sábado, 30 de maio de 2020

O Segundo Sexo - 02. A Experiência Vivida: Capítulo I - Infância (5)

Simone de Beauvoir



02. A Experiência Vivida




O SEGUNDO SEXO
SlMONE DE BEAUVOIR



continuando...


Numa idade mais ou menos precoce, a menina sonha que já atingiu a idade do amor; com nove ou dez anos ela se diverte com se arrebicar, encher o corpinho, fantasiar-se de senhora. Não procura entretanto realizar nenhuma experiência erótica com os meninos: se lhe acontece ir com eles aos cantinhos e brincar de "mostrar coisas", é somente por curiosidade sexual. Mas o parceiro dos devaneios eróticos é um adulto: ou puramente imaginário, ou evocado com ponto de partida em indivíduos reais: neste último caso a criança satisfaz-se com amar a distância. Encontrar-se-á nas recordações de Colette Audry (Aux yeux du souvenir) um exemplo muito bom desses devaneios infantis: ela nos conta que descobriu o amor com a idade de 5 anos.


Isso não tinha nada a ver com os pequenos prazeres sexuais da infância, a satisfação que sentia, por exemplo, em cavalgar certa cadeira da sala de jantar ou em me acariciar antes de dormir. . . O único traço comum entre o sentimento e o prazer era que os dissimulava a ambos cuidadosamente. . . Meu amor por esse jovem consistia em pensar nele antes de adormecer, imaginando histórias maravilhosas. . . em Privas, amei sucessivamente todos os chefes de gabinete de meu pai. . . Nunca me sentia profundamente agoniada com a saída deles porque constituíam apenas um pretexto para fixar meus devaneios amorosos. . . À noite, deitada, tinha meu revide de demasiada juventude e timidez. Preparava tudo com cuidado, não tinha nenhuma dificuldade em torná-lo presente, mas tratava-se de me transformar de maneira que pudesse ver-me de meu interior, pois ficava sendo ela, deixava de ser eu. Primeiramente era bonita e tinha 18 anos. Uma caixa de confeitos ajudou-me muito: uma caixa retangular de drágeas comprida e chata e que representava duas moças cercadas de pombas. Eu era a morena penteada de cachos curtos, de vestido comprido de musselina. Uma ausência de dez anos nos separara. Ele voltava muito pouco envelhecido e a visão dessa maravilhosa criatura transtornava-o. Ela mal parecia lembrar-se dele, era cheia de naturalidade, indiferença, espírito. Eu arranjava para esse primeiro encontro conversas realmente brilhantes. Seguiam-se mal-entendidos, toda uma conquista difícil, horas cruéis de desânimo e ciúmes para ele. Acuado enfim, ele confessava seu amor. Ela ouvia-o em silêncio e no momento em que ele acreditava estar tudo perdido, ela lhe comunicava que nunca deixara de amá-lo, e eles se abraçavam ligeiramente. A cena ocorria em geral num banco do parque, à noite. Eu via as duas formas juntas uma da outra, ouvia o murmúrio das vozes, sentia ao mesmo tempo o contato quente dos corpos. Mas daí por diante tudo se diluía... Nunca falei de casamento [1] . . . No dia seguinte pensava um pouco nisso ao lavar-me. Não sei por que, o rosto ensaboado que eu contemplava no espelho me encantava (nos outros momentos não me achava bonita) e me enchia de esperança. Teria olhado durante horas aquelas faces cobertas de nuvens, aquela cabeça um pouco inclinada que parecia esperar-me, ao longe, no caminho do futuro. Mas era preciso apressar-me; uma vez enxugada, tudo estava acabado, reencontrava minha cara banal de criança que não 'me interessava mais.


[1] Ao contrário das fantasias masoquistas de M. Le Hardouin, as de Colette Audry são do tipo sádico. Ela deseja que o bem-amado seja ferido, esteja em perigo, salva-o heroicamente, não sem o ter humilhado. E uma nota pessoal, característica de uma mulher que não aceitará nunca a passividade e procurará conquistar sua autonomia de ser humano.


Jogos e sonhos orientam a menina para a passividade: mas ela é um ser humano antes de se tornar uma mulher; e já sabe que aceitar a si mesma como mulher é demitir-se e mutilar-se; e se a demissão é tentadora, a mutilação é odiosa. O Homem, o Amor encontram-se muito longe ainda nas brumas do futuro; no presente, a menina busca, como seus irmãos, atividade, autonomia. O fardo da liberdade não é pesado às crianças porque não implica responsabilidade; elas se sentem em segurança junto dos adultos: não têm a tentação de fugir delas próprias. Seu impulso espontâneo para a vida, seu gosto pelo jogo, pelo riso, pela aventura, levam a menina a achar o círculo materno estreito, abafante. Ela gostaria de escapar à autoridade da mãe. É uma autoridade que se exerce de maneira muito mais quotidiana e íntima do que a que precisam aceitar os meninos. Raros são os casos em que ela é tão compreensiva e discreta como a dessa "Sido" que Colette pinta com amor. Sem falar dos casos quase patológicos — são frequentes [2] — em que a mãe é uma espécie de carrasco, satisfazendo na criança seus instintos de domínio e seu sadismo, em que a filha é o objeto privilegiado em face do qual a mãe pretende afirmar-se como sujeito soberano; essa pretensão leva a criança a revoltar-se. C. Audry descreve essa rebelião de uma menina normal contra uma mãe normal:


[2] Cf. V. Leduc, L'Asphyxie; S. de Tervagnes, La Haine maternelle; H. Bazin, Vipère au poing.


Nunca teria sabido dizer a verdade, por inocente que fosse, porque nunca me sentia inocente diante de mamãe. Ela era a adulta essencial e lhe queria tanto mal, que até agora não me curei. Havia no fundo de mim uma espécie de chaga tumultuosa e feroz que eu tinha certeza de encontrar sempre aberta. . . Não pensava: "Ela é severa demais"; nem; "Ela não tem o direito". Pensava: "não, não, não", com todas as forças. Não lhe censurava a autoridade, nem as ordens ou as proibições arbitrárias; censurava-lhe querer domar-me. Às vezes, ela o dizia, quando não, seus olhos, sua voz o diziam. Ou então tinha contado a outras mulheres que as crianças se tornam bem mais maleáveis após um corretivo. Essas palavras paravam-me na garganta, inesquecíveis: não as podia vomitar, nem engolir. Era essa cólera, minha culpabilidade perante ela, e também minha vergonha diante de mim mesma (porque afinal ela não 'me amedrontava, e eu não tinha a meu favor, à guisa de represálias, senão algumas palavras violentas ou algumas insolências) mas também, apesar de tudo, minha glória. Enquanto existisse a chaga, enquanto fosse viva a loucura muda que me levava a repetir somente: domar, maleável, corretivo, humilhação, eu não seria domada.


A revolta é tanto mais violenta quanto mais vezes a mãe perdeu o prestígio. Ela se apresenta como a que espera, suporta, se queixa, chora, faz cenas: e, na realidade quotidiana, esse papel ingrato não conduz a nenhuma apoteose; vítima, ela é desprezada; megera, detestada. Seu destino aparece como protótipo da insossa repetição: por ela a vida apenas se repete estupidamente sem levar a lugar algum. Presa a seu papel de dona de casa, ela detém a expansão da existência, é obstáculo e negação. A filha não quer assemelhar-se a ela e rende culto às mulheres que escaparam à servidão feminina: atrizes, escritoras, professoras. Entrega-se com ardor aos esportes, aos estudos, sobe nas árvores, rasga vestidos, tenta rivalizar com os meninos. Quase sempre escolhe uma amiga para confidente e essa amizade é exclusiva como uma paixão amorosa e comporta em geral a partilha de segredos sexuais; as meninas trocam informações que conseguiram obter e as comentam. Ocorre, muitas vezes, a formação de um triângulo, uma das amigas gostando do irmão da amiga: assim Sônia em Guerra e Paz é a amiga querida de Natacha e ama o irmã desta, Nicolau. Em todo caso, essa amizade cerca-se de mistério, e de um modo geral a criança, nesse período, gosta de ter segredos: faz segredo da coisa mais insignificante; desse modo reage contra as reservas que opõem à sua curiosidade; é uma maneira também de se dar importância, o que ela procura adquirir por todos os meios: tenta intervir na vida dos adultos, inventa, acerca deles, romances em que ela própria não acredita muito, mas nos quais desempenha um papel importante. Com suas amigas, afeta desprezar os meninos que as desprezam; isolam-se deles e deles caçoam. Mas, na realidade, ela se sente lisonjeada quando eles a tratam em pé de igualdade, e almeja os sufrágios deles. Desejaria pertencer à casta privilegiada. O mesmo impulso, que nas hordas primitivas submete a mulher à supremacia masculina, traduz-se em cada nova iniciada por uma recusa de seu destino: nela, a transcendência condena o absurdo da imanência. Ela se irrita por ser freada pelas regras da decência, embaraçada por suas roupas, escravizada aos cuidados da casa, detida em todos os seus impulsos. A esse respeito fizeram-se numerosos inquéritos que, quase todos [3], deram o mesmo resultado: todos os meninos — como Platão outrora — declaram que teriam horror de ser meninas; quase todas as meninas lamentam não ser meninos. Segundo as estatísticas de Havelock Ellis, um menino em cem desejaria ser menina; mais de 75% das meninas gostariam de trocar de sexo. Segundo um inquérito de Karl Pipal (citado por Baudouin em L'Âme enfantine) em 20 meninos de 12 a 14 anos, 18 disseram que prefeririam tudo a ser meninas; em 22 meninas, 19 gostariam de ser meninos, e davam as seguintes razões para justificá-lo: "Os homens não sofrem como as mulheres . . . Minha mãe gostaria mais de mim... O trabalho do homem é mais interessante. . . Um homem tem mais capacidade para o estudo... Eu me divertiria amedrontando as meninas... Não teria mais medo dos meninos. . . Eles são mais livres. . . Os jogos dos meninos são mais divertidos... Eles não são embaraçados pelas roupas. . ." Esta última observação repete-se amiúde: as meninas queixam-se quase todas de que os vestidos as atrapalham, de que não têm liberdade de movimentos, de que são obrigadas a cuidar da saia ou dos vestidos claros que se sujam tão facilmente. Por volta dos 10 ou 12 anos as meninas são em sua maioria "meninos falhados", isto é, crianças que carecem de licença para ser meninos. Não somente sofrem com isso como de uma privação e de uma injustiça, mas ainda o regime a que as condenam é malsão. A exuberância da vida é nelas barrada, seu vigor inutilizado transforma-se em nervosismo; suas ocupações demasiado sensatas não esgotam seu excesso de energia; por tédio e para compensar a inferioridade de que sofrem, entregam-se a devaneios melancólicos e romanescos; tomam gosto por essas evasões fáceis e perdem o sentido da realidade; abandonam-se a suas emoções com uma exaltação desordenada; não podendo agir, falam, entremeando amiúde coisas sérias com palavras absurdas; largadas, "incompreendidas", buscam um consolo nos sentimentos narcisistas: olham-se como heroínas de romance, admiram-se, lamentam- se ; é natural que se tornem coquetes e comediantes e esses defeitos se acentuarão no momento da puberdade. Seu mal- -estar traduz-se por impaciências, cóleras, lágrimas; gostam das lágrimas — gosto que se perpetua em muitas mulheres — em grande parte porque lhes apraz fazerem-se de vítimas: é a um tempo um protesto contra a dureza do destino e uma maneira de se tornarem comoventes. "As meninas gostam tanto de chorar que conheci algumas que o faziam na frente do espelho para gozar duplamente esse estado", conta Monsenhor Dupanloup. A maioria de seus dramas diz respeito às relações com a família; elas procuram desfazer os laços que as prendem à mãe: ora lhe são hostis, ora sentem uma aguda necessidade da proteção dela; gostariam de açambarcar o amor do pai; são ciumentas, suscetíveis, exigentes. Amiúde inventam romances; imaginam que são uma criança adotada, que os pais não são realmente seus pais; atribuem-lhes uma vida secreta; sonham com as relações deles; comprazem-se em supor que o pai é incompreendido, infeliz, que não encontra na mulher a companheira ideal que a filha poderia ser; ou, ao contrário, que a mãe o acha, com razão, grosseiro e brutal, que tem horror de manter qualquer relação física com ele. Fantasias, comédias, tragédias pueris, falsos entusiasmos, extravagâncias, cumpre buscar as razões disso tudo, não numa misteriosa alma feminina e sim na situação da criança.

