Simone de Beauvoir
02. A Experiência Vivida
O SEGUNDO SEXO
SlMONE DE BEAUVOIR
SlMONE DE BEAUVOIR
continuando...
Numa idade mais ou menos precoce, a menina sonha que já atingiu a idade do amor; com nove ou dez anos ela se diverte com se arrebicar, encher o corpinho, fantasiar-se de senhora. Não procura entretanto realizar nenhuma experiência erótica com os meninos: se lhe acontece ir com eles aos cantinhos e brincar de "mostrar coisas", é somente por curiosidade sexual. Mas o parceiro dos devaneios eróticos é um adulto: ou puramente imaginário, ou evocado com ponto de partida em indivíduos reais: neste último caso a criança satisfaz-se com amar a distância. Encontrar-se-á nas recordações de Colette Audry (Aux yeux du souvenir) um exemplo muito bom desses devaneios infantis: ela nos conta que descobriu o amor com a idade de 5 anos.
Isso não tinha nada a ver com os pequenos prazeres sexuais da infância, a satisfação que sentia, por exemplo, em cavalgar certa cadeira da sala de jantar ou em me acariciar antes de dormir. . . O único traço comum entre o sentimento e o prazer era que os dissimulava a ambos cuidadosamente. . . Meu amor por esse jovem consistia em pensar nele antes de adormecer, imaginando histórias maravilhosas. . . em Privas, amei sucessivamente todos os chefes de gabinete de meu pai. . . Nunca me sentia profundamente agoniada com a saída deles porque constituíam apenas um pretexto para fixar meus devaneios amorosos. . . À noite, deitada, tinha meu revide de demasiada juventude e timidez. Preparava tudo com cuidado, não tinha nenhuma dificuldade em torná-lo presente, mas tratava-se de me transformar de maneira que pudesse ver-me de meu interior, pois ficava sendo ela, deixava de ser eu. Primeiramente era bonita e tinha 18 anos. Uma caixa de confeitos ajudou-me muito: uma caixa retangular de drágeas comprida e chata e que representava duas moças cercadas de pombas. Eu era a morena penteada de cachos curtos, de vestido comprido de musselina. Uma ausência de dez anos nos separara. Ele voltava muito pouco envelhecido e a visão dessa maravilhosa criatura transtornava-o. Ela mal parecia lembrar-se dele, era cheia de naturalidade, indiferença, espírito. Eu arranjava para esse primeiro encontro conversas realmente brilhantes. Seguiam-se mal-entendidos, toda uma conquista difícil, horas cruéis de desânimo e ciúmes para ele. Acuado enfim, ele confessava seu amor. Ela ouvia-o em silêncio e no momento em que ele acreditava estar tudo perdido, ela lhe comunicava que nunca deixara de amá-lo, e eles se abraçavam ligeiramente. A cena ocorria em geral num banco do parque, à noite. Eu via as duas formas juntas uma da outra, ouvia o murmúrio das vozes, sentia ao mesmo tempo o contato quente dos corpos. Mas daí por diante tudo se diluía... Nunca falei de casamento [1] . . . No dia seguinte pensava um pouco nisso ao lavar-me. Não sei por que, o rosto ensaboado que eu contemplava no espelho me encantava (nos outros momentos não me achava bonita) e me enchia de esperança. Teria olhado durante horas aquelas faces cobertas de nuvens, aquela cabeça um pouco inclinada que parecia esperar-me, ao longe, no caminho do futuro. Mas era preciso apressar-me; uma vez enxugada, tudo estava acabado, reencontrava minha cara banal de criança que não 'me interessava mais.
[1] Ao contrário das fantasias masoquistas de M. Le Hardouin, as de Colette Audry são do tipo sádico. Ela deseja que o bem-amado seja ferido, esteja em perigo, salva-o heroicamente, não sem o ter humilhado. E uma nota pessoal, característica de uma mulher que não aceitará nunca a passividade e procurará conquistar sua autonomia de ser humano.
