Manoel Bomfim
O Brasil Nação volume 2
SEGUNDA PARTE
TRADIÇÕES
À glória de
CASTRO ALVES
Potente e comovida voz de revolução
CASTRO ALVES
Potente e comovida voz de revolução
capítulo 6
novo ânimo
§ 56 – O último romântico
Castro Alves, que fecha deslumbrantemente o ciclo dos românticos brasileiros, reproduz a carreira trágica de Álvares de Azevedo. Esta aproximação não significa, todavia, admitir que o poeta de Vozes d’África repita o estro encantado do romântico de Noites da Taberna. Sentindo a morte, no seus dezoito anos, Álvares de Azevedo, imediatamente inspirado do segundo romantismo, infundiu de morbidez a sua musa, de tal sorte que a sua poesia é uma floração de melancolia ativa, por entre tonalidades de emoção, num fundo de pesar que a mocidade mal disfarçava. Mas, tal é o vigor do seu estro que a dolência envolvente dos seus cantos deixa de ser queda de tônus e palidez morta, para impor-se numa lividez luminosa, luxuriante. Castro Alves nunca foi um melancólico. É o seu traço pessoal, no lirismo soluçante que vem de Gonçalves Dias a Varela. A sua lírica amorosa são transes de afetos realmente sentidos, vivamente pessoais, e, com isso, sucedem-se as estâncias de saudades, ciúmes, coração dilacerado... O poeta, porém, não gemerá... senão que desatará em gritos de despeito, uivos de dó, rugidos de desespero, contorções de uma sensibilidade túrgida de paixões... E assim passam os momentos que seriam para lamentos e tórpida dolência.
Ciúme! dor! sarcasmo! – Aves da noite!
Vós povoais-me a solidão sombria,
Quando nas trevas a tormenta ulula
Um uivo de agonia!...
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Sinto que vou morrer! Posso por tanto
A verdade dizer-te santa e nua:
Não quero mais teu amor!... Porém minh’alma
Aqui, além, mais longe, é sempre tua...
O poeta de Dama Negra afirmou o seu estro como a consciência de um amor terminante, efetivo, vivido, na mente e na realidade. A imaginação alteava-se em voos de condor, mas sempre túrgida de sensualidade. E, com isto, foi o temperamento mais poderoso na vida do nosso lirismo. A sua poesia, franca, potente, iluminada de ideal, foi também um mundo de sensações onde palpitavam paixões reais. Outros terão sido eco sublime de almas abstratas; ele, não: sempre pensou, e sentiu, e experimentou o que escreveu:
Adeus! Para sempre adeus! Quando alta noite,
Encostado à amurada do navio...
As vagas tristes... que nos viram juntos
Perguntarem por ti num beijo frio...
................................
Oh! Deixa-me aquecer teus pés divinos
Ao doido afago dos meus lábios mornos.
Mulher do meu amor! Quando aos meus beijos
Das teclas do teu seio que harmonias,
Que escalas de suspiros bebo atento!
Ai, canta a cavatina do delírio,
Ri, suspira, soluça, anseia e chora...
Um tal concreto de gozo, como a evocação de detalhes assim, não poderia ser puro imaginar. Reproduzindo a tragédia de Álvares de Azevedo, gênio abatido em plena juventude, Castro Alves distingue-se, no entanto, porque pôde dar a medida do seu valor. Viveu mais quatro anos do que o outro, quatro anos da quadra decisiva para um poeta. Viveu mais, e mais completamente, pois que viveu, de fato, a exaltação e a sensualidade do seu amor, ao passo que em Álvares de Azevedo a sensualidade não passa de voluptuosidade vazia. Castro Alves teria produzido muito mais, em tom de mais profundo pensamento, talvez, mas não traria novos traços ao seu feitio mental, nem daria outras notas na sua lira. E, como definição explícita do seu engenho, ele foi a expressão plena do lirismo romântico brasileiro, derramando-se, ainda pela epopeia, com energias de apostolado. Como sentiu o amor e a poesia, amou a justiça, a liberdade, o seu Brasil. Desaparecido aos vinte e quatro anos, Castro Alves realizou o sublime, numa existência de poeta – aspiração, sonho, paixão, popularidade, prestígio, glória... para efeitos intelectuais, políticos, sociais. Amado dos deuses, numa vida que eram vagas de amor, não teve possibilidade, nem teoricamente, de conhecer o tédio, o desânimo, a descrença. As suas penas foram, tão somente, as das vicissitudes de amoroso, que pôde, sempre, passar de uma paixão para outra.
