segunda-feira, 26 de setembro de 2022

Flusser : Filosofia da Caixa Preta (7 - A Recepção da Fotografia)

Filosofia da Caixa Preta




VILÉM FLUSSER



Ensaios para uma futura filosofia da fotografia



7 - A Recepção da Fotografia


De modo geral, todo mundo possui um aparelho fotográfico e fotografa, assim como, praticamente, todo mundo está alfabetizado e produz textos. Quem sabe escrever, sabe ler; logo, quem sabe fotografar sabe decifrar fotografias. Engano. Para captarmos a razão pela qual quem fotografa pode ser analfabeto fotográfico, é preciso considerar a democratização do ato fotográfico. Tal consideração poderá contribuir, de passagem, à nossa compreensão da democracia em seu sentido mais amplo.
Aparelho fotográfico é comprado por quem foi programado para tanto. Aparelhos de publicidade programam tal compra. O aparelho fotográfico assim comprado será de “ultimo modelo”: menor, mais barato, mais automático e eficiente que o anterior. O aparelho deve o aperfeiçoamento constante de modelos ao feed-back dos que fotografam. O aparelho da indústria fotográfica vai assim aprendendo, pelo comportamento dos que fotografam, como programar sempre melhor os aparelhos fotográficos que produzirá. Neste sentido, os compradores de aparelhos fotográficos são funcionários do aparelho da indústria fotográfica.
Uma vez adquirido, o aparelho fotográfico vai se revelar um brinquedo curioso. Embora repouse sobre teorias científicas complexas e sobre técnicas sofisticadas, é muito fácil manipulá-lo. O aparelho propõe jogo estruturalmente complexo, mas funcionalmente simples. Jogo oposto ao xadrez, que é estruturalmente simples, mas funcionalmente complexo: é fácil aprender suas regras, mas difícil jogá-lo bem. Quem possui aparelho fotográfico de “último modelo”, pode fotografar “bem” sem saber o que se passa no interior do aparelho. Caixa preta.
O aparelho é brinquedo sedento por fazer sempre mais fotografias. Exige de seu possuidor (quem por ele está possesso) que aperte constantemente o gatilho. Aparelhoarma. Fotografar pode virar mania, o que evoca uso de drogas. Na curva desse jogo maníaco, pode surgir um ponto a partir do qual o homem-desprovido-de-aparelho se sente cego. Não sabe mais olhar, a não ser através do aparelho. De maneira que não está face ao aparelho (como o artesão frente ao instrumento), nem está rodando em torno do aparelho (como o proletário roda a máquina). Está dentro do aparelho, engolido por sua gula. Passa a ser prolongamento automático do seu gatilho. Fotografa automaticamente.
A mania fotográfica resulta em torrente de fotografias. Uma torrente memória que a fixa. Eterniza a automaticidade inconsciente de quem fotografa. Quem contemplar álbum de fotógrafo amador, estará vendo a memória de um aparelho, não a de um homem. Uma viagem para a Itália, documentada fotograficamente, não registra as vivências, os conhecimentos, os valores do viajante. Registra os lugares onde o aparelho o seduziu para apertar o gatilho. Álbuns são memórias “privadas” apenas no sentido de serem memórias de aparelho. Quanto mais eficientes se tornam os modelos dos aparelhos, tanto melhor atestarão os álbuns, a vitória do aparelho sobre o homem. “Privatividade” no sentido pós-industrial do termo.
Quem escreve precisa dominar as regras da gramática e ortografia. Fotógrafo amador apenas obedece a modos de usar, cada vez mais simples, inscritos ao lado externo do aparelho. Democracia é isto. De maneira que quem fotografa como amador não pode decifrar fotografias. Sua práxis o impede de fazê-lo, pois o fotógrafo amador crê ser o fotografar gesto automático graças ao qual o mundo vai aparecendo. Impõe-se conclusão paradoxal: quanto mais houver gente fotografando, tanto mais difícil se tornará o deciframento de fotografias, já que todos acreditam saber fazê-las.