Jogos e sonhos orientam a menina para a passividade: mas ela é um ser humano antes de se tornar uma mulher; e já sabe que aceitar a si mesma como mulher é demitir-se e mutilar-se; e se a demissão é tentadora, a mutilação é odiosa. O Homem, o Amor encontram-se muito longe ainda nas brumas do futuro; no presente, a menina busca, como seus irmãos, atividade, autonomia. O fardo da liberdade não é pesado às crianças porque não implica responsabilidade; elas se sentem em segurança junto dos adultos: não têm a tentação de fugir delas próprias. Seu impulso espontâneo para a vida, seu gosto pelo jogo, pelo riso, pela aventura, levam a menina a achar o círculo materno estreito, abafante. Ela gostaria de escapar à autoridade da mãe. É uma autoridade que se exerce de maneira muito mais quotidiana e íntima do que a que precisam aceitar os meninos. Raros são os casos em que ela é tão compreensiva e discreta como a dessa "Sido" que Colette pinta com amor. Sem falar dos casos quase patológicos — são frequentes [2] — em que a mãe é uma espécie de carrasco, satisfazendo na criança seus instintos de domínio e seu sadismo, em que a filha é o objeto privilegiado em face do qual a mãe pretende afirmar-se como sujeito soberano; essa pretensão leva a criança a revoltar-se. C. Audry descreve essa rebelião de uma menina normal contra uma mãe normal:
[2] Cf. V. Leduc, L'Asphyxie; S. de Tervagnes, La Haine maternelle; H. Bazin, Vipère au poing.
Nunca teria sabido dizer a verdade, por inocente que fosse, porque nunca me sentia inocente diante de mamãe. Ela era a adulta essencial e lhe queria tanto mal, que até agora não me curei. Havia no fundo de mim uma espécie de chaga tumultuosa e feroz que eu tinha certeza de encontrar sempre aberta. . . Não pensava: "Ela é severa demais"; nem; "Ela não tem o direito". Pensava: "não, não, não", com todas as forças. Não lhe censurava a autoridade, nem as ordens ou as proibições arbitrárias; censurava-lhe querer domar-me. Às vezes, ela o dizia, quando não, seus olhos, sua voz o diziam. Ou então tinha contado a outras mulheres que as crianças se tornam bem mais maleáveis após um corretivo. Essas palavras paravam-me na garganta, inesquecíveis: não as podia vomitar, nem engolir. Era essa cólera, minha culpabilidade perante ela, e também minha vergonha diante de mim mesma (porque afinal ela não 'me amedrontava, e eu não tinha a meu favor, à guisa de represálias, senão algumas palavras violentas ou algumas insolências) mas também, apesar de tudo, minha glória. Enquanto existisse a chaga, enquanto fosse viva a loucura muda que me levava a repetir somente: domar, maleável, corretivo, humilhação, eu não seria domada.
A revolta é tanto mais violenta quanto mais vezes a mãe perdeu o prestígio. Ela se apresenta como a que espera, suporta, se queixa, chora, faz cenas: e, na realidade quotidiana, esse papel ingrato não conduz a nenhuma apoteose; vítima, ela é desprezada; megera, detestada. Seu destino aparece como protótipo da insossa repetição: por ela a vida apenas se repete estupidamente sem levar a lugar algum. Presa a seu papel de dona de casa, ela detém a expansão da existência, é obstáculo e negação. A filha não quer assemelhar-se a ela e rende culto às mulheres que escaparam à servidão feminina: atrizes, escritoras, professoras. Entrega-se com ardor aos esportes, aos estudos, sobe nas árvores, rasga vestidos, tenta rivalizar com os meninos. Quase sempre escolhe uma amiga para confidente e essa amizade é exclusiva como uma paixão amorosa e comporta em geral a partilha de segredos sexuais; as meninas trocam informações que conseguiram obter e as comentam. Ocorre, muitas vezes, a formação de um triângulo, uma das amigas gostando do irmão da amiga: assim Sônia em Guerra e Paz é a amiga querida de Natacha e ama o irmã desta, Nicolau. Em todo caso, essa amizade cerca-se de mistério, e de um modo geral a criança, nesse período, gosta de ter segredos: faz segredo da coisa mais insignificante; desse modo reage contra as reservas que opõem à sua curiosidade; é uma maneira também de se dar importância, o que ela procura adquirir por todos os meios: tenta intervir na vida dos adultos, inventa, acerca deles, romances em que ela própria não acredita muito, mas nos quais desempenha um papel importante. Com suas amigas, afeta desprezar os meninos que as desprezam; isolam-se deles e deles caçoam. Mas, na realidade, ela se sente lisonjeada quando eles a tratam em pé de igualdade, e almeja os sufrágios deles. Desejaria pertencer à casta privilegiada. O mesmo impulso, que nas hordas primitivas submete a mulher à supremacia masculina, traduz-se em cada nova iniciada por uma recusa de seu destino: nela, a transcendência condena o absurdo da imanência. Ela se