quinta-feira, 1 de setembro de 2022

Flusser : Filosofia da Caixa Preta (6 - A Distribuição da Fotografia)

Filosofia da Caixa Preta




VILÉM FLUSSER



Ensaios para uma futura filosofia da fotografia



6 - A Distribuição da Fotografia


As características que distinguem a fotografia das demais imagens técnicas se revelam ao considerarmos como são distribuídas. As fotografias são superfícies imóveis e mudas que esperam, pacientemente, serem distribuídas pelo processo de multiplicação ao infinito. São folhas. Podem passar de mão em mão, não precisam de aparelhos técnicos para serem distribuídas. Podem ser guardadas em gavetas, não exigem memórias sofisticadas para seu armazenamento. No entanto, antes de considerarmos sua característica de folha de papel , refletiremos por pouco que seja, sobre o problema da distribuição de informações.
 
O homem é capaz de produzir informações, transmiti-las e guardá-las. Tal capacidade humana é antinatural, já que a natureza como um todo é sistema que tende, conforme o segundo princípio da termodinâmica, a se desinformar. Há fenômenos, por certo, na natureza (sobretudo os organismos vivos) que são igualmente capazes de produzir informações e de transmiti-las e guardá-las. O homem não é o único epiciclo negativamente entrópico, na linha geral da natureza, rumo à entropia. Mas o homem parece ser o único fenômeno capaz de produzir informações com o propósito deliberado de se opor à entropia. Capaz de transmitir e guardar informações não apenas herdadas, mas adquiridas. Podemos chamar tal capacidade especificamente humana: espírito e seu resultado, cultura.
 
O processo dessa manipulação de informações é a comunicação que consiste de duas fases: na primeira, informações são produzidas; na segunda, informações são distribuídas para serem guardadas. O método da primeira fase é o diálogo, pelo qual informações já guardadas na memória são sintetizadas para resultarem em novas (há também diálogo interno que ocorre em memória isolada).

O método da segunda fase é o discurso, pelo qual informações adquiridas no diálogo são transmitidas a outras memórias, a fim de serem armazenadas.
 
Há quatro estruturas fundamentais de discurso: 
1. os receptores cercam o emissor em forma de semicírculo, como no teatro; 
2. o emissor distribui a informação entre retransmissores, que a purificam de ruídos, para retransmiti-la a receptores, como no exército ou feudalismo; 
3. o emissor distribui a informação entre círculos dialógicos, que a inserem em sínteses de informação nova, como na ciência; 
4. o emissor emite a informação rumo ao espaço vazio, para ser captada por quem nele se encontra, como na rádio. A todo método discursivo, corresponde determinada situação cultural: o primeiro método exige situação “responsável”; o segundo , “autoritária”; o terceiro, “progressista”; o quarto, “massificada”. A distribuição das fotografias se dá pelo quarto método discursivo.
 
Fotografias podem ser manipuladas dialogicamente. Por exemplo: é possível desenhar-se em cartazes fotográficos bigodes ou outros símbolos obscenos, criando, assim, informação nova. Mas o aparelho fotográfico é programado para distribuição discursiva rumo ao espaço vazio, como o fazem a televisão e o rádio. Todas as imagens técnicas são assim programadas, salvo o vídeo, que permite interação dialógica.
 
Mas o que distingue as fotografias das demais imagens técnicas é que são folhas. E por isso se assemelham a folhetos. Filmes, para serem distribuídos, necessitam de aparelhos projetores; fitas de vídeo, de aparelhos televisores. Fotografias nada precisam.

É verdade que existem dispositivos, e que recentemente foram inventadas fotografias eletrônicas, que exigem distribuição por aparelhos. Porém, o que conta em fotografias é a possibilidade de serem distribuídas arcaicamente. 