[3] Há exceção, por exemplo, em uma escola suíça em que meninos e meninas participando da mesma educação mista, em condições privilegiadas de conforto e de liberdade, se declaram todos satisfeitos: mas tais circunstâncias são excepcionais. Seguramente as meninas poderiam ser tão felizes quanto os meninos; mas na sociedade atual não o são em verdade.

É uma estranha experiência, para um indivíduo que se sente como sujeito, autonomia, transcendência, como um absoluto, descobrir em si, a título de essência dada, a inferioridade: é uma estranha experiência para quem, para si, se arvora em Um, ser revelado a si mesmo como alteridade. É o que acontece à menina quando, fazendo o aprendizado do mundo, nele se percebe mulher. A esfera a que pertence é por todos os lados cercada, limitada, dominada pelo universo masculino: por mais alto que se eleve, por mais longe que se aventure, haverá sempre um teto acima de sua cabeça, muros que lhe barrarão o caminho. Os deuses do homem acham-se em um céu tão longínquo que, em verdade, não há deuses para ele: a menina vive entre deuses de fisionomias humanas.

Essa situação não é única. É também a que conhecem os negros da América do Norte, parcialmente integrados numa civilização que os considera entretanto como casta inferior. O que Big Thomas [4] sente com tamanho rancor na aurora de sua vida, é essa definitiva inferioridade, essa alteridade maldita que se inscreve na cor da pele: ele olha os aviões passar e sabe que por ser negro o céu lhe é vedado. Por ser mulher, a menina sabe que o mar e os pólos, mil aventuras e mil alegrias lhe são proibidas: nasceu do lado errado. A grande diferença está em que os negros suportam revoltados a sua sorte ao passo que a mulher é convidada à cumplicidade. Já lembrei [5] que, ao lado da autêntica reivindicação do sujeito que quer para si liberdade soberana, há no existente um desejo inautêntico de demissão e de fuga. São as delícias da passividade que pais e educadores, livros e mitos, mulheres e homens, fazem brilhar aos olhos da menina; ensinam-lhe já na primeira infância a apreciá-las; a tentação torna-se dia a dia mais insidiosa; ela cede tanto mais fatalmente quanto o impulso de sua transcendência se choca contra resistências mais severas. Mas, aceitando a passividade, ela aceita também suportar, sem resistência, um destino que lhe será imposto de fora, e essa fatalidade amedronta-a. Seja ambicioso, parvo ou tímido, é para um futuro aberto que o menino se atira; será marinheiro ou engenheiro, ficará no campo ou irá para a cidade, verá o mundo, tornar-se-á rico; sente-se livre em face de um futuro em que possibilidades imprevistas o aguardam. A menina será esposa, mãe, avó; tratará da casa, exatamente como fez sua mãe, cuidará dos filhos como foi cuidada: tem 12 anos e sua história já está escrita no céu; ela a descobrirá dia após dia sem nunca a fazer; mostra-se curiosa mas assustada quando evoca essa vida cujas etapas estão todas de antemão previstas e para a qual cada dia a encaminha inelutavelmente.

[4] Cf. R. Wright, Filho Nativo.

[5] Cf. vol. I3 págs. 14-15.

Eis por que, muito mais ainda que os irmãos, a menina se preocupa com os mistérios sexuais; eles também se interessam apaixonadamente por isso, mas, em seu futuro, o papel de marido, de pai, não é aquilo com que mais se preocupam; no casamento, na maternidade é todo o destino da menina que é posto em xeque; e logo que ela principia a pressentir-lhe os segredos, o próprio corpo apresenta-se a ela odiosamente ameaçado. A magia da maternidade dissipou-se; que tenha sido informada mais ou menos cedo, de maneira mais ou menos coerente, já sabe que o filho não surge por acaso no ventre materno e que não é com um golpe de vara de condão que daí sai. Ela interroga-se com angústia. Muitas vezes parece-lhe maravilhoso mas horrível que um corpo parasita deva proliferar dentro de seu corpo; a ideia dessa monstruosa inchação apavora-a. E como sairá o bebê? Mesmo se ninguém lhe falou dos gritos e sofrimentos da maternidade, ela ouviu palavras e leu o trecho da Bíblia: "Conceberás na dor"; ela pressente torturas que não seria capaz de imaginar sequer; inventa estranhas operações na região do umbigo; supõe que o feto será expulso pelo ânus e isso não a tranquiliza muito mais. Viu-se meninas terem ataques de constipação neurótica quando pensaram haver descoberto o processo do nascimento. Explicações exatas não serão de grande valia: as imagens de inchaço, de ferimento, de hemorragia irão obsidiá-la. A menina será tanto mais sensível a essas visões quanto mais imaginação tiver; mas nenhuma poderá olhá-las de frente sem tremer. Colette conta que a mãe a encontrou desfalecida porque ela, Colette, lera em Zola a descrição de um nascimento.


O autor pintava o parto "com um luxo brusco e cru de pormenores, uma minúcia anatômica, uma complacência na dor, na atitude, no grito que não reconheci mais nada de minha tranquila competência de moça do campo. Senti-me crédula, assustada, ameaçada em meu destino de femeazinha, . . Outras palavras que tinha sob os olhos pintavam a carne esquartejada, o excremento, o sangue maculado... O gramado recebeu-me estendida e mole como essas lebrezinhas recém-matadas que o caçador clandestino traz para a cozinha".


As palavras de tranquilização oferecidas pelos adultos deixam a criança inquieta; ao crescer, ela aprende a não mais acreditar neles sob palavra; muitas vezes foi acerca dos próprios mistérios da geração que ela surpreendeu as mentiras; ela sabe também que eles consideram normais as coisas mais apavorantes; se experimentou algum choque físico violento — amídalas extraídas, dente arrancado, panarício cortado a bisturi — ela projetará no parto a angústia de que guardou a recordação.

O caráter físico da gravidez, do parto, sugere desde logo que entre os esposos "alguma coisa de físico ocorre". A palavra "sangue" que se encontra amiúde em expressões como "filho do meu sangue, puro sangue, sangue mestiço" orienta por vezes a imaginação infantil; supõe-se que o casamento se acompanha de alguma transfusão solene. Mais comumente, porém, a "coisa física" apresenta- se como ligada ao sistema urinário e excremental; em particular, as crianças comprazem-se em supor que o homem urina na mulher. A operação sexual é pensada como coisa suja. É o que desnorteia a criança para a qual as coisas "sujas" foram cercadas dos mais severos tabus: como acontece então que os adultos as integrem em suas vidas? A criança defende-se a princípio contra o escândalo pelo próprio absurdo do que descobre: não acha nenhum sentido no que ouve contarem, no que lê, no que escreve; tudo se lhe afigura irreal. No livro encantador de Carson Mac Cullers: The member of the wedding, a jovem heroína surpreende dois vizinhos nus na cama; a própria anomalia da história impede que ela lhe atribua importância.


Era um domingo de verão e a porta dos Marlowe estava aberta. Ela só podia ver uma parte do quarto, uma parte da cômoda e unicamente o pé da cama sobre a qual se achava o colete de Mrs. Marlowe. Mas havia no quarto tranquilo um ruído que ela não compreendia e quando se adiantou para a soleira, foi tomada de espanto ante um espetáculo que desde o primeiro momento a repeliu até a cozinha gritando: Mrs. Marlowe teve um ataque! Berenice precipitara-se no saguão, mas quando olhou para o quarto apenas cerrou os lábios e bateu a porta. . . Frankie tentara questionar Berenice para descobrir de que se tratava. Mas Berenice dissera somente que eram gente ordinária e acrescentara que, por consideração para com certa pessoa, deveriam ao menos ter fechado a porta. Frankie sabia que era ela própria essa pessoa e no entanto não compreendia. Que espécie de ataque seria? indagou. Mas Berenice respondeu somente: "Um ataque comum, meu bem". E Frankie compreendeu pelo tom da voz que não lhe diziam tudo. Posteriormente, só recordava os Marlowe como gente ordinária. . .




continua página 42...