irrita por ser freada pelas regras da decência, embaraçada por suas roupas, escravizada aos cuidados da casa, detida em todos os seus impulsos. A esse respeito fizeram-se numerosos inquéritos que, quase todos [3], deram o mesmo resultado: todos os meninos — como Platão outrora — declaram que teriam horror de ser meninas; quase todas as meninas lamentam não ser meninos. Segundo as estatísticas de Havelock Ellis, um menino em cem desejaria ser menina; mais de 75% das meninas gostariam de trocar de sexo. Segundo um inquérito de Karl Pipal (citado por Baudouin em L'Âme enfantine) em 20 meninos de 12 a 14 anos, 18 disseram que prefeririam tudo a ser meninas; em 22 meninas, 19 gostariam de ser meninos, e davam as seguintes razões para justificá-lo: "Os homens não sofrem como as mulheres . . . Minha mãe gostaria mais de mim... O trabalho do homem é mais interessante. . . Um homem tem mais capacidade para o estudo... Eu me divertiria amedrontando as meninas... Não teria mais medo dos meninos. . . Eles são mais livres. . . Os jogos dos meninos são mais divertidos... Eles não são embaraçados pelas roupas. . ." Esta última observação repete-se amiúde: as meninas queixam-se quase todas de que os vestidos as atrapalham, de que não têm liberdade de movimentos, de que são obrigadas a cuidar da saia ou dos vestidos claros que se sujam tão facilmente. Por volta dos 10 ou 12 anos as meninas são em sua maioria "meninos falhados", isto é, crianças que carecem de licença para ser meninos. Não somente sofrem com isso como de uma privação e de uma injustiça, mas ainda o regime a que as condenam é malsão. A exuberância da vida é nelas barrada, seu vigor inutilizado transforma-se em nervosismo; suas ocupações demasiado sensatas não esgotam seu excesso de energia; por tédio e para compensar a inferioridade de que sofrem, entregam-se a devaneios melancólicos e romanescos; tomam gosto por essas evasões fáceis e perdem o sentido da realidade; abandonam-se a suas emoções com uma exaltação desordenada; não podendo agir, falam, entremeando amiúde coisas sérias com palavras absurdas; largadas, "incompreendidas", buscam um consolo nos sentimentos narcisistas: olham-se como heroínas de romance, admiram-se, lamentam- se ; é natural que se tornem coquetes e comediantes e esses defeitos se acentuarão no momento da puberdade. Seu mal- -estar traduz-se por impaciências, cóleras, lágrimas; gostam das lágrimas — gosto que se perpetua em muitas mulheres — em grande parte porque lhes apraz fazerem-se de vítimas: é a um tempo um protesto contra a dureza do destino e uma maneira de se tornarem comoventes. "As meninas gostam tanto de chorar que conheci algumas que o faziam na frente do espelho para gozar duplamente esse estado", conta Monsenhor Dupanloup. A maioria de seus dramas diz respeito às relações com a família; elas procuram desfazer os laços que as prendem à mãe: ora lhe são hostis, ora sentem uma aguda necessidade da proteção dela; gostariam de açambarcar o amor do pai; são ciumentas, suscetíveis, exigentes. Amiúde inventam romances; imaginam que são uma criança adotada, que os pais não são realmente seus pais; atribuem-lhes uma vida secreta; sonham com as relações deles; comprazem-se em supor que o pai é incompreendido, infeliz, que não encontra na mulher a companheira ideal que a filha poderia ser; ou, ao contrário, que a mãe o acha, com razão, grosseiro e brutal, que tem horror de manter qualquer relação física com ele. Fantasias, comédias, tragédias pueris, falsos entusiasmos, extravagâncias, cumpre buscar as razões disso tudo, não numa misteriosa alma feminina e sim na situação da criança.
[3] Há exceção, por exemplo, em uma escola suíça em que meninos e meninas participando da mesma educação mista, em condições privilegiadas de conforto e de liberdade, se declaram todos satisfeitos: mas tais circunstâncias são excepcionais. Seguramente as meninas poderiam ser tão felizes quanto os meninos; mas na sociedade atual não o são em verdade.
É uma estranha experiência, para um indivíduo que se sente como sujeito, autonomia, transcendência, como um absoluto, descobrir em si, a título de essência dada, a inferioridade: é uma estranha experiência para quem, para si, se arvora em Um, ser revelado a si mesmo como alteridade. É o que acontece à menina quando, fazendo o aprendizado do mundo, nele se percebe mulher. A esfera a que pertence é por todos os lados cercada, limitada, dominada pelo universo masculino: por mais alto que se eleve, por mais longe que se aventure, haverá sempre um teto acima de sua cabeça, muros que lhe barrarão o caminho. Os deuses do homem acham-se em um céu tão longínquo que, em verdade, não há deuses para ele: a menina vive entre deuses de fisionomias humanas.
