segunda-feira, 10 de agosto de 2020

Úrsula - II O delírio (1)

Maria Firmina dos Reis





II - O delírio 




Violenta, terrível, espantosa tinha sido a crise, e Túlio velava à cabeceira do enfermo. A noite há muito que tinha desdobrado sobre a terra seu pesado manto de escuridão, animando destarte o profundo silêncio dos bosques, apenas interrompido pelo roçar do vento nos longínquos palmares, ou pelo gemido triste de sentido noitibó, ou os agoureiros pios do acauã. 

O quarto do doente era apenas aclarado por fraca luz, cuja baça claridade deixava contudo ver-se o rosto do mancebo, afogueado pelo requeimar da febre: os olhos tinha-nos ele dilatados, e com esse brilho e movimento que só dão a febre. No entanto estava tranquilo, e um só gemido não se lhe ouvia.

Após um breve instante desse fictício sossego, entrou a tremer-lhe o lábio superior, ergueu as mãos ambas para o céu, e volvendo-se no leito murmurou com voz queixosa frases que não foram compreendidas.

— Eu a vi! – exclamou, erguendo a voz, num transporte de satisfação – Vi-a, era bela como a rosa a desabrochar, e em sua pureza semelhava-se a açucena cândida e vaporosa! E eu amei-a!... Maldição!... Não... nunca a amei... E calou-se.

Depois um gemido lhe veio do coração; cobriu os olhos com as mãos ambas, e repetiu:

— Oh! Não, nunca a amei!...

Seguiram-se palavras entrecortadas, gemidos e gesticulações desordenadas para ao depois cair em inércia.

Era o delírio assustador que se manifestava!...

Túlio observava-o com angústia: as dores do mancebo sentia-as ele no coração.

A lua ia já alta na azulada abóbada, prateando o cume das árvores, e a superfície da terra e, apesar disso, Úrsula, a mimosa filha de Luísa B., a flor daquelas solidões, não adormecera um instante. É que agora esse anjo de sublime doçura repartia com seu hóspede os diuturnos cuidados que dava a sua mãe enferma; e assim, duplicadas as suas ocupações, sentia fugir-lhe nessa noite o sono.

Bela como o primeiro raio de esperança, transpunha ela a essa hora mágica da noite o lumiar da porta, em cuja câmara debatia-se entre dores e violenta febre o pobre enfermo.

Era ela tão caridosa... Tão bela... E tanta compaixão lhe inspirava o sofrimento alheio, que lágrimas de tristeza e de sincero pesar se lhe escaparam dos olhos, negros, formosos, e melancólicos. Úrsula, com a timidez da corsa, vinha desempenhar à cabeceira desse leito de dores os cuidados que exigia o penoso estado do desconhecido.

Nenhuma exageração havia nesse piedoso desempenho; porque Úrsula era ingênua e singela em todas as suas ações; e porque esse interesse todo caridoso, o mancebo não podia avaliá-lo, tendo as faculdades transtornadas pela moléstia. Este sentimento era pois natural em seu coração, e a donzela não se envergonhava de o patentear.

— Túlio, – disse ao entrar – como vai ele? Toda a resposta do escravo foi um suspiro de profundo desânimo.

Úrsula chegou-se ao leito do enfermo, e com timidez, que a sua compaixão quase destruía, tocou-lhe as mãos. As suas gelaram de desalento e de comoção, porque sentiu as do doente ardentes como a lava de um vulcão.

Então, ao contato dessas débeis mãos que tocaram a sua, o cavaleiro abriu os olhos, a que um delírio febril dava estranha expressão, e fitando a donzela, num transporte indefinível do mais íntimo sofrer, exclamou com voz magoada e grave:

— Oh! Pelo céu! Anjo ou mulher! Porque trocaste em absinto a doçura do meu amor? Amor!... Amei-te eu? Sim, e muito. Mas tu nunca o compreendeste! Louco! Louco que eu fui!... E passando da dor à desesperação, torcia os braços gritando:

— Eu te vi, mulher infame e desdenhosa, fria e impassível como a estátua! Inexorável como o inferno!... Assassina!... Oh! Eu te amaldiçoo... e ao dia primeiro do meu amor!... Minha mãe!... Minha pobre mãe!!... – E entrou a soluçar desesperadamente.