_____________________

______________________


As mulheres de nossos dias estão prestes a destruir o mito do "eterno feminino": a donzela ingênua, a virgem profissional, a mulher que valoriza o preço do coquetismo, a caçadora de maridos, a mãe absorvente, a fragilidade erguida como escudo contra a agressão masculina. Elas começam a afirmar sua independência ante o homem; não sem dificuldades e angústias porque, educadas por mulheres num gineceu socialmente admitido, seu destino normal seria o casamento que as transformaria em objeto da supremacia masculina.
Neste volume complementar de O SEGUNDO SEXO, Simone de Beauvoir, constatando a realidade ainda imediata do prestígio viril, estuda cuidadosamente o destino tradicional da mulher, as circunstâncias do aprendizado de sua condição feminina, o estreito universo em que está encerrada e as evasões que, dentro dele, lhe são permitidas. Somente depois de feito o balanço dessa pesada herança do passado, poderá a mulher forjar um outro futuro, uma outra sociedade em que o ganha--pão, a segurança econômica, o prestígio ou desprestígio social nada tenham a ver com o comércio sexual. É a proposta de uma libertação necessária não só para a mulher como para o homem. Porque este, por uma verdadeira dialética de senhor e servo, é corroído pela preocupação de se mostrar macho, importante, superior, desperdiça tempo e forcas para temer e seduzir as mulheres, obstinando-se nas mistificações destinadas a manter a mulher acorrentada.
Os dois sexos são vítimas ao mesmo tempo do outro e de si. Perpetuar-se-á o inglório duelo em que se empenham enquanto homens e mulheres não se reconhecerem como semelhantes, enquanto persistir o mito do "eterno feminino". Libertada a mulher, libertar-se-á também o homem da opressão que para ela forjou; e entre dois adversários enfrentando-se em sua pura liberdade, fácil será encontrar um acordo.
O SEGUNDO SEXO, de Simone de Beauvoir, é obra indispensável a todo o ser humano que, dentro da condição feminina ou masculina, queira afirmar-se autêntico nesta época de transição de costumes e sentimentos.



"O que é uma mulher?"






Carmen - Teatro de Zarzuela

Teatro de  Zarzuela



Verde que te quero verde.
Verde vento. Verdes ramas.
O barco vai sobre o mar
e o cavalo na montanha.
Com a sombra pela cintura
ela sonha na varanda,
verde carne, tranças verdes,
com olhos de fria prata.
Verde que te quero verde.
Por sob a lua gitana,
as coisas estão mirando-a
e ela não pode mirá-las.


Federico García Lorca 



El Gato Montés

Teatro de  Zarzuela

23 de fev. de 2012








Mães da Favela

Valeu, Mãe! abença... Mãe... abença Vó!



CUFA - Central Única das Favelas










20 MIL MULHERES SERÃO CONTEMPLADAS COM R$ 120, VALOR QUE SE CHAMARÁ ‘VALE MÃE’ EM 18 ESTADOS BRASILEIROS POR DOIS MESES.
SERÃO 40 MIL ‘VALES MÃE’


A Central Única das Favelas (CUFA) lançou nesta sexta-feira, dia 3 de abril, o programa “Mães da Favela”. O objetivo é auxiliar mães solo moradoras de favelas de 17 estados e do Distrito Federal que estão sendo fortemente atingidas pelos reflexos do Coronavírus (Covid-19). O programa social faz parte do projeto “CUFA Contra o Vírus”. 

 “A CUFA já entregou mais 100 toneladas de alimentos em todo o Brasil. Durante essa entrega, suas lideranças e voluntários ouviram que muitas mulheres precisavam de auxílio para comprar não só alimentos, mas também remédios e gás. Logo, a organização decidiu ajudar financeiramente para que possam escolher os itens que precisam”, conta Celso Athayde, fundador da CUFA. 

 Neste primeiro momento, a CUFA destinará uma bolsa de R$ 120, chamada “Vale Mãe”, durante dois meses para 20 mil mães, via aplicativo PicPay, totalizando 40 mil vales a serem distribuídos. O repasse deve acontecer em 15 de abril e 15 de maio. “As doações são recebidas através do site oficial do programa e do app. Quem quiser doar, seja pessoa física ou jurídica, transfere da sua conta na plataforma para a conta da CUFA. Nós recebemos e fazemos a distribuição para as mães que estão mais vulneráveis entre os vulneráveis ”, explica Athayde. 

 Para assegurar a transparência do processo, haverá um contador de entrada de recursos na página do site e uma auditoria externa, feita pela Proaudit. A Idtech Acesso Digital auxiliará o cadastro das mães com a tecnologia de reconhecimento facial, garantindo que elas serão as reais beneficiárias. A escolha das mães fica a cargo das lideranças das CUFAs nos estados, entidades responsáveis pela identificação daquelas que demandam maior auxílio para criar e sustentar os seus filhos. 

 “Temos milhões de mulheres que estão desamparadas por todo o Brasil, sem condições de colocar dinheiro em casa por conta do isolamento. Faremos o máximo possível para atenuarmos as suas dificuldades tendo em vista que 50% dos lares são chefiados por mães”, ressalta Athayde. 

 O programa contará também com dois institutos importantes para medir o impacto da ação: O Instituto Locomotiva e Data Favela, o primeiro presidido por Renato Meirelles, e o segundo, fundado também por Renato juntamente com Celso Athayde. 

 Renato Meirelles, também destaca a importância da ação para os pequenos empreendimentos nas comunidades. “O programa ‘Mães na Favela’ é uma maneira de ajudar as mulheres que colocam o que comer dentro suas casas, além de fortalecer os pequenos comércios nos bairros”, afirma. “As favelas têm mais de 5,2 milhões de mães. São as chefes de família que controlam melhor o orçamento, cuidam das crianças e ainda prezam pela saúde dos idosos que moram em suas casas”, complementa Meirelles. 

 Pesquisa inédita do Data Favela/Instituto Locomotiva revela que 9 em cada 10 mães mudaram suas rotinas devido ao Coronavírus, sendo que todas afirmam que estão muito preocupadas com o impacto dessa doença. Em relação às questões financeiras, 84% já tiveram a renda diminuída, 87% estão cortando gastos e 73% declaram que não conseguirão manter o padrão de vida por nenhum período se perderem a renda familiar. 

 Por fim, toda a campanha de comunicação dentro das favelas será realizada pela empresa de outdoor comunitário, Comunidade Door. 

 “É sempre um prazer colaborar com as grandes ações que a CUFA promove, esse programa não será diferente”, afirma Leo Ribeiro, CEO da Comunidade Door. 

 Site do programa: 

 www.maesdafavela.com.br/




Mãe da Favela
Leoa guerreira, protege a família
Sua vida inteira
Mãe da Favela
Preta, branca, Índia
Pobre, forte, mulher brasileira
Mãe da Favela
Partilha a mistura, alimenta a cria
Não marca bobeira
Mãe da Favela
de cabeça erguida, com muito orgulho

Mulher brasileira

Abença Mãe, abença Vó
Vamos vencer o pior
Abença Mãe ,abença Vó
Tudo vai ficar melhor




Diretor Geral - Celso Athayde
Produção executiva - Debora Mayara, Thales P. Athayde e Flavio Régis (Bom Gosto)
Produção artística - Dudu Nobre
Produção Musical - Dudu Nobre e Duzinho Soares
Autores - Nega Gizza e Dudu Nobre



▸Videoclipe

Ficha técnica

Direção - Celso Athayde
Codireção - Thales P. Athayde e Débora Mayara
Produção executiva - Eliane Caccavo e Leo Ribeiro
Edição - Édipo Ferraz
Montagem - Édipo Ferraz e Celso Athayde Júnior
Assistente de direção - Dinorá Rodrigues e Marcus Vinícius Athayde
Roteiro - Claudia Raphael (CUFA Paraisópolis) e Marilza Pereira Athayde
Pesquisa - Renato Meirelles
Consultoria artística - Gabi Onofre, Carmela Borst e André Szajman
Coordenação de T.I. - Aline Girasole e Wellington Galdino
Comunicação- Carolina Marciale e Bruno Vater
Produção - Truque Produções.


▸As doações, que ajudam mães do Brasil inteiro, podem ser feitas através dos seguintes canais:

www.maesdafavela.com.br

www.cufa.org.br

Link da nossa Vakinha Online: http://vaka.me/974540

Link de arrecadação PicPay: https://app.picpay.com/payment?type=s...

Link de arrecadação Kickante: http://abre.ai/kmdf


Nossa Conta: CUFA - Central Única das Favelas
CNPJ:06.052.228/0001-01
Bradesco Ag.: 0087
C/C: 5875-0


sexta-feira, 29 de maio de 2020

Julio Verne - A Volta ao Mundo em 80 Dias, Capítulo XIX

Júlio Verne


A Volta ao Mundo em 80 Dias





CAPÍTULO XIX
EM Q UE PASSEPARTOUT SE INTERESSA MUITO MESMO PELO
PATRÃO E O Q UE DAÍ SE SEGUE






Hong Kong é apenas uma ilha, cuja posse foi assegurada à Inglaterra pelo tratado de Nankin, depois da guerra de 1842. Em poucos anos, o gênio colonizador da Grã-Bretanha ali havia fundado uma cidade importante e criado um porto, o porto Victoria. Este ilha está situada na embocadura do rio de Cantão, e apenas sessenta milhas a separam da cidade portuguesa de Macau, construída na outra margem. Hong Kong deveria necessariamente vencer Macau em uma luta comercial, e agora a maioria do trânsito chinês passa pela cidade inglesa. Docas, hospitais, wharfs, alfândegas, uma catedral gótica, uma “government house”, ruas cobertas de macadame, tudo fazia supor que uma das cidades comerciais dos condados de Kent ou de Surrey , atravessando o esferoide terrestre, viera sair neste ponto da China, quase nos seus antípodas.

Passepartout, as mãos nos bolsos, dirigiu-se para o porto Victoria, contemplando os palanquins, os carrinhos de vela, ainda em uso no Celeste Império, e toda a multidão de chineses, japoneses e de europeus que se comprimiam nas rua. Com pequenas diferenças, era ainda Bombaim, Calcutá ou Cingapura, que o digno moço encontrava no seu trajeto. Há assim como que uma fieira de cidades inglesas ao redor do mundo.