Essa situação não é única. É também a que conhecem os negros da América do Norte, parcialmente integrados numa civilização que os considera entretanto como casta inferior. O que Big Thomas [4] sente com tamanho rancor na aurora de sua vida, é essa definitiva inferioridade, essa alteridade maldita que se inscreve na cor da pele: ele olha os aviões passar e sabe que por ser negro o céu lhe é vedado. Por ser mulher, a menina sabe que o mar e os pólos, mil aventuras e mil alegrias lhe são proibidas: nasceu do lado errado. A grande diferença está em que os negros suportam revoltados a sua sorte ao passo que a mulher é convidada à cumplicidade. Já lembrei [5] que, ao lado da autêntica reivindicação do sujeito que quer para si liberdade soberana, há no existente um desejo inautêntico de demissão e de fuga. São as delícias da passividade que pais e educadores, livros e mitos, mulheres e homens, fazem brilhar aos olhos da menina; ensinam-lhe já na primeira infância a apreciá-las; a tentação torna-se dia a dia mais insidiosa; ela cede tanto mais fatalmente quanto o impulso de sua transcendência se choca contra resistências mais severas. Mas, aceitando a passividade, ela aceita também suportar, sem resistência, um destino que lhe será imposto de fora, e essa fatalidade amedronta-a. Seja ambicioso, parvo ou tímido, é para um futuro aberto que o menino se atira; será marinheiro ou engenheiro, ficará no campo ou irá para a cidade, verá o mundo, tornar-se-á rico; sente-se livre em face de um futuro em que possibilidades imprevistas o aguardam. A menina será esposa, mãe, avó; tratará da casa, exatamente como fez sua mãe, cuidará dos filhos como foi cuidada: tem 12 anos e sua história já está escrita no céu; ela a descobrirá dia após dia sem nunca a fazer; mostra-se curiosa mas assustada quando evoca essa vida cujas etapas estão todas de antemão previstas e para a qual cada dia a encaminha inelutavelmente.
[4] Cf. R. Wright, Filho Nativo.
[5] Cf. vol. I3 págs. 14-15.
Eis por que, muito mais ainda que os irmãos, a menina se preocupa com os mistérios sexuais; eles também se interessam apaixonadamente por isso, mas, em seu futuro, o papel de marido, de pai, não é aquilo com que mais se preocupam; no casamento, na maternidade é todo o destino da menina que é posto em xeque; e logo que ela principia a pressentir-lhe os segredos, o próprio corpo apresenta-se a ela odiosamente ameaçado. A magia da maternidade dissipou-se; que tenha sido informada mais ou menos cedo, de maneira mais ou menos coerente, já sabe que o filho não surge por acaso no ventre materno e que não é com um golpe de vara de condão que daí sai. Ela interroga-se com angústia. Muitas vezes parece-lhe maravilhoso mas horrível que um corpo parasita deva proliferar dentro de seu corpo; a ideia dessa monstruosa inchação apavora-a. E como sairá o bebê? Mesmo se ninguém lhe falou dos gritos e sofrimentos da maternidade, ela ouviu palavras e leu o trecho da Bíblia: "Conceberás na dor"; ela pressente torturas que não seria capaz de imaginar sequer; inventa estranhas operações na região do umbigo; supõe que o feto será expulso pelo ânus e isso não a tranquiliza muito mais. Viu-se meninas terem ataques de constipação neurótica quando pensaram haver descoberto o processo do nascimento. Explicações exatas não serão de grande valia: as imagens de inchaço, de ferimento, de hemorragia irão obsidiá-la. A menina será tanto mais sensível a essas visões quanto mais imaginação tiver; mas nenhuma poderá olhá-las de frente sem tremer. Colette conta que a mãe a encontrou desfalecida porque ela, Colette, lera em Zola a descrição de um nascimento.
O autor pintava o parto "com um luxo brusco e cru de pormenores, uma minúcia anatômica, uma complacência na dor, na atitude, no grito que não reconheci mais nada de minha tranquila competência de moça do campo. Senti-me crédula, assustada, ameaçada em meu destino de femeazinha, . . Outras palavras que tinha sob os olhos pintavam a carne esquartejada, o excremento, o sangue maculado... O gramado recebeu-me estendida e mole como essas lebrezinhas recém-matadas que o caçador clandestino traz para a cozinha".