Longo, penetrante, extenso... tal se considera o efeito da poesia de Castro Alves na alma brasileira. Afrânio Peixoto, com o seu livro – Castro Alves, escreveu um parágrafo documentado, eloquente e sentido, da evolução mental e da nacionalidade. Colocando o poeta no seu tempo; acentuando o influxo profundo dos seus cantos, e o prestígio miraculoso da sua lira, que era a de um jovem apenas estudante, Afrânio nos faz compreender Euclides, quando perora para mostrar que o estro de Castro Alves emanava diretamente das energias essenciais desta pátria, sobre a qual reinou incontrastavelmente. O lirismo do poeta de Aves de Arribação é o mesmo de Gonçalves Dias a Varela, como possibilidades de que não se suspeitaria, a deduzir do cantar dos outros. Nas suas poesias de 1863 a 65, raramente se encontrará novidade de inspiração; todavia, a sinceridade de uma viva sensibilidade já lhe dá às imagens toques inconfundíveis:
Todo o amor que em meu peito repousava,
Como orvalho das noites ao relento,
Ao teu peito se elevou, como as névoas,
Que se prendem no azul do firmamento...
................................
Sem ela o que é a vida?...
Eu sou a flor pendida,
Que espera a luz do sol............
E não tarda o lirismo estuante, orgasmo de poesia, novo pelo fulgor das tintas e a intensidade dos afetos.
É o derradeiro suspirar das crenças
Que se despedem das visões de amor...
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Mas tu vieste... E acreditei na vida...
Abri os braços – caminhei para luz...
O tronco morto – refloriu de novo,
Ergueu-se vivo, perfumado, em flor...
A sua influência parece antecipar-se, tão precoce lhe vem a plenitude do estro. Aos vinte anos, já Castro Alves tem a luminosa consciência do seu lirismo. São dessa idade as túrgidas estrofes de Sub Tegmine Fagi:
Vem! do mundo leremos o problema...
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Ontem à tarde, quando o sol morria,
A natureza era um poema santo.
De cada moita a escuridão saía,
De cada gruta rebentava um canto...
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Cantava o ninho, suspirava o lago;
Larga harmonia embalsamava os ares...
Encontraremos, depois, nos metros de outros, os mesmos recursos. O amor será objeto constante no lirismo de Castro Alves; mas, plantando-o na natureza, com o relevo das imagens em que natureza e amor são evocados, quase esquecemos o eu que canta, porque, na sua lira, vibram as energias eternas do amor ideal, com todo o fulgor da paisagem em que desfilam as suas emoções.
... minh’alma... um dia adormeceste
Na floresta ideal da ardente mocidade.
Abria a fantasia, a pétala celeste...
Zunia o sonho d’ ouro em doce obscuridade...
Ou, então:
............ O bardo se alevanta,
Pega da lira... canta... uma canção de amor...
Ouvi-o! Para ouvi-lo a estrela pensativa
Alonga pela ogiva um raio de langor!...
Não é de estranhar, então, se nessa intensidade da alma, ele atinge a espiritualidade das estrofes Pelas Sombras, que seriam misticismo, se não fosse o puro afeto ideal, ungindo o pensamento que perscruta:
Senhor! A noite é brava............
Senhor! um facho ao menos empresta ao caminhante.
A treva me assoberba... Oh! Deus! Dá-me um clarão!...
E uma Voz respondeu nas sombras triunfante:
“Acende, Oh! viajor! – o facho da razão!”
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Senhor! Ao pé do lar, na quietação, na calma,
Pode a flama subir brilhante, loura, eterna;
Mas quando os vendavais, rugindo passam n’alma,
Quem pode resguardar a trêmula lanterna?
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Mas ai! que a treva interna – a dúvida constante –
Deixaste assoberbar-me em funda escuridão!...
E uma Voz respondeu nas sombras triunfante:
Acende, Oh! viajor! a fé no coração!...