Passepartout chegou ao porto Victoria. Ali, na embocadura do rio de Cantão, havia um formigueiro de navios de todas as nações, ingleses, franceses, americanos, holandeses, navios de guerra e de comércio, embarcações japonesas ou chinesas, juncos, sempas, tankas, e mesmo barcos de flores que pareciam canteiros sobre as águas. Passeando, Passepartout notou um certo número de nativos vestidos de amarelo, todos com idade muito avançada. Tendo entrado num barbeiro chinês para se barbear “a lá chinesa” soube pelo Fígaro do lugar, que falava um inglês muito bom, que todos aqueles velhos tinham pelo menos oitenta anos, e que nessa idade tinham o privilégio de usar a cor amarela, que é a cor imperial. Passepartout achou aquilo muito esquisito, sem bem saber por quê.

Barba feita, dirigiu-se para o cais de embarque do Carnatic, e avistou Fix que passeava por ali, o que não o surpreendeu. Mas o inspetor de polícia deixava transparecer no rosto as marcas de um profundo desapontamento.

— Bem! disse consigo Passepartout, as coisas vão mal para os gentlemen do Reform Club.

E dirigiu-se para Fix com seu sorriso jovial, sem querer notar o ar vexado de seu companheiro.

Ora, o agente tinha boas razões para amaldiçoar a infernal sorte que o perseguia. Nada de mandado! Era evidente que o mandado corria após ele, e só poderia alcançá-lo se Fix se demorasse alguns dias nesta cidade. Ora, Hong Kong sendo a última terra inglesa do percurso, o senhor Fogg iria escapar-lhe definitivamente, se não conseguisse detê-lo por ali.

— Muito bem, senhor Fix, está resolvido a vir conosco para a América? perguntou Passepartout.

— Sim, respondeu Fix com os dentes cerrados.

— Vamos então! exclamou Passepartout soltando uma estrondosa gargalhada!

Bem sabia que não podia separar-se de nós. Venha reservar seu lugar, venha! E os dois entraram no escritório dos transportes marítimos e reservaram cabinas para quatro pessoas. Mas o empregado avisou-os de que os reparos do Carnatic estavam concluídos, que o paquete partiria naquele mesmo dia às oito horas, e não no dia seguinte, como tinha sido anunciado.

— Muito bem! exclamou Passepartout, isso agradará meu patrão. Vou avisá-lo.

Neste momento, Fix tomou uma decisão extrema. Decidiu dizer tudo a Passepartout. Era talvez o único meio que tinha para reter Phileas Fogg mais alguns dias em Hong Kong.

Ao saírem do escritório, Fix convidou seu companheiro para beberem alguma coisa numa taverna. Passepartout tinha tempo. Aceitou o convite de Fix. Uma taverna se abria para o cais. Tinha um aspecto atraente. Entraram. Era uma vasta sala bem decorada, ao fundo da qual se estendia uma cama de campanha, guarnecida de almofadas. Sobre este leito estavam enfileirados um certo número de pessoas dormindo.

Uns trinta fregueses ocupavam na sala principal pequenas mesas de junco trançado. Alguns esvaziavam copos de cerveja inglesa, ale ou porter, outros sorviam bebidas alcoólicas, gin ou brandy . Além disto, a maioria fumava compridos cachimbos de barro vermelho, cheios de bolinhas de ópio misturado com essência de rosa. De tempo em tempo, algum fumador inebriado deslizava para baixo da mesa, e os criados do estabelecimento, tomando-o pelos pés e pela cabeça, colocavam-no sobre a cama de campanha perto de um confrade. Uns vinte estavam já deitados lado a lado, no último grau de embrutecimento.

Fix e Passepartout compreenderam que tinham entrado num antro fumacento frequentado por esses miseráveis, abestalhados, emagrecidos, idiotas, aos quais a mercantil Inglaterra vende anualmente duzentos e sessenta milhões de francos dessa droga funesta chamada ópio! Tristes milhões, adquiridos com um dos mais funestos vícios da natureza humana.

O governo chinês bem que tentou remediar este abuso com leis severas, mas em vão. Da classe rica, à qual o uso do ópio inicialmente era formalmente reservado, este uso desceu até às classes inferiores, e o turbilhão não pode mais ser detido. Fuma-se ópio em todos os lugarem e sempre no Império do Meio. Homens e mulheres dão-se a esta paixão deplorável, e uma vez costumados à inalação, não podem passar sem ela, sem experimentarem horríveis contrações do estômago. Um grande fumador pode fumar oito cachimbos por dia, mas morre em cinco anos.

Ora, era em um dos numerosos antros deste tipo, que pululam, mesmo em Hong Kong, que Fix e Passepartout tinham entrado com a intenção de beber alguma coisa. Passepartout não tinha dinheiro, mas aceitou de bom grado a “cortesia” do seu companheiro, reservando-se o direito de retribuí-la em outra oportunidade. Pediram duas garrafas de porto, às quais o francês rendeu honras, enquanto Fix, mais reservado, observava o companheiro com extrema atenção. Conversaram sobre variedades, e sobretudo sobre a excelente ideia que Fix tivera de ir no Carnatic. E a propósito do vapor, cuja partida fora antecipada em algumas horas, Passepartout, com as garrafas vazias, levantou-se, para ir avisar seu patrão.

Fix o deteve.

— Um instante, disse.

— Que quer, senhor Fix?

— Tenho que lhe falar de coisas sérias.

— De coisas sérias! exclamou Passepartout acabando de beber algumas gotas de vinho que tinham ficado no fundo do seu copo. Bem, falamos nisso amanhã. Não tenho tempo hoje.

— Fique, respondeu Fix. Trata-se de seu patrão!

Passepartout, à menção do patrão, olhou atentamente seu interlocutor.

A expressão do rosto de Fix pareceu-lhe singular. Voltou a sentar.

— Que é que tem para me dizer? perguntou ele.

Fix apoiou a mão no braço do companheiro, e, abaixando a voz:

— Adivinhou quem sou? perguntou.

— Claro! disse Passepartout sorrindo.

— Então vou confessar-lhe tudo...

— Agora que já sei tudo, meu compadre! Ah! grande coisa! Em todo caso, continue. Mas, antes, deixe-me dizer que esses senhores meteram-se em despesas inutilmente!

— Inutilmente! disse Fix. Fala sem pensar! Bem se vê que não sabe de que quantia se trata.

— Mas sei, sei sim, respondeu Passepartout. Vinte mil libras!

— Cinquenta e cinco mil! replicou Fix, apertando a mão do francês.

— O que! exclamou Passepartout, Mr. Fogg teria ousado!... cinqüenta e cinco mil libras!... Pois bem! mais razão ainda para não perder um instante, acrescentou levantando-se novamente.

— Cinquenta e cinco mil libras! retomou Fix, que forçou Passepartout a voltar a se assentar, depois de mandar vir um frasco de brandy, — e se me sair bem, ganho uma gratificação de duas mil libras. Quer quinhentas (12.500 F) com a condição de me ajudar?

— Ajudar? exclamou Passepartout, cujos olhos estavam desmesuradamente abertos.

— Sim, me ajudar a reter o senhor Fogg por alguns dias em Hong Kong!

— Hein! fez Passepartout, o que está dizendo? Como! não contentes em mandarem seguir meu patrão, de suspeitarem da sua lealdade, esses senhores querem ainda levantar-lhe obstáculos! Envergonho-me por eles!

— Calma! o que quer dizer? perguntou Fix.

— Quero dizer que é pura indelicadeza. É o mesmo que depenar Mr. Fogg, tirar dinheiro do seu bolso!

— Ei! é exatamente o que esperamos fazer!

— Mas é uma armadilha! exclamou Passepartout — que ia se animando sob a influência do brandy que Fix lhe servia, e que bebia sem perceber — uma verdadeira armadilha! Cavalheiros! Colegas!

Fix começava a não entender nada.

— Colegas! gritou Passepartout, membros do Reform Club! Saiba, senhor Fix, que meu patrão é um homem honesto, e que, quando faz uma aposta, é lealmente que pretende ganhá-la.

— Mas quem julga então que eu seja? perguntou Fix, fixando o olhar em Passepartout.

— É evidente! um agente dos membros do Reform Club, que tem a missão de controlar o roteiro de meu patrão, o que é muitíssimo humilhante! E mais, apesar de, já há algum tempo, ter adivinhado sua qualidade, cuidei de não a revelar a Mr. Fogg!

— Ele não sabe de nada?... perguntou Mr. Fix com vivacidade.

— Nada, respondeu Passepartout esvaziando mais uma vez seu copo.

O inspetor de polícia passou a mão pela testa. Hesitava antes de voltar a falar. O que deveria fazer? O erro de Passepartout parecia sincero, mas tornava o seu projeto mais difícil. Era evidente que o rapaz falava com absoluta boa fé, e que não era de modo algum cúmplice do seu patrão — o que Fix receara.

— Ora bem, pensou, já que não é seu cúmplice, me ajudará.

O detetive tinha tomado pela segunda vez uma decisão. Além disso, não havia tempo a perder. A todo custo, era preciso reter Fogg em Hong Kong.


— Escute, disse Fix com voz grave, escute bem. Não sou o que julga, isto é um agente dos membros do Reform Club...

— Bah! disse Passepartout, olhando para ele com ar alcoolizado.

— Sou um inspetor de polícia, encarregado de uma missão pela administração metropolitana...

— O senhor... inspetor de polícia!...

— Sim, e provo, retomou Fix. Eis a minha nomeação.

E o agente, tirando um papel da carteira, mostrou a seu companheiro uma nomeação assinada pelo comissário da polícia central. Passsepartout, estupefato, olhava Fix sem poder articular uma palavra.

— A aposta de Phileas Fogg, tornou Fix, é apenas um pretexto com que enganou, a si e a seus colegas do Reform Club, porque tinha interesse em se assegurar de sua inconsciente cumplicidade.

— Mas por quê?... exclamou Passepartout.

— Ouça. Em 28 de setembro passado, um roubo de cinqüenta e cinco mil libras foi cometido no Banco da Inglaterra por um indivíduo cuja descrição se pôde obter. Ora, eis esta descrição, e é, traço por traço, a do senhor Fogg.

— Deixe-se disso! gritou Passepartout dando um murro na mesa com o seu punho robusto. Meu patrão é o homem mais honesto do mundo!

