terça-feira, 4 de agosto de 2020

Lima Barreto - 19. Lourenço, o Magnífico (1)

Lima Barreto

O Homem que sabia Javanês e outros contos





Lourenço, o Magnífico



1



QUEM CONHECEU, antes de 1914, o corretor Lourenço Caruru, hoje não o conhecerá mais. 

Lembram-se todos que ele ia ali, ao Colombo, todas as tardes, tomar um ou dois cock-tails; e, se lhe apareciam amigos, logo raspava-se para não pagar mais. Tinha horror aos filantes; hoje, ele os procura, mas aos de alta escola que aprendem com os modestos pilhérias e ditos.

Lourenço Caruru, só no ano de 1917, ganhou líquido oitocentos contos.

Nos seus belos tempos dos dois cock-tails por tarde de Colombo, Caruru era um homem morigerado que, das “francesas”, só queria o cheiro; e, se por acaso, uma delas lhe sentava à mesa, logo punha-se a tremer com medo que a cara-metade lhe aparecesse.

Era homem da família.

Depois dos dois cock-tails saía a bongar frutas, bonbons e quejandos, para levar para os filhos e netos.

Ganhando tanto dinheiro no curto espaço de um ano, Lourenço ficou estonteado e julgou-se um príncipe magnífico.

A primeira coisa que arranjou foi uma princesa – coisa que não lhe foi difícil nos mercados do Flamengo e do Catete.

Correu a um estufador e disse-lhe:

– Preciso mobiliar um appartement com gosto. É para uma senhora estrangeira de fino trato.

Essa “senhora estrangeira de fino trato” começara modestamente como caixeira de botequim em Estrasburgo, passara-se para Paris com a profissão e tudo; e, daí, tentara fazer a “América do Sul”, no que foi muito feliz, como se está vendo.

O tapeceiro, depois de ouvir o homenzinho e pedir-lhe mais detalhes, disse-lhe o custo do appartement.

– Vinte contos.

O homenzinho indignou-se:

– Mas, então, o senhor pensa que eu sou um “pronto” por aí?! Que eu sou algum funcionário público?!

– Meu caro senhor, disse-lhe o negociante, eu fiz o orçamento médio. Havia nele todo o mobiliário para os quartos de dormir, boudoir, sala de visitas, etc., etc. Mas, se o senhor quer coisa melhor...

– Por certo! exclamou o corretor.

– Vou, então, organizar coisa mais requintada.

– Faça e mande a conta. A senhora virá examinar e combinar com o senhor tudo.

Dito e feito: o tapeceiro fez a mesma coisa ou pouco mais do que aquilo que ia custar-lhe vinte contos, cobrou-lhe cem, de acordo com a “madama”, que levou vinte por cento na transação.

Mas, Lourenço não estava satisfeito. Queria passar como homem de gosto junto da “madama”. Queria quadros, estátuas... arte!

De vista, ele conhecia vários rapazes pintores; mas, por conhecê-los, não os julgava capazes de fazerem qualquer trabalho de préstimo.

“Então, aquele tipo que vive na porta da ‘Galeria’ pode fazer alguma coisa que preste? Qual !”

Nesse meio tempo, desembarca um afamado pintor egípcio, Sádi Ben Álfari, cujos méritos os jornais gabam com os mais ternos adjetivos. Lourenço, que, naquele ano de 1918, ganhara num negócio de cereais e praça de navios, cerca de mil contos, compra-lhe a carregação toda de quadros, ainda encaixotados na alfândega.

O tal pintor da terra dos faraós musca-se logo; e, quando Lourenço manda desencaixotar os quadros, fica admirado de só encontrar neles, apesar de ser quase uma centena, a reprodução das pirâmides e da ilha de File, à tarde, ao meio-dia e pela manhã.

“Madama” que não tinha levado nada na transação, passa-lhe uma grande descompostura e refuga-lhe os quadros. Lourenço os distribui com os amigos, parentes e, até, leva alguns para a casa da família.

Meses depois, os jornais anunciam que o Sr. Ramkjolk, de Estocolmo, ia expor uma grande coleção de mármores artísticos, dos mais célebres escultores da Suécia, no armazém de uma casa da Avenida Central.

O magnífico Lourenço lê a notícia e a “madama” também.

Dias depois, resolvem ir ver os mármores suecos que fizeram o ingente sacrifício de atravessar tantos mares bravios, para nos edificar esteticamente; e os dois vão até eles, não só para receberem um frisson de arte superior, pois os nervos de Lourenço não suportavam outro, como também para adquirirem alguns.

Essa última parte foi logo alvitrada por “madama” que, a sós, já tinha examinado a exposição.

No automóvel de príncipes, vão arrulhando, ele e “madama”. Chegam, “madama” quer este, Lourenço quer aquele; e ambos querem aqueloutro.

Resultado: gastam duzentos contos em estátuas.

Lourenço, o Magnífico, sai radiante com a revelação inesperada da sua cultura artística; mas, subitamente, ao transpor a porta de saída, lembra-se de alguma coisa e volta-se de repente, para reentrar.

“Madama” assusta-se.

– Que é Lourenço?

– É preciso pôr o meu cartão em cada um daqueles “calungas”.




continua página 34...
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Afonso Henriques de Lima Barreto nasceu no Rio de Janeiro em 1881, sete anos antes da assinatura da Lei Áurea. Trabalhando como jornalista, valeu-se de uma linguagem objetiva e informal, mais tarde valorizada por seus contemporâneos e pelos modernistas, para relatar o cotidiano dos bairros pobres do Rio de Janeiro como poucos…

Definida pelo próprio autor como “militante”, sua produção literária está quase inteiramente voltada para a investigação das desigualdades sociais. Em muitas obras, como no seu célebre romance Triste Fim de Policarpo Quaresma e no conto O Homem que Sabia Javanês, o método escolhido por Lima Barreto para tratar desse tema é o da sátira, cheia de ironia, humor e sarcasmo.

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O homem que sabia Javanês e outros contos, de Lima Barreto 

Fonte: 
BARRETO, Lima. O homem que sabia javanês e outros contos. Curitiba: Polo Editorial do Paraná, 1997.
Texto proveniente de: 
A Biblioteca Virtual do Estudante Brasileiro A Escola do Futuro da Universidade de São Paulo Permitido o uso apenas para fins educacionais.
Texto-base digitalizado por: 
Rodrigo Souza, Curitiba - PR 

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