Mas ainda não é tudo. As fotografias que sobre nós se derramam são recebidas como se fossem trapos desprezíveis. Podemos recortá-las de jornais, rasgá-las, jogá-las. Nossa práxis com a maré fotográfica que nos inunda faz crer que podemos fazer delas e com elas o que bem entendermos. Tal desprezo pela fotografia individual distingue a sua recepção das demais imagens técnicas. Exemplo: ao contemplarmos cena da guerra no Líbano em cinema ou TV, sabemos que nada podemos fazer a não ser contemplá-la. Ao contemplarmos cena idêntica em jornal, podemos recortá-la e guardá-la, ou simplesmente rasgá-la para embrulhar sanduíche. Isso leva a crer que podemos agir ao recebermos a mensagem de tal guerra, que podemos assumir ponto de vista “histórico” face à guerra. Analisemos essa falsa atitude histórica face à fotografia.
A fotografia da guerra no Líbano em jornal mostra uma cena. Exige que nosso olhar a escrutine pelo método já discutido anteriormente. O olhar vai estabelecendo relações específicas entre os elementos da fotografia. Não serão relações históricas de causa e efeito, mas relações mágicas do eterno retorno. Por certo, o artigo que a fotografia ilustra no jornal consiste de conceitos que significam as causas e os efeitos de tal guerra. Porém o artigo é lido em função da fotografia, como que através dela. Não é o artigo que “explica” a fotografia, mas é a fotografia que “ilustra” o artigo. Este só é texto no curioso sentido de ser pré-texto da fotografia. Tal inversão da relação “texto-imagem” caracteriza a pós-indústria, fim de todo historicismo. No curso da História, os textos explicavam as imagens, demitizavam-nas. Doravante, as imagens ilustram os textos, remitizando-os. Os capitéis românticos serviam aos textos bíblicos com o fim de desmagicizá-los. Os artigos de jornal servem ás fotografias para serem remagicizados.
No curso da História, as imagens eram subservientes, podia-se dispensá-las. Atualmente, os textos são subservientes e podem ser dispensados. Os países assim chamados subdesenvolvidos começam a descobrir tal fato. No decorrer da História, o iletrado era um aleijado da cultura dominada por textos. Atualmente, o iletrado participa da cultura dominada por imagens. Lutar contra o analfabetismo vai-se revelando luta quixotesca. Contudo, não são apenas os países subdesenvolvidos que começam a percebê-lo, “Johnny can’t spell” nos Estados Unidos. O analfabetismo fotográfico está levando ao analfabetismo textual.
Não é, pois, historicamente, que agimos face à guerra do Líbano; agimos ritualmente. Recortar a fotografia do jornal ou rasgá-la é agir ritualmente. A fotografia está sendo manipulada como em ritual de magia. No fundo, não somos nós que a manipulamos, é ela que nos manipula. E da seguinte forma: a cena fotográfica da guerra no Líbano consiste de elementos que se relacionam significativamente. No sentido temporal, um elemento precede outro e pode suceder ao precedente. No sentido de superfície, um elemento dá significado a outro e recebe significado de outro. Destarte, a superfície da imagem passa a ser significativa, carregada de valores. Está plena de deuses. Mostra o que é “bom” e o que é “mau”: os tanques são “maus”; as crianças são “boas”; Beirute em chamas é “infernal”, os médicos de uniforme branco são “anjos”. A fotografia é hierofania: o sacro nela transparece. E o que vale para esta fotografia relativa ao Líbano, vale para todas as demais. São, todas elas, imagens de forças inefáveis que giram em torno da imagem, conferindo-lhe sabor indefinível. Imagens de forças ocultas que giram magicamente. Fascinam seu receptor, sem que este saiba dizer o que o fascina.
O receptor pode recorrer ao artigo de jornal que acompanha a fotografia par dar nome ao que está vendo. Mas, ao ler o artigo, está sob a influência do fascínio mágico da fotografia. Não quer explicação sobre o que viu, apenas confirmação. Está farto de explicações de todo tipo. Explicações nada adiantam se comparadas com o que se vê. Não quer saber sobre causas ou efeitos da cena, porque é esta e não o artigo que transmite realidade. E como tal realidade é mágica, a fotografia não a transmite; é ela a própria realidade.