— Como sabe? respondeu Fix. Nem sequer o conhece! Entrou para o seu serviço no dia de sua partida, e ele partiu precipitadamente sob um pretexto insensato, sem malas, levando uma grande soma em bank-notes! E ainda se atreve a sustentar que é um homem honesto!

— Sim! Sim! repetia maquinalmente o pobre moço.

— Quer então ser preso como seu cúmplice?

Pasepartout agarrara a cabeça com as duas mãos. Não era mais reconhecível.

Não ousava encarar o inspetor de polícia. Phileas Fogg um ladrão, ele, o salvador de Aouda, o homem generoso e valente! E contudo que acusações levantavam contra ele! Passepartout procurava repelir as suspeitas que começavam a se insinuar em seu espírito! Não queria acreditar na culpabilidade de seu patrão.

— Afinal, que quer de mim? disse ao agente de polícia, contendo-se com supremo esforço.

— O seguinte, respondeu Fix. Segui o senhor Fogg até aqui, mas ainda não recebi o mandado de prisão, que pedi a Londres. É preciso portanto que me ajude a reter em Hong Kong...

— Eu! que o...

— E reparto consigo a gratificação de duas mil libras prometida pelo Banco da Inglaterra!

— Jamais! respondeu Passepartout, que queria se levantar e voltou a tombar na cadeira, sentindo a razão e as forças lhe fugirem ao mesmo tempo.

— Senhor Fix, disse balbuciando, mesmo que tudo o que me disse fosse verdade... mesmo que meu patrão fosse o ladrão que procura... o que nego... tenho estado... estou ao seu serviço... eu o vi bom e generoso... Traí-lo... jamais... nem por todo o ouro do mundo... Sou de um vilarejo onde não se come esse pão!..

— Recusa?

— Recuso.

— Façamos de conta que não disse nada, e bebamos.

— Sim, bebamos!

Passepartout se sentia cada vez mais dominado pela embriaguez. Fix, compreendendo que era preciso, custasse o que custasse, separá-lo do patrão, quis completar a tarefa. Sobre a mesa havia alguns cachimbos cheios de ópio. Fix empurrou um sutilmente para a mão de Passepartout, que o pegou, levou aos lábios, acendeu, deu algumas baforadas e desabou, a cabeça aturdida sob a influência do narcótico.

Afinal, disse Fix vendo Passepartout aniquilado, o senhor Fogg não será avisado a tempo da partida do Carnatic, e se partir, irá ao menos sem este maldito francês! Depois saiu, após ter pago a conta.






_______________________


Julio Verne nasceu em Nantes em 8 de fevereiro de 1828. Fugiu de casa com 11 anos para ser grumete e depois marinheiro. Localizado e recuperado, retornou ao lar paterno. Em um furioso ataque de vergonha por sua breve e efêmera aventura, jurou solenemente (para a sorte de seus milhões de leitores) não voltar a viajar senão em sua imaginação e através de sua fantasia.

Promessa que manteve em mais de oitenta livros.

Sua adolescência transcorreu entre contínuos choques com o pai, para quem as veleidades exploratórias e literárias de Júlio pareciam totalmente ridículas.

Finalmente conseguiu mudar-se para Paris onde entrou em contato com os mais prestigiados literatos da época. Em 1850 concluiu seus estudos jurídicos e, apesar insistência do pai para que voltasse a Nantes, resistiu, firme na decisão de tornar-se um profissional das letras.

Foi por esta época que Verne, influenciado pelas conquistas científicas e técnicas da época, decide criar uma literatura adaptada à idade científica, vertendo todos estes conhecimentos em relatos épicos, enaltecendo o gênio e a fortaleza do homem em sua luta por dominar e transformar a natureza.

Em 1856 conheceu Honorine de Vyane, com quem casou em 1857.

Por essa época, era um insatisfeito corretor na Bolsa, e resolveu seguir o conselho de um amigo, o editor P. J. Hetzel, que será seu editor in eternum, e converteu um relato descritivo da África no Cinco Semanas em Balão (1863). Obteve êxito imediato. Firmou um contrato de vinte anos com Hetzel, no qual, por 20.000 francos anuais, teria de escrever duas novelas de novo estilo por ano. O contrato foi renovado por Hetzel e, mais tarde, por seu filho. E assim, por mais de quarenta anos, as Voyages Extraordinaires apareceram em capítulos mensais na revista Magasin D'éducation et de Récréation.

Em A Volta ao Mundo em 80 Dias, encontramos, ao mesmo tempo, muito da breve experiência de Verne como marinheiro e como corretor de Bolsa. Nada mais justo, também, que o novo estilo literário inaugurado por Júlio Verne, fosse utilizado por uma nova arte que surgia: o cinema. Da Terra à Lua (Georges Mélies, 1902), La Voyage a travers l'impossible (Georges Mélies, 1904), 20.000 lieus sous les mers (Georges Mélies, 1907), Michael Strogof (J. Searle Dawley, 1910), La Conquête du pôle (Georges Mélies, 1912) foram alguns dos primeiros filmes baseados em suas obras. Foram inúmeros.

A Volta ao Mundo em 80 dias foi filmado em 1956, com enredo milionário, dirigido por Michael Anderson, música de Victor Young, direção de fotografia de Lionel Lindon. David Niven fez Phileas Fogg, Cantinflas, Passepartout, Shirley MacLaine, Aouda. Em 1989, foi aproveitado para uma série de TV, com a participação da BBC, dirigida por Roger Mills. No mesmo ano, outra série de TV, agora nos EE.UU., dirigida por Buzz Kulik, com Pierce Brosnan (Phileas Fogg), Eric Idle (Passepartout), Julia Nickson-Soul (Aouda), Peter Ustinov (Fix).

Apesar de tudo, a vida de Verne não foi fácil. Por um lado sua dedicação ao trabalho minou a tal ponto sua saúde que durante toda a vida sofreu ataques de paralisia. Como se fosse pouco, era diabético e acabou por perder vista e ouvido. Seu filho Michael lhe deu os mesmos problemas que dera ao pai e, desgraça das desgraças, um de seus sobrinhos lhe disparou um tiro à queima-roupa deixando-o coxo. Sua vida efetiva também não foi das mais tranquilas e todos os seus biógrafos admitem ter tido uma amante, um relacionamento que só terminou com a morte da misteriosa dama.

Verne também se interessou pela política, tendo sido eleito para o Conselho de Amiens em 1888 na chapa radical, reeleito em 1892, 1896 e 1900.

Morreu em 24 de Março de 1905


_____________________


Leia também:

_________________________

A Volta ao Mundo em 80 Dias é um romance de aventura escrito pelo francês Júlio Verne e lançado em 1873. A obra retrata a tentativa do cavalheiro inglês Phileas Fogg e seu valete, Passepartout, de circum-navegar o mundo em 80 dias.

Data da primeira publicação: 30 de janeiro de 1873
Autor: Júlio Verne
Editora: Pierre-Jules Hetzel
País: França
Personagens: Phileas Fogg, Passepartout, Princesa Aouda, Inspetor Fix, James Forster


________________________



sempre com algum spolier...


A VOLTA AO MUNDO EM 80 DIAS, de Jules Verne




Virgínia Woolf - Orlando : Capítulo 1(c) ... A princesa prosseguiu

Capítulo 1





A princesa prosseguiu. Quem eram aqueles dois grosseirões, perguntou, que estavam sentados a seu lado, com maneiras de cavalariços? Que era aquela mistura repugnante que derramavam em seu prato? Os cães na Inglaterra comiam na mesma mesa que os homens? Aquela figura grotesca na extremidade da mesa, com cabelo enfeitado como um pau de sebo,(comme une grande perche mal fagotée) [7] era realmente a rainha? E o rei, babava sempre assim? E qual daqueles papagaios era George Villiers? Embora essas perguntas, no início, desconcertassem Orlando, eram feitas com tanta brejeirice e graça que ele não pôde deixar de rir; e viu, pelos rostos inexpressivos dos companheiros, que ninguém compreendeu uma só palavra, e respondeu-lhe tão livremente quanto ela perguntou, falando como ela em um francês perfeito. 

Assim começou entre ambos uma intimidade que logo se tornou o escândalo da corte.

Logo foi observado que Orlando dispensava à moscovita mais atenção do que a mera civilidade exigia. Raramente se afastava dela, e sua conversa, embora ininteligível para os outros, era conduzida com tal animação, provocava tantos rubores e risos que os mais estúpidos podiam adivinhar o assunto. Além disso, a mudança do próprio Orlando era extraordinária. Ninguém jamais o vira tão animado. Em uma noite ele se livrara da sua falta de jeito de menino; mudara, de um adolescente mal-humorado, que não podia entrar num aposento feminino sem derrubar metade dos enfeites da mesa, em um fidalgo cheio de graça e cortesia varonil. Vê-lo conduzir a moscovita (como ela era chamada) para o seu trenó, ou oferecer-lhe a mão para uma dança, ou apanhar o lenço pintado que ela deixara cair, ou cumprir qualquer outro desses múltiplos deveres que a suprema dama exige e o amante se apressa em atender, era uma visão que excitava os olhos dos velhos e fazia bater mais rápido o pulso dos jovens. Sobre isso tudo, no entanto, pairava uma nuvem. Os velhos davam de ombros. Os jovens sorriam dissimuladamente. Todos sabiam que Orlando estava comprometido com outra. Lady Margaret O’Brien O’Dare O’Reilly Tyrconnel (pois este era o verdadeiro nome da Eufrosina dos sonetos) usava a esplêndida safira de Orlando no segundo dedo da mão esquerda. Era ela quem tinha o direito supremo às suas atenções. No entanto, ela podia deixar cair no gelo todos os lenços de seu guarda-roupa (os quais tinha em grande número) sem que Orlando se curvasse para apanhá-los. Podia esperar vinte minutos por ele para que a conduzisse ao seu trenó e por fim contentar-se com os serviços de seu lacaio negro. Quando patinava, o que fazia desajeitadamente, ninguém estava ao seu lado para encorajá-la, e, se caísse, o que fazia um tanto pesadamente, ninguém a levantava do chão, nem lhe sacudia a neve das saias. Embora fosse naturalmente fleugmática, custasse a se ofender e fosse mais relutante do que a maioria das pessoas em acreditar que uma simples estrangeira pudesse afastá-la da afeição de Orlando, a própria Lady Margaret, por fim, chegou a suspeitar de que algo estava sendo tramado contra a sua paz de espírito.