Por serem relativamente arcaicas, as fotografias relembram um passado pré-industrial, o das pinturas imóveis e caladas, como em paredes de caverna, vitrais, telas. Ao contrário do cinema, as fotografias não se movem, nem falam. Seu arcaísmo provém da subordinação a um suporte material: papel ou coisa parecida. Mas essa “objetividade” residual engana. Um quadro tradicional é um original: único e não multiplicável. Para distribuir quadros, é preciso transportá-los de proprietário a proprietário. Quadros devem ser apropriados para serem distribuídos: comprados, roubados, ofertados. São objetos que têm valor enquanto objetos. Prova disto é que os quadros atestam seu produtor: traços do pincel por exemplo. A fotografia, por sua vez, é multiplicável. Distribuí-la é multiplicá-la. O aparelho produz protótipos cujo destino é serem estereotipados. O termo “original” perdeu sentido, por mais que certos fotógrafos se esforcem para transportá-lo da situação artesanal à situação pós-industrial, onde as fotografias funcionam. Ademais, não são tão arcaicas quanto parecem.
 
A fotografia enquanto objeto tem valor desprezível. Não tem muito sentido querer possuí-la. Seu valor está na informação que transmite. Com efeito, a fotografia é o primeiro objeto pós-industrial: o valor se transferiu do objeto para a informação. Pósindústria é precisamente isso: desejar informação e não mais objetos. Não mais possuir e distribuir propriedades (capitalismo ou socialismo). Trata-se de dispor de informações (sociedade informática). Não mais um par de sapato, mais um móvel, porém, mais uma viagem, mais uma escola. Eis a meta. Transformação de valores, tornada palpável nas fotografias.
 
Certamente objetos carregam informações, e é o que lhes confere valores. Sapato e móvel são informações armazenadas. Mas em tais objetos, a informação está impregnada, não pode se descolar, apenas ser gasta. Na fotografia, a informação está na superfície e pode ser reproduzida em outras superfícies, tão pouco valorosas quanto as primeiras. A distribuição da fotografia ilustra, pois, a decadência do conceito propriedade. Não mais quem possui tem poder, mas sim quem programa informações e as distribui. Neo-imperialismo. Se determinado cartaz rasgar com o vento, nem por isso o poder da agência publicitária, programadora do cartaz, ficará diminuído. O cartaz nada vale e não tem sentido querer possuí-lo. Pode ser substituído por outro. A comparação da fotografia com quadros impõe repensar valores econômicos, políticos, éticos, estéticos e epistemológicos do passado.
 
A decadência do objeto e a emergência da informação evidenciam-se melhor em fotografias que nas demais imagens técnicas que nos cercam. O receptor de filme ou de programa de TV não segura nada em sua mão, mas o receptor da fotografia ainda tem um objeto entre os dedos, e o despreza. Vivencia concretamente o quanto ficaram desprezíveis os objetos. Ao segurar a fotografia entre os dedos, o receptor se engaja contra o objeto e em favor e em favor da informação, símbolo da superfície da fotografia. Exatamente como faz o receptor de folheto. Após decifrada a mensagem simbólica, a folha pode ser descartada. No entanto, o paralelismo entre fotografia e folheto não deve ser exagerado. Ambos são objetos desprezíveis, por certo. Mas a intenção da fotografia é oposta à do folheto: transcodifica a mensagem linear do folheto em imagem. Quer magicizá-la. A fotografia é anti-folheto. Para prová-lo, basta considerar como fotografias são distribuídas.

Embora não necessitem de aparelhos técnicos para sua distribuição, as fotografias provocaram a construção de aparelhos de distribuição gigantescos e sofisticados. Aparelhos que se colam sobre o buraco output do aparelho fotográfico, a fim de sugarem as fotografias por ele cuspidas, multiplicá-las e derramá-las sobre a sociedade, por milhares de canais. O aparelho de distribuição passa a fazer parte integrante do aparelho fotográfico, e o fotógrafo age em função dele. Tais aparelhos, assim como os demais, são programados para programar os seus receptores em prol de um comportamento propício ao seu funcionamento, cada vez mais aperfeiçoado. Sua distinção dos demais aparelhos é o fato de dividirem as fotografias em vários braços, antes de distribuí-las. Tal divisão distribuidora caracteriza as fotografias.
 
Todas as informações podem ser subdivididas em classes. Por exemplo, informações indicativas (“A é A”); imperativas (“ A deve ser A”); optativas (“que A seja A”). O ideal clássico dos indicativos é a verdade; dos imperativos, a bondade; dos optativos, a beleza. Na realidade, porém, a classificação é insustentável. Todo indicativo científico tem aspectos políticos e estéticos; todo imperativo político tem aspectos científicos e estéticos; todo gesto optativo (obra de arte) tem aspectos científicos e políticos. De maneira que toda classificação de informações é mera teoria.
 
