ateliê de suas irmãs, nas cortinas da sua casa, no escritório do seu pai, mas a encontrou somente na imagem que saturava sua própria e terrível solidão. Passava horas inteiras com Rebeca na sala de visitas, escutando as valsas da pianola. Ela escutava porque era a música com que Pietro Crespi a tinha ensinado a dançar. Aureliano escutava porque tudo, até a música, lhe recordava Remédios. A casa se encheu de amor. Aureliano expressou-o em versos que não tinham princípio nem fim. Escrevia-os nos ásperos pergaminhos que lhe dava Melquíades, nas paredes do banheiro, na pele dos braços, e em todos aparecia Remedios transfigurada: Remedios no ar soporífero das duas da tarde, Remedios na calada respiração das rosas Remedios na clepsidra secreta das mariposas, Remedios no vapor do pão ao amanhecer Remedios em todas as partes e Remedios para sempre. Rebeca esperava o amor às quatro da tarde, bordando junto à janela. Sabia que a mula do correio não chegava senão de quinze em quinze dias, mas a esperava sempre, convencida de que ia chegar um dia qualquer por engano. Aconteceu exatamente o contrário: uma vez a mula não chegou na data prevista. Louca de desespero, Rebeca se levantou à meia-noite e comeu punhados de terra no jardim, com avidez suicida, chorando de dor e fúria, mastigando minhocas macias e espedaçando os dentes nas cascas de caracóis. Vomitou até o amanhecer. Afundou num estado de prostração febril, perdeu a consciência e o coração se abriu num delírio sem pudor. Ùrsula, escandalizada, forçou a fechadura do baú e encontrou no fundo, atada com fitas cor-de-rosa, as dezesseis cartas perfumadas e os esqueletos de folhas e pétalas conservadas em livros antigos e as borboletas que ao toca-las se converteram em pó.





continua página 45...

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