Na verdade, à medida que os dias se passavam, Orlando tinha cada vez menos cuidado em ocultar seus sentimentos. Dando uma desculpa ou outra, retirava-se logo após o jantar ou escapava dos patinadores quando estavam formando pares para uma quadrilha. Logo em seguida via-se que a moscovita tinha desaparecido também. Porém o que mais ultrajava a corte e a feria na parte mais sensível, que é a sua vaidade, era que o casal era frequentemente visto deslizando sob o cordão de seda que separava o recinto real da parte pública do rio, desaparecendo no meio da multidão. Pois de repente a princesa batia o pé e gritava: “Leve-me daqui. Eu detesto sua plebe inglesa”, referindo-se à própria corte inglesa. Ela não podia suportar mais. Estava cheia de velhas intrometidas que encaravam as pessoas, disse, e de jovens convencidos que lhe pisavam os pés. Eles cheiravam mal. Seus cachorros corriam-lhe por entre as pernas. Era como estar numa jaula. Na Rússia havia vales com dez milhas de largura, por onde se podia galopar com seis cavalos lado a lado o dia inteiro sem encontrar vivalma. Além disso, ela queria ver a Torre, os Guardas, as Cabeças Decapitadas em Temple Bar e as joalherias da cidade. Assim, Orlando levou-a à cidade, mostrou-lhe os Guardas e as cabeças dos rebeldes e comprou tudo aquilo de que ela se agradou na Bolsa Real. Mas não era o suficiente. Ambos desejavam cada vez mais a companhia um do outro, em particular, o dia todo, onde não houvesse ninguém que os olhasse e importunasse. Por isso, em vez de seguirem caminho para Londres davam a volta pelo outro lado e logo tinham ultrapassado a multidão ao longo dos braços gelados do Tâmisa, onde não encontravam ninguém exceto aves marinhas ou alguma velha camponesa quebrando gelo numa vã tentativa de conseguir um balde d’água, ou catando alguns gravetos ou folhas secas que pudesse achar para o fogo. Os pobres permaneciam perto de suas casas, e os que tinham mais recursos se dirigiam para a cidade em busca de calor e alegria.

Por isso, Orlando e Sasha, como ele a chamava para abreviar e porque era um nome de uma raposa branca russa que ele tivera em pequeno — uma criatura suave como a neve, mas com dentes de aço que o mordeu tão ferozmente que seu pai mandou matar —, por isso eles ficavam com o rio para si. Aquecidos pela patinação e pelo amor, atiravam-se em algum lugar solitário, onde os juncos amarelos adornavam a margem, e Orlando, envolto numa grande capa de pele, tomava-a nos braços e, pela primeira vez — murmurava —, conhecia as delícias do amor. Então, quando o êxtase terminava, jaziam acalmados sobre o gelo e ele lhe falava de seus outros amores e como, comparados ao dela, tinham sido de madeira, de estopa e de cinzas. E, rindo de sua veemência, ela virava-se mais uma vez nos seus braços, dando-lhe mais um abraço como prova de amor. E então eles se maravilhavam que o gelo não tivesse derretido com o seu calor e se apiedavam da pobre velha que não dispunha de meios naturais para derretê-lo e tinha que quebrá-lo com um machado de aço frio. E então, envoltos em suas peles, conversavam sobre tudo o que existe sob o sol; de paisagens e viagens; de mouros e pagãos; da barba deste homem e da pele daquela mulher; de um rato alimentado à mesa pela mão dela; da tapeçaria que se movia sem parar na sala da casa; de um rosto; de uma pluma. Nada era pequeno demais para a conversa, e nada era tão grande.

Depois, de repente, Orlando caía numa de suas expressões de melancolia; a visão da velha mancando sobre o gelo podia ser a causa disso, ou não haver nada; atirava-se de rosto para baixo no gelo, olhava as águas congeladas e pensava na morte. Pois o filósofo tem razão ao dizer que nada mais espesso do que a lâmina de uma faca separa a felicidade da melancolia; e prossegue opinando que são gêmeas; e daí chega à conclusão de que todos os sentimentos extremos são aparentados da loucura; e assim convida-nos a buscar refúgio na verdadeira Igreja (a seu ver, a Anabatista), único porto, enseada, ancoradouro etc., dizia, para aqueles que se debatem neste mar.

— Tudo termina em morte — dizia Orlando, aprumando-se, o rosto velado de tristeza. (Pois era assim que sua mente trabalhava agora, em violentas oscilações entre a vida e a morte, sem se deter no meio, de modo que o biógrafo também não pode parar, tem voar tão rápido quanto possível e acompanhar o passo das ações impensadas, apaixonadas e loucas e de súbitas palavras extravagantes a que, é impossível negar, Orlando se entrega neste momento de sua vida.)

— Tudo acaba em morte — dizia Orlando, sentando-se no gelo. Mas Sasha, que afinal não tinha sangue inglês mas que era da Rússia, onde os crepúsculos eram mais longos, as auroras menos repentinas e as frases muitas vezes abandonadas sem terminação pela dúvida de como terminá-las da melhor maneira —, Sasha fitava-o, talvez escarnecendo, pois ele devia parecer-lhe uma criança — e não dizia nada. Mas finalmente o gelo esfriava debaixo deles, o que a ela não agradava, então fazia com que se levantasse, falava-lhe de forma tão encantadora, tão sedutora e tão sábia (mas infelizmente sempre em francês, o que, evidentemente, perde o sabor com a tradução) que ele esquecia as águas geladas, ou o cair da noite, ou a velhinha, ou o que quer que fosse, e tentava dizer-lhe — mergulhando e revolvendo-se entre mil imagens, tão gastas quanto as mulheres que as inspiraram — com o que ela parecia. Neve, creme, mármore, cerejas, alabastro, fio de ouro? Nada disso. Era com uma raposa ou como uma oliveira; como as ondas do mar quando vistas do alto; como uma esmeralda; com o sol numa colina verde ainda enevoada — como nada que ele tivesse visto ou conhecido na Inglaterra. Por mais que rebuscasse a língua, as palavras lhe faltavam. Queria uma outra paisagem e outro idioma. O inglês claro demais, cândido demais, meloso demais para Sasha. Pois em tudo o que ela dizia, embora parecesse franca e voluptuosa, havia alguma coisa oculta; em tudo o que fazia, ainda que ousado, havia algo escondido. Assim, a chama verde parece oculta numa esmeralda, ou o sol aprisionado numa colina. A claridade era apenas exterior; por dentro havia uma chama errante. Ia e vinha; nunca resplandecia como a chama imperturbável de uma mulher inglesa — aqui, no entanto, lembrando-se de Lady Margaret e suas saias, Orlando exaltava-se em seu arrebatamento e arrastava-a pelo gelo mais depressa, cada vez mais depressa, jurando alcançar a chama, mergulhar pela joia, e assim por diante, as palavras entrecortadas com a paixão de um poeta cuja poesia é meio provocada pela dor.

Mas Sasha ficava calada. Quando Orlando, cansado de dizer que ela era uma raposa, uma oliveira, ou o cume de uma colina verde, e tinha contado toda a história de sua família; como sua casa era uma das mais antigas da Inglaterra; como eles tinham vindo de Roma com os Césares e tinham direito de passear pelo Corso (que é a principal rua de Roma) sob um palanquim adornado, o que ele dizia ser um privilégio reservado unicamente àqueles de sangue imperial (pois havia uma credulidade orgulhosa de sua parte que era bastante agradável), ele parava e perguntava a ela: Onde era a sua casa? O que o seu pai era? Tinha irmãos? Por que ela estava ali sozinha com o tio? Então, embora ela respondesse prontamente, um mal-estar surgia entre eles. Ele suspeitou, a princípio, de que ela não pertencesse a um nível social tão alto quanto pretendia; ou que tivesse vergonha das maneiras selvagens de seu povo, pois ele ouvia dizer que as mulheres em Moscou usavam barbas e os homens se cobriam com peles da cintura para baixo; que ambos os sexos se untavam com sebo para se proteger do frio, rasgavam carne com os dedos e viviam em cabanas onde um nobre inglês teria escrúpulo de abrigar o seu gado; então desistiu de pressioná-la. Mas, refletindo, concluiu que esta não poderia ser a razão de seu silêncio; ela mesma era inteiramente desprovida de pelos no queixo; vestia-se de veludo e pérolas, e suas maneiras não eram certamente as de uma mulher criada num estábulo.

O que, então, ela ocultava dele? A dúvida subjacente à tremenda força de seus sentimentos era como areia movediça sob um monumento que de repente desliza e faz tremer toda a construção. Subitamente a angústia se apoderava dele. Então se exaltava com tanta ira que ela não sabia como acalmá-lo. Talvez não quisesse acalmá-lo; talvez suas raivas a agradassem, e ela o provocava de propósito — tal é a curiosa sinuosidade do temperamento moscovita.

Para continuar a história — patinando mais longe do que o de costume, naquele dia alcançaram a parte do rio onde os navios tinham ancorado e estavam congelados no meio da corrente. Entre eles estava o navio da embaixada moscovita, com sua águia negra de duas cabeças flutuando no mastro principal, suspensa por coloridos pingentes de neve, de muitas jardas de comprimento. Sasha deixara algumas de suas roupas a bordo, e, supondo que o navio estivesse vazio, eles subiram ao convés e foram buscá-las. Recordando certas passagens de seu próprio passado, Orlando não teria se admirado que alguns bons cidadãos tivessem procurado este refúgio antes deles, e assim aconteceu, na verdade. Não tinham ido longe quando um belo jovem levantou-se de alguma ocupação com que se entretinha atrás de um rolo de cordas e, dizendo, aparentemente, pois ele falava russo, que era um dos membros da tripulação, e que ajudaria a princesa a encontrar o que ela queria, acendeu um coto de vela e desapareceu com ela na parte inferior do navio.