Os aparelhos distribuidores de fotografias transformam-nas em práxis. Há canais para fotografias indicativas, por exemplo, livros científicos e jornais diários. Há canais para fotografias imperativas, por exemplo, cartazes de propaganda comercial e política. E há canais para fotografias artísticas, por exemplo, revistas, exposições e museus. No entanto, tais canais dispõem de dispositivos que permitem a determinadas fotografias deslizarem de um canal a outro. Fotografias do homem na lua podem transitar entre revista de astronomia e parede de consulado americano, daí para exposição artística, e daí para álbum de ginasiano. A cada vez que troca de canal, a fotografia muda de significado: de científica passa a ser política, artística, privativa. A divisão das fotografias em canais de distribuição não é operação meramente mecânica: trata-se de operação de transcodificação. Algo a ser levado em consideração por toda crítica de fotografia. 

O fotógrafo colabora nessa transcodificação da fotografia pelos aparelhos de distribuição, e o faz de maneira sui generis. Ao fotografar, visa determinado canal para distribuir sua fotografia. Fotografa em função de determinada publicação científica, determinado jornal, determinada exposição, ou simplesmente em função de seu álbum. Do ponto de vista do fotógrafo, duas razões o movem: primeira, o canal lhe permitirá alcançar grande número de receptores, pois seu engajamento é precisamente eternizar-se num máximo de pessoas; segunda, o canal vai sustentá-lo economicamente, pois a fotografia, enquanto objeto desprezível, não tem valor de troca. Em suma: o canal é para o fotógrafo um método para torná-lo imortal e não morrer de fome (quanto ao álbum, por ser canal sui generis, aparentemente “privado”, será discutido no capítulo seguinte).
 
No canal, a intenção do fotógrafo e do aparelho se co-implicam pela mesma involução já discutida: o fotógrafo fotografa em função de um jornal determinado, porque este lhe permite alcançar centenas de milhares de receptores e porque o paga. O fotógrafo crê estar utilizando o jornal como médium, enquanto o jornal crê estar utilizando o fotógrafo em função de seu programa. Do ponto de vista do jornal, quando a fotografia recodifica os artigos lineares em imagens, “ilustrando-os”, está permitindo a programação mágica dos compradores do jornal em comportamento adequado. Ao fotografar, o fotógrafo sabe que sua fotografia será aceita pelo jornal somente se esta se enquadrar em seu programa. De maneira que vai procurar driblar tal censura, ao contrabandear na fotografia elementos estéticos, políticos e epistemológicos não previstos no programa. Vai procurar submeter a intenção do jornal à sua. Este, por sua vez, embora possa descobrir tal tentativa astuciosa, pode vir a aceitar a fotografia com o propósito de enriquecer seu programa. Vai procurar recuperar a intenção subversiva. Pois bem, o que vale para jornais, vale para os demais canais de distribuição de fotografias, uma vez que todos revelarão, sob análise crítica, a luta dramática entre a intenção do fotógrafo e a do aparelho distribuidor de fotografias.
 
Tal crítica é rara. Os críticos não reconhecem, via de regra, a função codificadora do canal distribuidor na fotografia criticada. Assumem, como um dado não-criticável, que canais científicos distribuem fotografias científicas; que agências de propaganda distribuem fotografias publicitárias; que galerias de arte distribuem fotografias de arte. Desta maneira, os críticos tornam invisíveis os canais distribuidores de fotografias. Funcionam em função da intenção de tais canais, os quais, precisamente, se querem invisíveis. Para isto os críticos são pagos: eis sua função no interior dos aparelhos. Ao calarem os críticos sobre a luta entre fotógrafo e canal, colaboram com os aparelhos em sua intenção de absorver a intenção do fotógrafo contra o aparelho. Trata-se de “colaboração” no significado pejorativo de trahison des clercs [1], e ilustra a função dos intelectuais em situação onde aparelhos dominam. Ao formularem perguntas do tipo “fotografia é arte?”, ou “o que é fotografia politicamente engajada?”, sem admitirem que tais perguntas vão sendo respondidas automaticamente pelos canais, os críticos contribuem para o ocultamento dos aparelhos programadores.
 