Contudo, mesmo arrebatado, em transes d’alma, o lírico se mantém em contato com a vida e a natureza: os seus anseios traduzem-se em imagens bem sensíveis, e temperam-se de formas tangíveis, que não irritam como não alucinam. O seu temperamento, eco maravilhoso dos fragores humanos, multiplica-os e enriquece-os tanto, que os motivos cantados, mesmo pessoais, não nos parecem, nunca, excessivos, nem descabidos. Último do romantismo, ele resiste melhor do que os nossos líricos à moléstia da agonia incerta, em que se consumiu a portentosa escola de renovação literária. Musset, que assim a qualifica, teria sido uma das mais assinaladas vítimas do mal, pois que a sua inspiração, ao mesmo tempo exigente e vacilante, deixava-o nas vascas dessa vertigem, que é a oscilação entre a sensação falha, o imagicionismo ardente e difuso, a sensibilidade exigente, sem assimilação efetiva das almas e da natureza. Nenhum tão representativo, e, nestas condições, torna-se evidente a fadiga da percepção artística, que se trai no poeta por uma como angústia de vazio. Patente em Álvares de Azevedo, essa agonia incerta não pôde atingir o gênio de Castro Alves. Com uma imaginação bem coerente e sensível, regenerada por ideal próprio, em formas maleáveis e potentes, o seu lirismo se desenvolve numa associação perfeitamente equilibrada – transes afetivos, interesses humanos e desdobrar de imagens. Sadia coordenação de estímulos, sem contradições de motivos, que turbem a esplêndida convergência de efeitos. E os corações brasileiros, atraídos pela sua musa, aproximaram-se – para o concertante de sentimentos em que ele se exaltava. A vida e a natureza, alimento substancial das suas imagens, tornavam-nas igualmente sedutoras, potentes, sugestivas, encantadoras, no simples relevo da primeira representação, antes de qualquer análise estética. Tomado pelo amor, porque é vida, Castro Alves, amou, de amor sublime, a pátria, a justiça, a bondade, em toda a extensão do respectivo poder, e deu às suas palavras o mesmo ardor dos afetos. Por isso, a expressão, eminentemente apaixonada, era absolutamente verdadeira, real, espontânea, como a própria paixão, e, assim livre, instintiva, empolgante, dominadora... Daí, resultam os desenvolvidos efeitos sociais da sua obra, e, por isso, torna-se indispensável o exaustivo arrolamento dos mesmos efeitos.
Não é fácil notar as instâncias originais, na poesia de Castro Alves. Genial, os seus dons se disseminam por todas as rimas, e afere-se, como valor total, pela ressonância na alma brasileira. Todas as belezas de sentimento, todas as correntes de pensamento se juntam e harmonizam na sua obra, com uma intensidade espiritual de que não há exemplo em nenhum outro escritor brasileiro. Esta será a primazia incontestável do grande lírico baiano. Ardente, audacioso, as suas afirmações se fazem sempre com nobreza de atitudes, fulgor de ideias, segurança e elevação de pensamento... Ele mesmo debuxou a imagem, de como nos aparece a musa – alva, grande, ideal, lavada em luz estranha, na destra suspendendo a estrela da manhã... Plantando-se entre o Homem e o Universo, os seus cantos, transes de dramas íntimos, clangor de apóstolo, ou simples enlevo de lírico, desenvolvem-se em símbolos portentosos, com intuições de profeta, numa espiritualidade irradiante e ativa, com um frescor que se reanima em recurso de que a poesia dispõe. Por tudo isto, o seu influxo foi o inverso dos efeitos do byronismo, por um patético mais humano do que romântico. Só a linguagem tinha essa qualidade genuína. Com todas as diferenças de época, formação e raça, Castro Alves foi um focalizador de energias afetivas, sociais e mentais comparável a Shelley, pela atração nacional. Melhor diríamos se reconhecêssemos no lírico d’A Volta da Primavera uma antecipação do neorromantismo, e que é esse simbolismo ardente, arrebatado de humanidade, reação do temperamento emotivo sobre o estetismo estéril dos puros buriladores. Aliás, nunca os tivemos assim. De fato, Castro Alves presente Witthead, e, de certo modo, precede Swinburne, Morris, Gustavo Khan: evocações luxuriantes, riqueza verbal, temas humanos, misticismo, ardor patético, poder sugestivo...
Se a poesia é pensamento sentido, ninguém foi mais poeta do que o lírico baiano:
Abre-me o seio. Oh! madre natureza!
Regaços da floresta americana...
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E se devo expirar... se a fibra morta
Reviver já não pode a tanto alento...