O tempo passava, e Orlando, envolto em seus próprios sonhos, pensava apenas nos prazeres da vida; em sua joia; em sua raridade; nos meios de torná-la sua, irrevogável e indissoluvelmente. Havia obstáculos e dificuldades a superar. Ela estava decidida a viver na Rússia, onde havia rios gelados e cavalos selvagens e homens, dizia, que se degolavam uns aos outros. É verdade que a paisagem de pinheiros e neve, hábitos de luxúria e carnificina não o seduziam. Nem estava ansioso em deixar os seus agradáveis hábitos rurais de esportes e plantio de árvores; em renunciar ao seu cargo, abandonar sua carreira; em atirar em renas em vez de em lebres; em beber vodca em vez de vinho, e carregar uma faca na manga — não sabia para quê. No entanto, tudo isso e muito mais ele faria por ela. Quanto ao seu casamento com Lady Margaret, embora marcado para daí a uma semana, parecia-lhe tão absurdo que nem pensava nisso. Os parentes dela o censurariam por ter abandonado uma grande dama; os amigos dele zombariam por arruinar a mais bela carreira do mundo por uma mulher cossaca e um deserto de neve — isto não pesava uma palha, comparado a Sasha. Na primeira noite escura eles fugiriam. Tomariam um navio para a Rússia. Assim pensava, assim tramava, andando de um lado para outro no convés.

Virando-se para oeste, foi chamado à realidade pela visão do sol, suspenso como uma laranja na cruz da catedral de São Paulo. Estava cor de sangue e descia rapidamente. Devia ser quase noite. Sasha tinha ido há mais de uma hora. Apanhado instantaneamente por aqueles sentimentos obscuros que sombreavam mesmo os seus pensamentos mais confiantes a respeito dela, desceu pelo caminho que os vira tomar para o porão do navio; e, depois de tropeçar na escuridão entre caixas e barris, vislumbrou, num canto, que eles estavam sentados ali. Por um segundo teve a visão dos dois; Sasha estava sentada nos joelhos do marinheiro; viu-a curvar-se para ele; viu-os abraçarem-se antes que a luz desaparecesse numa nuvem vermelha de sua ira. Lançou um tal uivo de angústia que ecoou pelo navio inteiro. Sasha atirou-se entre os dois, senão o marinheiro teria sido eliminado antes que pudesse apanhar o seu sabre. Então um terrível mal-estar se apoderou de Orlando, eles tiveram que deitá-lo no chão e dar-lhe aguardente para reanimá-lo. E então, quando se recuperou, sentou-se sobre um monte de sarapilheira, Sasha inclinou-se para ele, passando diante de seus olhos tontos, suavemente, sinuosamente, como uma raposa que o tivesse mordido, ora bajulando, ora ameaçando, de modo que ele chegou a duvidar do que tinha visto. A vela não teria derretido, as sombras não teriam se movido? A caixa era pesada, ela disse; o homem estava ajudando-a a carregá-la. Orlando acreditou nela por um momento — pois, como ter certeza que a sua raiva não pintara aquilo que ele mais temia encontrar? — porém logo ficou mais violentamente indignado com a sua falsidade. Então Sasha empalideceu; bateu o pé no convés; disse que partiria naquela noite e invocou seus Deuses para que a destruíssem se ela, uma Romanovitch, tivesse estado nos braços de um simples marinheiro. Na verdade, vendo-os juntos (o que ele dificilmente se animava a fazer), Orlando se envergonhava pela infâmia de sua imaginação, capaz de pintar uma criatura tão frágil nas patas daquele peludo monstro do mar. O homem era enorme; tinha mais de seis pés de altura; usava argolas de arame nas orelhas; parecia um cavalo de carga sobre o qual uma carriça ou um tordo tivesse pousado. Então ele se rendeu; acreditou nela e pediu-lhe perdão. Mas, ao descerem do navio, novamente enamorados, Sasha parou com a mão na escada e lançou ao monstro queimado de cara larga uma série de cumprimentos, gracejos ou carinhos em russo, dos quais Orlando não compreendeu uma palavra. Mas havia algo em seu tom (podia ser o problema das consoantes russas) que lembrava a Orlando uma cena, noites atrás, quando encontrara com ela, num canto, roendo em segredo um toco de vela que apanhara no chão. É certo que era róseo; que era dourado; que era da mesa do rei; mas era de sebo, e ela o roía. Não havia nela, pensava, conduzindo-a para o gelo, alguma coisa grosseira, alguma coisa de sabor áspero, alguma coisa de camponesa? E ele a imaginava aos quarenta anos, pesadona — embora agora fosse esbelta como um junco — e entorpecida — embora agora fosse alegre como uma cotovia. Mas novamente, quando patinavam em direção a Londres, tais suspeitas se dissolveram em seu peito, e ele sentiu como se tivesse sido fisgado pelo nariz por um grande peixe e impelido a contragosto pelas águas, embora com o seu próprio consentimento.

Era uma tarde de espantosa beleza. Com o pôr do sol, todas as cúpulas, agulhas, torreões e pináculos de Londres se erguiam num negrume de tinta contra as furiosas nuvens vermelhas do poente. Aqui era a cruz ornada de Charing; ali, a cúpula da catedral de São Paulo; lá, o bloco compacto dos edifícios da Torre; adiante, como um grupo de árvores despojadas de todas as folhas — exceto um tufo na extremidade —, estavam as cabeças nas varas em Temple Bar. Agora, as janelas da Abadia estavam acesas e brilhavam como um celestial escudo multicolorido (na imaginação de Orlando); agora, todo o poente parecia uma janela dourada com tropas de anjos (ainda na imaginação de Orlando) subindo e descendo continuamente as escadarias do céu. O tempo todo eles pareciam patinar nas impenetráveis profundezas do ar, de tão azul que o gelo se tornara; e tão transparentemente liso que eles deslizavam cada vez mais rápido para a cidade, cercados por gaivotas brancas que cortavam no ar, com as asas, os mesmos círculos que eles cortavam no gelo com os patins.

Sasha, como que para tranquilizá-lo, estava mais terna do que de costume e ainda mais encantadora. Raramente tinha querido conversar a respeito de seu passado, mas agora lhe contava como no inverno, na Rússia, escutava os lobos uivando pelas estepes, e, para demonstrar-lhe, uivou como um lobo três vezes. Ele, então, falou dos veados na neve, em sua casa, de como vagavam pelo grande vestíbulo em busca de calor e eram alimentados por um velho que lhes dava mingau de um balde. E então ela o elogiou; por seu amor pelos animais; por sua galanteria; por suas pernas. Encantado com os elogios e envergonhado de pensar como tinha maliciado imaginando-a no colo de um marinheiro vulgar, e gorda e entorpecida aos quarenta anos, ele disse que não encontrava palavras para elogiá-la; mas logo considerou que ela era como a primeira e a grama verde e as águas correntes e, apertando-a mais fortemente do que nunca, rodopiou com ela pelo rio, de forma que as gaivotas e os corvos-marinhos rodopiaram também. E parando afinal, sem fôlego, ela disse, levemente ofegante, que ele era como uma árvore de Natal com um milhão de velas (como as que há na Rússia), com bolas amarelas penduradas; incandescente; suficiente para iluminar uma rua inteira (assim se poderia traduzir); pois, com suas faces brilhantes, seus cachos escuros, sua capa preta e carmesim, ele parecia como se estivesse ardendo com seu próprio esplendor, vindo de uma lâmpada acesa dentro de si.






continua pag 28...

__________________


Virginia Woolf, escritora inglesa, nasceu em 1882, no seio de uma família da alta sociedade londrina. Após a morte de seus pais, ela e os irmãos se mudaram para uma casa no bairro de Bloomsbury, onde realizavam encontros com personalidades e poetas da época, como como T. S. Elliot e Clive Bell. Virginia começou a escrever em 1905, inicialmente para jornais. Dez anos depois, ela lançou seu primeiro livro “A Viagem”.

No período entre a 1ª e 2ª Guerra Mundial, Virginia Woolf se tornou uma figura conhecida na sociedade inglesa. Em 1941, ela cometeu suicídio se jogando no rio Ouse, perto da residência onde morava com seu marido, o crítico literário Leonardo Woolf, em Sussex. Mas, a obra de Virginia se imortalizou. Usando com excelência a técnica do fluxo de consciência, a escritora criou livros inovadores, que lhe fizeram ser conhecida como a maior romancista lírica do idioma inglês.

A Universidade de Adelaide, uma das instituições de ensino mais antigas da Austrália, disponibilizou online toda a obra de Virginia Woolf para download gratuito. Ao todo, são dez romances e dois livros de contos que podem ser baixados em três formatos: Zip, ePub e Kindle (para dispositivos Amazon). Entre os arquivos, estão algumas das obras mais famosas da escritora inglesa, como “Mrs. Dalloway” (1925), “Rumo ao Farol” (1927), “Os Anos” (1937) e “A Marca na Parede” (1944).

As obras estão em inglês. Para fazer o download, basta clicar sobre o título e escolher a opção “download. Também estão disponíveis ensaios de Virginia Woolf, como “O Leitor Comum” (1925), no qual ela reflete sobre a arte literária com base em obras-primas de outros autores renomados.



___________________________

Leia também:

Virgínia Woolf - Orlando : Apresentação e Prefácio
Virgínia Woolf - Orlando : Capítulo 1
Virgínia Woolf - Orlando : Capítulo 1(b) - Talvez fosse culpa de Orlando... 
Virgínia Woolf - Orlando : Capítulo 1(d) ... Toda a cor, salvo o vermelho


__________________________


[7] Como uma grande vara malfeita.


__________________________




Chato? Difícil? Engraçado? "ORLANDO"






quinta-feira, 28 de maio de 2020

Susan Sontag - Diante da dor dos outros - 1. (3)

Diante da Dor dos Outros





para David







… aux vaincus!
Baudelaire




A sórdida mentora, a Experiência...
Tennyson








1.


continuando...



Por longo tempo algumas pessoas acreditaram que, se o horror pudesse ser apresentado de forma bastante nítida, a maioria das pessoas finalmente apreenderia toda a indignidade e a insanidade da guerra.