Ao considerarmos a distribuição de fotografias, esbarramos naquilo que as distingue das demais imagens técnicas: são imagens imóveis e mudas do tipo “folha”, e podem ser infinitamente reproduzidas; poderiam ser distribuídas como folhetos, no entanto o são por aparelhos gigantescos que as irradiam por discurso massificante; enquanto objetos, as fotografias não têm valor: este reside na informação que guardam superficialmente; são, portanto, objetos pós-industriais: o interesse se desvia para a informação e não para o objeto que se abandona; antes de serem distribuídas, as fotografias são transcodificadas pelo aparelho de distribuição, a fim de serem subdivididas em canais diferentes; somente dentro do canal, do medium, adquirem seu último significado; nessa transcodificação, cooperam tanto o fotógrafo quanto o aparelho. Este fato é silenciado pela maior parte da crítica, o que torna os aparelhos de distribuição invisíveis para os receptores das fotografias. Graças a tal crítica “funcional”, o receptor da fotografia vai recebê-la de modo não-crítico. E será assim que os aparelhos de distribuição poderão programar o receptor para comportamento mágico que sirva de feed-back para seus aparelhos.


continua pág 30...

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[1] Do livro de Julien Benda, A traição dos clérigos (N. Ed.)

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SOBRE O AUTOR 
na edição brasileira de 1985


Nascido em Praga em 1920, Vilém Flusser iniciou seus estudos de Filosofia na Universidade Carolíngia de Praga, em 1933. Emigrou para Londres em 1940 e para São Paulo em 1941. Seus primeiros ensaios sobre Linguística e Filosofia foram publicados 1957 no “Suplemento Literário” d’O Estado de São Paulo, do qual passou a ser colaborador constante. Em 1962 tornou-se membro do Instituto Brasileiro de Filosofia e professor de Filosofia da Comunicação na Faculdade Armando Álvares Penteado (FAAP), em São Paulo. Tornou-se co-editor da Revista Brasileira de Filosofia em 1964 tendo sido nomeado delegado especial do Ministério das Relações Exteriores para cooperação cultural com os Estados Unidos e a Europa, em 1966. Entre 1965 e 1970, organizou seminários e conferências no Departamento de Humanidades do Instituto Tecnológico da Aeronáutica (ITA) sobre a Filosofia da Linguagem e abriu espaço em jornal par escrever crônicas diárias sobre filosofia do cotidiano (“Posto Zero”, da Folha de São Paulo). Em 1972, mudou-se para a Itália e, em 1976, para a França, onde reside atualmente, publicando principalmente na Alemanha e França. Publicou os livros: Língua e Realidade (São Paulo, Herder, 1963); A História do Diabo (São Paulo, Martins, 1965); Da Religiosidade (São Paulo, Comissão Estadual de Cultura, 1967); La Force du Quotidien (Paris, Mame, 1972); Le Monde Codifié (Paris, Institut de l’Enviroment, 1972); Naturalmente (São Paulo, Duas Cidades, 1979); Pós – História (São Paulo, Duas Cidades, 1982); Für eine Philosophie der Fotografie (Göttingen, European Photography, 1983); Ins Universum der technischen Bilder (Göttingen, European Photography, 1985).




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Flusser, Vilém, 1920 – 
Filosofia da caixa preta – São Paulo : Hucitec, 1985. - 92 p. 

EDITORA HUCITEC
São Paulo, 1985
Direitos autorais 1983 de Vilém Flusser. Título do original alemão: Für eine Philosophie der Fotografie. Tradução do autor. Direitos de publicação em língua portuguesa reservados pela Editora de Humanismo, Ciência e Tecnologia “Hucitec” Ltda., Rua Comendador Eduardo Saccab, 344 – 04602 – São Paulo, Brasil. Tel.: (011) 61-6319. 
Projeto gráfico: Estúdio Hucitec. 
Capa: Fred Jordan. 
Flusser : Filosofia da Caixa Preta (6 - A Distribuição da Fotografia)

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pequena nota de rodapé...

Ontológico é um adjetivo que define tudo que diz respeito à ontologia, ou seja, que investiga a natureza da realidade e da existência.


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