A realidade da guerra no Líbano, a realidade ela mesma está na fotografia. Não pode estar alhures. Se o receptor da fotografia for para o Líbano ver a guerra com seus próprios olhos, estará vendo a mesma cena, já que olha tudo pelas categorias da fotografia. Está programado para ver magicamente. E para que fazer tal viagem, se a fotografia lhe traz a guerra para sua casa? O vetor de significado se inverteu: o símbolo é o real e o significado é o pretexto. O universo dos símbolos (entre os quais, o universo fotográfico é dos mais importantes) é o universo mágico da realidade. Não adianta perguntar o que a fotografia da cena libanesa significa na realidade. Os olhos veem o que ela significa, o resto é metafísica de má qualidade.
E assim a fotografia vai modelando seus receptores. Estes reconhecem nela forças ocultas inefáveis, vivenciam concretamente o efeito de tais forças e agem ritualmente para propiciar tais forças. Exemplo: em fotografia de cartaz mostrando escova de dente, o receptor reconhece o poder da cárie. Sabe que é força nefasta e compra a escova a fim de passá-la ritualmente sobre os dentes, conjurando o perigo (espécie de sacrifício ao “deus Cárie”, ao Destino). Certamente, pode recorrer ao léxico sobre o verbete “cárie”. Isto apenas confirma o mito, não importa o que diz o texto, o leitor comprará a escova. Está programado para tanto. Até com informação “histórica”, agirá magicamente. Óbvio, isto não é descrição de vida em tribo de índio; é descrição de vida de funcionário em situação programada por aparelhos. Índio não dispõe de verbete.
Ambos, índio e funcionário, creem na realidade das imagens. No entanto, a crença do funcionário é de má fé. Naturalmente: o funcionário pensa saber “melhor”, tem o verbete, aprendeu a ler, a Ter “consciência histórica” das causas e efeitos. Sabe que no Líbano não se chocam Bem e Mal, mas que uma cadeia de causas produz uma cadeia de efeitos. Sabe que escova de dentes não é objeto ritual, mas produto da história do Ocidente. Este “saber melhor” deve ser reprimido, quando se trata de agir segundo o programa. Se o funcionário estiver consciente das causas e efeitos do seu funcionamento, jamais funcionará corretamente. Se tivesse consciência histórica, como poderia comprar escovas dente, formar opinião sobre o Líbano ou simplesmente ir ao escritório, arquivar papeladas, participar de reuniões, gozar férias, aposentar-se? A repressão da consciência histórica é indispensável para o funcionamento. As fotografias servem para reprimi-la. No entanto, a consciência crítica pode ainda ser mobilizada. Nela, a magia programada nas fotografias torna-se transparente. A fotografia da cena libanesa em jornal não mais revelará forças ocultas do tipo “judaísmo” ou “terrorismo”, mas mostrará os programas do jornal e do partido político que o programa, assim como o programa do aparelho político que programa o partido. Ficará evidente que “judaísmo” e “terrorismo” etc., constam de tais programas. A fotografia da escova de dente não mais revelará forças ocultas do tipo “cárie”, mas mostrará o programa das agências de publicidade e o programa do governo. Ficará evidente que “cárie” consta de tais programas.
A crítica pode ainda desmagicizar a imagem.
No entanto, algo de verdadeiramente monstruoso pode acontecer no curso do esforço para desmagicizá-la: o crítico está atualmente já programado para uma visão mágica do mundo. O próprio crítico vê forças ocultas em toda parte. Sob tal visão, os próprios aparelhos tornam-se forças ocultas: o jornal, o partido, a agência de publicidade, o parque industrial são deuses a serem exorcizados pela fotografia. Hierofania de segundo grau, onde o jornal vai tomar o lugar do terrorismo desmitificado. Os aparelhos não são mais percebidos enquanto brinquedos automáticos, mas como possuídos de forças inefáveis. A crítica de cultura da Escola de Frankfurt é bom exemplo desse paganismo de segundo grau, exorcismo do exorcismo.
Resumindo; eis como fotografias são recebidas: enquanto objetos, não têm valor, pois todos sabem fazê-las e delas fazem o que bem entendem. Na realidade, são elas que manipulam o receptor para comportamento ritual, em proveito dos aparelhos. Reprimem a sua consciência histórica e desviam a sua faculdade crítica para que a estupidez absurda do funcionamento não seja conscientizada. Assim, as fotografias vão formando círculo mágico em torno da sociedade, o universo das fotografias. Contemplar tal universo visando quebrar o círculo seria emancipar a sociedade do absurdo.