Úrsula e Túlio estavam perplexos; estas palavras sem nexo produziam em seus corações sensações, suposto que em ambos doídas, mas diversas em sua natureza.

A Túlio parecia aquele delírio precursor da morte, e a dor da perda de um amigo, o primeiro talvez que o céu lhe dera, absorvia-lhe todas as faculdades, e para tão grande pesar não tinha prantos, não tinha uma só palavra. Úrsula, pelo contrário, sentia estranho desassossego, um quê, que não sabia definir a si própria! Uma inquietação mortal, uma desconfiança, e as lágrimas brotavam-lhe espontâneas do coração.

— Adelaide! – prosseguiu ele após longa pausa – Adelaide!... Este nome queima-me os beiços; enlouqueço quando penso nela.

— Adelaide!... – repetiu consigo mesma a filha de Luísa B. – Oh! Quem serás?!...

O que é a natureza humana! O que é o coração da mulher! A Úrsula, pobre flor do deserto, que importava um nome proferido em delírio?

Essa mulher, essa Adelaide, parecia-lhe que muito interessava ao mancebo, que ainda agora lhe vivia no coração malgrado as palavras amargas, ou entranhadas de desesperação, que lhe caíam dos lábios ao lembrar-se dela. Essa mulher figurava-se-lhe bela como um anjo, sedutora como uma fada, maligna como um demônio, e entretanto amada, muito amada; e o seu nome lhe queimava o coração, como se lá estivesse escrito com letras de fogo.

E há de ele amá-la? – repetia Úrsula a si própria com uma pertinácia, que a teria admirado, se nisso pudesse atentar. Amor! – prosseguia – o que é amor? Creio que jamais amarei. Mas Adelaide deve ser muita amada por ele... mas eu o ouvi amaldiçoá-la!... Por que diz que lhe queima os beiços o seu nome? Oh! Não é possível, ele já não a ama! E Úrsula, perdida nestes loucos pensamentos, não atendia ao que em torno de si havia.

O doente tinha adormecido.





continua pág 35...

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Maria Firmina dos Reis nasceu em São Luís, no Maranhão, no dia 11 de outubro de 1825. Filha bastarda de João Pedro Esteves e Leonor Felipe dos Reis. Foi uma escritora brasileira, considerada a primeira romancista brasileira.

Em 1847, aos 22 anos, ela foi aprovada em um concurso público para a Cadeira de Instrução Primária, sendo assim a primeira professora concursada de seu Estado. Maria demonstrou sua afinidade com a escrita ao publicar “Úrsula” em 1859, primeiro romance abolicionista, primeiro escrito por uma mulher negra brasileira.

O romance “Úrsula” consagrou Maria Firmina como escritora e também foi o primeiro romance da literatura afro-brasileira, entendida esta como produção de autoria afrodescendente. Em 1887, no auge da campanha abolicionista, a escritora publica o livro “A Escrava”, reforçando sua postura antiescravista.

Ao aposentar-se, em 1880, fundou uma escola mista e gratuita. Maria morre aos 92 anos, na cidade de Guimarães, no dia 11 de novembro de 1917.

Em 1975, Maria recebe uma homenagem de José Nascimento Morais Filho que publica a primeira biografia da escritora, Maria Firmina: fragmentos de uma vida.

A importância da obra de Firmina, primeira escritora negra de que se tem notícia em nossa literatura, se deve ao pioneirismo na denúncia da opressão a negros e mulheres no Brasil do século XIX. Antes do Navio negreiro de Castro Alves, declamado pela primeira vez em 1868, Firmina já descrevia em seu livro Úrsula, de 1859, a crueldade do tráfico de pessoas sequestradas na África e transportadas nos porões dos “tumbeiros”. Neste mesmo romance, a crítica da escritora abrange o retrato lamentável da condição feminina da época ao delinear personagens como o pai de Tancredo ou o comendador, tiranos não só de escravos, mas também de mulheres. 

Maria Firmina foi uma voz profundamente legítima e dissonante que não encontrou acolhida e reconhecimento em seu tempo. Longe de fracassar, essa voz ressoa hoje cheia de significado, recriminando males que ainda assombram e permeiam nossa sociedade.

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