Catorze anos antes de Woolf publicar Três guinéus — em 1924, no décimo aniversário da mobilização nacional alemã para a Primeira Guerra Mundial —, Ernst Friedrich, um dos homens que, por razões morais ou religiosas, se recusaram a pegar em armas ou servir nas forças armadas —, publicou o seu Krieg dem Kriege! (Guerra contra guerra!). Trata-se de fotografia como terapia de choque: um álbum com mais de 180 fotos, em sua maioria retiradas dos arquivos militares e médicos da Alemanha, muitas delas consideradas impublicáveis pelos censores do governo, durante a guerra. O livro começa com fotos de soldados de brinquedo, canhões de brinquedo e outras diversões de meninos do mundo inteiro, e se encerra com fotos tiradas em cemitérios militares. Entre os brinquedos e os túmulos, o leitor tem um martirizante roteiro fotográfico de quatro anos de ruína, morticínio e degradação: páginas de igrejas e castelos demolidos e saqueados, aldeias arrasadas, florestas devastadas, navios de passageiros torpedeados, veículos destroçados, homens que — por razões religiosas ou morais — se recusaram a guerrear enforcados, prostitutas seminuas em bordéis militares, soldados agonizantes depois de um ataque de gás venenoso, crianças armênias esqueléticas. Quase todas as imagens de Guerra contra guerra! são difíceis de olhar, em especial as fotos de soldados mortos, pertencentes aos vários exércitos, apodrecendo aos montes em campos e estradas e nas trincheiras da linha de frente. Mas, sem dúvida, as páginas mais insuportáveis desse livro, todo ele concebido para horrorizar e desmoralizar, encontram-se na parte intitulada “A face da guerra”, 24 closes de soldados com imensos ferimentos no rosto. E Friedrich não cometeu o erro de supor que fotos de virar o estômago e de partir o coração simplesmente falariam por si mesmas. Cada foto tem uma legenda pungente em quatro idiomas (alemão, francês, holandês e inglês), e a perversidade da ideologia militarista é recriminada e escarnecida a cada página. Imediatamente denunciada pelo governo, por associações de veteranos e por outras organizações patrióticas — em determinadas cidades, a polícia invadiu as livrarias, e abriram-se processos contra a exibição pública das fotos —, a declaração de guerra de Friedrich contra a guerra foi aclamada pela ala esquerda dos escritores, artistas e intelectuais, bem como pelos membros de numerosas ligas antibelicistas, que predisseram para o livro uma influência decisiva sobre a opinião pública. Em 1930, Guerra contra guerra! havia tido dez edições na Alemanha e fora traduzido para muitas línguas.

Em 1938, ano em que Woolf publicou Três guinéus, o célebre cineasta francês Abel Gance mostrou, em close, alguns exemplos da população de ex-combatentes horrendamente desfigurados e, em geral, mantidos ocultos — les gueules cassées (“os caras quebradas”), como eram chamados em francês — no clímax do seu novo filme J’accuse. (Gance fizera uma versão anterior, primitiva, do seu incomparável filme antibelicista, com o mesmo título consagrado, em 1918-19.) A exemplo da parte final do livro de Friedrich, o filme de Gance termina em um novo cemitério militar, não só para nos lembrar quantos milhões de jovens foram sacrificados ao militarismo e à inépcia entre 1914 e 1918 na guerra acalentada como “a guerra para pôr fim a todas as guerras”, mas também para sugerir a condenação sagrada que aqueles mortos seguramente fariam recair sobre os políticos e os generais da Europa, se soubessem que, vinte anos mais tarde, outra guerra seria iminente. “Morts de Verdun, levez-vous!” (Mortos de Verdun, levantem-se!), grita o veterano ensandecido, protagonista do filme, e repete sua conclamação em alemão e em inglês: “Seu sacrifício foi em vão!”. E a vasta planície mortuária vomita sua multidão, um exército de fantasmas claudicantes, em uniformes esfarrapados, com rostos mutilados, que se erguem de seus túmulos e partem em todas as direções, causando pânico em massa entre a turba já mobilizada para a nova guerra pan-européia. “Encham seus olhos com esse horror! É a única coisa capaz de detê-los!”, grita o louco para a multidão dos vivos em debandada, que o recompensa com uma morte de mártir, após o que ele se integra aos camaradas mortos: um mar de fantasmas impassíveis que faz submergir os futuros combatentes e vítimas de la guerra de demain, que se encolhem de medo. A guerra derrotada pelo apocalipse.

E no ano seguinte veio a guerra.


*Não obstante sua condenação da guerra, Weil procurou participar da defesa da República Espanhola e da luta contra a Alemanha de Hitler. Em 1936, foi para a Espanha como voluntária não-combatente em uma brigada internacional; em 1942 e no início de 1943, viveu em Londres como refugiada e, já doente, trabalhou nos escritórios da França Livre e quis ser enviada em missão à França Ocupada. (Ela morreu num hospital inglês em agosto de 1943.)



continua pág 48...

________________________



Diante da Dor dos Outros




_________________________

Leia também:

Susan Sontag - Na Caverna de Platão (01)
Susan Sontag - Diante da dor dos outros - 1. (1)
Susan Sontag - Diante da dor dos outros - 1. (2)
Susan Sontag - Diante da dor dos outros - 2. (1)




"Quando o mundo estiver unido
na busca do conhecimento, e
não mais lutando por dinheiro e
poder, então nossa sociedade
poderá enfim evoluir a um novo
nível."




___________________________



Diante da dor dos outros

Carta Capital



A contundência da fotografia do fotógrafo sul-africano Kevin Carter, em que a criança faminta é observada por um abutre em um cenário desolado no Sudão, remete diretamente à história da fotografia que, a partir de 1890, reivindica o status de obra de arte.

Indiretamente, porém, ela aponta para as relações entre estética e ética, presentes na reflexão filosófica, desde o final do século XVIII, na qual se sublinhava que a arte poderia provocar uma empatia (simpatia, na época) que estaria na origem dos nossos juízos morais.

Para o filósofo David Hume (1711-1776), a simpatia é a inclinação que todos os homens possuem a participar dos sentimentos dos outros.

Essa tendência a compartilhar sentimentos e inclinações explica, na estética, o prazer produzido pelas obras de arte, e que decorre do fato de que participamos afetivamente daquilo que contemplamos.

A formação do juízo moral se dá, sobretudo, a partir de um recuo contemplativo por meio do qual o espectador considera as causas que determinam a formação do sofrimento do outro.

O espectador, porque está afastado da cena, transporta-se pela imaginação para a posição do agente.
O problema do distanciamento contemplativo ressurge, no século XX, especialmente com a fotografia, quando o sofrimento extremo é exibido por toda parte

Em todo caso, se a fotografia não copia, mas “emana” da realidade, no sentido entendido por Roland Barthes “de que uma foto sempre traz consigo seu referente”, é porque todo ato fotográfico é interpretativo, um enquadramento que exclui algo.

Como definiu Philiphe Dubois, o ato fotográfico é uma nova forma de pensamento, ou seja, um “jogo baseado no princípio de distância e aproximação”.

Se diante de uma pintura, por exemplo, espera-se um olhar estético, contemplativo, diante da fotografia e sua impressão de proximidade e autenticidade, exige-se um olhar ético e uma ação de reparação imediata.

Susan Sontag (1933-2004), em Diante da dor dos outros, pergunta se de fato o horror apresentado de forma tão nítida, ainda teria algum apelo moral.
Desde o fim da I Guerra Mundial (1914-1918) estamos acostumados a ver à distância, por meio da fotografia, a dor de outras pessoas.

Em uma era sobrecarregada de informação, com o crescimento da mídia sensacionalista e sua caçada por imagens dramáticas, o sofrimento humano vira clichê.

Se a câmera Leica com filmes de 35mm podia bater 36 fotos, antes de carregar a câmara, permitindo tirar fotos no calor da batalha, hoje as tecnologias digitais e as transmissões via satélite registram instantaneamente o aqui e agora; enquanto as imagens televisivas, repetidas insistentemente, esvaziam seu efeito.

Em reação ao aumento da produção das imagens, surge o fotojornalismo ético e artístico, cujo fundador é Robert Capa (1913-1945) e, os discípulos, os fotógrafos sul-africanos do Bang Bang Club, como o próprio Kevin Carter, advogando que só tem sentido fotografar o horror se a foto contribuir para acabar com ele.

Para Susan Sontag, enquanto a fotografia funcionar como terapia de choque e conseguir ferir o espectador, evitar-se-á tanto a espetacularização das imagens como a banalização do horror.

Diante da foto feita por Carter, no Sudão, em 1993, surgem questões éticas. Nela, a vida e a morte são sintetizadas na criança famélica, cujo rosto não é exibido, apenas um corpo debilitado que é mirado pelo abutre.

Em primeiro lugar cabe perguntar: a violação do corpo da criança pode servir à causa moral? Não haveria no corpo involuntariamente exposto, um abuso estético?
A foto sugere que ele é vitimado triplamente: pela fome, natureza e pelo olhar fotográfico.

A imagem, nesse sentido, reitera vários lugares comuns, que tomamos como pressupostos: sabemos que é da África, lá a inanição é esperada, parece não ser necessária a autorização para a divulgação da imagem, já que, sabemos, trata-se de um continente no qual tal ocorrido é comum.

Em seguida, deparamo-nos com nosso segundo dilema ético: não há uma urgência dramática na cena? Não deveríamos salvar a criança antes de realizar seu registro fotográfico? O que é mais relevante, ser testemunha do que acontece ou agir imediatamente na direção do bem?

Sabemos que a criança sobreviveu à fome e ao abutre, no entanto, como diz Jean Galard, “fotografar é, em essência, um ato de não intervenção”.


Em defesa do ato fotográfico e artístico, podemos assinalar que não se trata apenas de documentar a calamidade infantil, mas de associá-la aos temas das guerras e às fomes que delas decorrem.
O sofrimento não é fruto do acaso, do destino, mas da má atuação dos homens.

Se as imagens são expostas em um lugar no qual circulam como mercadorias, a atenção despertada é ligeira e distraída, provocando apenas uma comoção transitória.

Quando contemplada reflexivamente em silêncio, uma foto de horror sugere um contexto, que põe em perigo o espectador, desestabilizando-o e levando-o a exigir ação imediata para impedir que o horror anunciado continue.

Por fim, recordar imagens que apresentam, em um instante conciso, a complexidade do mundo é um ato ético, pois por meio dele é possível a constituição de uma memória do nosso sofrimento.

Entender a fotografia como memória significa, para Galard, legitimar a decisão de “fixar um instante que se sente que deve ser retido a qualquer preço”, para que não se perca no esquecimento. Nos termos de M. Ignatieff, “dar certa beleza ao horror para que se torne inesquecível”.


*Arlenice Almeida da Silva é doutora em Filosofia pela USP e professora da Unifesp