As palavras de tranquilização oferecidas pelos adultos deixam a criança inquieta; ao crescer, ela aprende a não mais acreditar neles sob palavra; muitas vezes foi acerca dos próprios mistérios da geração que ela surpreendeu as mentiras; ela sabe também que eles consideram normais as coisas mais apavorantes; se experimentou algum choque físico violento — amídalas extraídas, dente arrancado, panarício cortado a bisturi — ela projetará no parto a angústia de que guardou a recordação.
O caráter físico da gravidez, do parto, sugere desde logo que entre os esposos "alguma coisa de físico ocorre". A palavra "sangue" que se encontra amiúde em expressões como "filho do meu sangue, puro sangue, sangue mestiço" orienta por vezes a imaginação infantil; supõe-se que o casamento se acompanha de alguma transfusão solene. Mais comumente, porém, a "coisa física" apresenta- se como ligada ao sistema urinário e excremental; em particular, as crianças comprazem-se em supor que o homem urina na mulher. A operação sexual é pensada como coisa suja. É o que desnorteia a criança para a qual as coisas "sujas" foram cercadas dos mais severos tabus: como acontece então que os adultos as integrem em suas vidas? A criança defende-se a princípio contra o escândalo pelo próprio absurdo do que descobre: não acha nenhum sentido no que ouve contarem, no que lê, no que escreve; tudo se lhe afigura irreal. No livro encantador de Carson Mac Cullers: The member of the wedding, a jovem heroína surpreende dois vizinhos nus na cama; a própria anomalia da história impede que ela lhe atribua importância.
Era um domingo de verão e a porta dos Marlowe estava aberta. Ela só podia ver uma parte do quarto, uma parte da cômoda e unicamente o pé da cama sobre a qual se achava o colete de Mrs. Marlowe. Mas havia no quarto tranquilo um ruído que ela não compreendia e quando se adiantou para a soleira, foi tomada de espanto ante um espetáculo que desde o primeiro momento a repeliu até a cozinha gritando: Mrs. Marlowe teve um ataque! Berenice precipitara-se no saguão, mas quando olhou para o quarto apenas cerrou os lábios e bateu a porta. . . Frankie tentara questionar Berenice para descobrir de que se tratava. Mas Berenice dissera somente que eram gente ordinária e acrescentara que, por consideração para com certa pessoa, deveriam ao menos ter fechado a porta. Frankie sabia que era ela própria essa pessoa e no entanto não compreendia. Que espécie de ataque seria? indagou. Mas Berenice respondeu somente: "Um ataque comum, meu bem". E Frankie compreendeu pelo tom da voz que não lhe diziam tudo. Posteriormente, só recordava os Marlowe como gente ordinária. . .
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As mulheres de nossos dias estão prestes a destruir o mito do "eterno feminino": a donzela ingênua, a virgem profissional, a mulher que valoriza o preço do coquetismo, a caçadora de maridos, a mãe absorvente, a fragilidade erguida como escudo contra a agressão masculina. Elas começam a afirmar sua independência ante o homem; não sem dificuldades e angústias porque, educadas por mulheres num gineceu socialmente admitido, seu destino normal seria o casamento que as transformaria em objeto da supremacia masculina.
Neste volume complementar de O SEGUNDO SEXO, Simone de Beauvoir, constatando a realidade ainda imediata do prestígio viril, estuda cuidadosamente o destino tradicional da mulher, as circunstâncias do aprendizado de sua condição feminina, o estreito universo em que está encerrada e as evasões que, dentro dele, lhe são permitidas. Somente depois de feito o balanço dessa pesada herança do passado, poderá a mulher forjar um outro futuro, uma outra sociedade em que o ganha--pão, a segurança econômica, o prestígio ou desprestígio social nada tenham a ver com o comércio sexual. É a proposta de uma libertação necessária não só para a mulher como para o homem. Porque este, por uma verdadeira dialética de senhor e servo, é corroído pela preocupação de se mostrar macho, importante, superior, desperdiça tempo e forcas para temer e seduzir as mulheres, obstinando-se nas mistificações destinadas a manter a mulher acorrentada.
Os dois sexos são vítimas ao mesmo tempo do outro e de si. Perpetuar-se-á o inglório duelo em que se empenham enquanto homens e mulheres não se reconhecerem como semelhantes, enquanto persistir o mito do "eterno feminino". Libertada a mulher, libertar-se-á também o homem da opressão que para ela forjou; e entre dois adversários enfrentando-se em sua pura liberdade, fácil será encontrar um acordo.
O SEGUNDO SEXO, de Simone de Beauvoir, é obra indispensável a todo o ser humano que, dentro da condição feminina ou masculina, queira afirmar-se autêntico nesta época de transição de costumes e sentimentos.
"O que é uma mulher?"