continua pág 34...

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SOBRE O AUTOR 
na edição brasileira de 1985


Nascido em Praga em 1920, Vilém Flusser iniciou seus estudos de Filosofia na Universidade Carolíngia de Praga, em 1933. Emigrou para Londres em 1940 e para São Paulo em 1941. Seus primeiros ensaios sobre Linguística e Filosofia foram publicados 1957 no “Suplemento Literário” d’O Estado de São Paulo, do qual passou a ser colaborador constante. Em 1962 tornou-se membro do Instituto Brasileiro de Filosofia e professor de Filosofia da Comunicação na Faculdade Armando Álvares Penteado (FAAP), em São Paulo. Tornou-se co-editor da Revista Brasileira de Filosofia em 1964 tendo sido nomeado delegado especial do Ministério das Relações Exteriores para cooperação cultural com os Estados Unidos e a Europa, em 1966. Entre 1965 e 1970, organizou seminários e conferências no Departamento de Humanidades do Instituto Tecnológico da Aeronáutica (ITA) sobre a Filosofia da Linguagem e abriu espaço em jornal par escrever crônicas diárias sobre filosofia do cotidiano (“Posto Zero”, da Folha de São Paulo). Em 1972, mudou-se para a Itália e, em 1976, para a França, onde reside atualmente, publicando principalmente na Alemanha e França. Publicou os livros: Língua e Realidade (São Paulo, Herder, 1963); A História do Diabo (São Paulo, Martins, 1965); Da Religiosidade (São Paulo, Comissão Estadual de Cultura, 1967); La Force du Quotidien (Paris, Mame, 1972); Le Monde Codifié (Paris, Institut de l’Enviroment, 1972); Naturalmente (São Paulo, Duas Cidades, 1979); Pós – História (São Paulo, Duas Cidades, 1982); Für eine Philosophie der Fotografie (Göttingen, European Photography, 1983); Ins Universum der technischen Bilder (Göttingen, European Photography, 1985).




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Flusser, Vilém, 1920 – 
Filosofia da caixa preta – São Paulo : Hucitec, 1985. - 92 p. 

EDITORA HUCITEC
São Paulo, 1985
Direitos autorais 1983 de Vilém Flusser. Título do original alemão: Für eine Philosophie der Fotografie. Tradução do autor. Direitos de publicação em língua portuguesa reservados pela Editora de Humanismo, Ciência e Tecnologia “Hucitec” Ltda., Rua Comendador Eduardo Saccab, 344 – 04602 – São Paulo, Brasil. Tel.: (011) 61-6319. 
Projeto gráfico: Estúdio Hucitec. 
Capa: Fred Jordan. 
Flusser : Filosofia da Caixa Preta (7 - A Recepção da Fotografia)
Flusser : Filosofia da Caixa Preta (8 - O Universo Fotográfico)

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pequena nota de rodapé...

Ontológico é um adjetivo que define tudo que diz respeito à ontologia, ou seja, que investiga a natureza da realidade e da existência.

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