Companheiro! uma cruz na selva corta
E planta-a no meu tosco monumento!...
Da chapada nos ermos... (o qu’importa)
Melhor o inverno chora... e geme o vento,
E Deus para o poeta o céu desata
Semeado de lágrimas de prata!...
Com imagens assim Castro Alves invade-nos o coração, para dominar toda a simpatia, e Hino ao Sono passa a ser da nossa própria sensibilidade: Mata-me esta saudade; apaga-me esta dor. Já havíamos seguido, solícitos, os ingênuos arroubos do amante de dezenove anos, fazendo deles grandes motivos para emoções da meiguice d’O Laço de Fita, a estonteante evocação da Adormecida, a volúpia de Boa-Noite, a desilusão d’O Adeus de Tereza... Nem pode ser de outra forma, quando um simples renovar de afetos assim apresenta:
... teu riso me penetra n’alma
Como a harmonia de uma orquestra santa;
... teu riso tanta dor acalma...
Tanta descrença!... Tanta angústia... tanta!
Que eu digo ao ver tua celeste fronte:
O eco consola toda dor que existe...
Exaurido, arruinado o coração na trivialidade de um amor banalíssimo, mas sempre ávido de paixão, ele tem modificações para trazer encanto, ainda, à trivialidade:
É tarde! É muito tarde!...
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E tu, visão do céu!............
Não queiras os restos do banquete!
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Sabes? Meu beijo te manchará os lábios
Num beijo profanado.
A flor do lírio de celeste alvura
Quer da Lucíola o pudico afago...
As suas saudades são humanas, tensas, confortantes:
Tudo que me rodeia de ti fala.
Inda a almofada, em que pousaste a fronte,
O teu perfume predileto exala...
E o seu desespero?!... É preciso o esplendor do gênio, para sabida a história, depois de esgotado o Adeus, ainda haver lágrimas para responder-lhe ao Onde Estás?
Adeus! Para sempre adeus!...
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Eu vim cantando a mocidade e os sonhos,
Eu vim sonhando a felicidade e a glória!...
Ai! primavera que fugiu para sempre...
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Vendo finda a minha sorte,
Pergunto aos ventos do norte...
Oh! minha amante, onde estás?...
Romântico sadio, ele deixou a legítima definição do poeta:
Dos seios às vagas – pede um outro amor.
Alma sedenta de ideal na terra
Busca apagar aquela sede atroz!
Pede a harmonia divinal, que encerra
Do ninho o chilro... da tormenta a voz!...
E assim se explica como a pressão social, sobre o seu pensamento comovido, o inclinou definitivamente para a grande simpatia humana, tanto que ele fosse, sobretudo, o épico do ideal. Em verdade, o seu lirismo passa como orgasmo amoroso. Qualquer que seja o valor dos poemas: Boa-Noite, Os Perfumes, Durante um Temporal, Os Anjos, Meia Noite... a realidade do seu gênio se patenteia em A Cruz da Estrada, Ao Romper d’Alva, Navio Negreiro, Vidente, Vozes d’África, Deusa Incruenta... No entanto, se de Castro Alves só existissem as estrofes de amor, ainda ele seria um grande poeta, tanto é o poder desse atavismo que leva os nossos líricos a sublimarem os próprios afetos, enastrando-os nas pompas desta natureza. Por isso, o poeta d’A Cachoeira de Paulo Afonso ungiu a sua epopeia de um tal lirismo que quase a suplanta:
Adeus! palavra sombria!
Não digas adeus, Maria!
Ou não me fales de amor!...
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"Morreu no Rio aos 64 anos, em 1932, deixando-nos como legado frases, que infelizmente, ainda ecoam como válidas: 'Somos uma nação ineducada, conduzida por um Estado pervertido. Ineducada, a nação se anula; representada por um Estado pervertido, a nação se degrada'. As lições que nos são ministradas em O Brasil nação ainda se fazem eternas. Torcemos para que um dia caduquem. E que o novo Brasil sonhado por Bomfim se torne realidade."
Cecília Costa Junqueira
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Bomfim, Manoel, 1868-1932
O Brasil nação: vol. II / Manoel Bomfim. – 1. ed. – Rio de Janeiro: Fundação Darcy Ribeiro, 2013. 392 p.; 21 cm. – (Coleção biblioteca básica brasileira; 31).
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