quinta-feira, 8 de setembro de 2022

Lima Barreto - O Triste fim de Policarpo Quaresma: 2ª Parte V (b) - O Trovador

 O triste fim de Policarpo Quaresma 



Lima Barreto




A João Luiz Ferreira 
Engenheiro Civil 

Le grand inconvénient de la vie réelle et ce qui la rend insupportable à l’homme supérieur, c’est que, si l’on y transporte les principes de l’idéal, les qualités deviennent des défauts, si bien que fort souvent l’homme accompli y réussit moins bien que celui qui a pour mobiles l’égoïsme ou la routine vulgaire. 

Renan, Marc-Auréle 





SEGUNDA PARTE


V - O Trovador
  

continuando...

Bustamante cria com força na capacidade do General Peixoto, tanto assim que, para apoiá-lo e defender o seu governo, imaginava organizar um batalhão patriótico, de que já tinha o nome “Cruzeiro do Sul” e naturalmente seria o seu comandante, com todas as vantagens do posto de coronel.
Genelício, cuja atividade nada tinha de guerreira, esperava muito da energia e da decisão do governo de Floriano: esperava ser subdiretor e não podia um governo sério, honesto e enérgico, fazer outra cousa, desde que quisesse pôr ordem na sua seção.
Essas secretas esperanças eram mais gerais do que se pode supor. Nós vivemos do governo e a revolta representava uma confusão nos empregos, nas honrarias e nas posições que o Estado espalha. Os suspeitos abririam vagas e as dedicações supririam os títulos e habilitações para ocupá-las; além disso, o governo, precisando de simpatias e homens, tinha que nomear, espalhar, prodigalizar, inventar, criar e distribuir empregos, ordenados, promoções e gratificações. O próprio Doutor Armando Borges, o marido de Olga e sábio sereno e dedicado quando estudante, colocava na revolta a realização de risonhos anelos.
Médico e rico, pela fortuna da mulher, ele não andava satisfeito. A ambição de dinheiro e o desejo de nomeada esporeavam-no. Já era médico do Hospital Sírio, onde ia três vezes por semana e, em meia hora, via trinta e mais doentes. Chegava, o enfermeiro dava-lhe informações, o doutor ia, de cama em cama, perguntando: “Como vai?” “Vou melhor seu doutor”, respondia o sírio com voz gutural. Na seguinte, indagava: “Já está melhor?” E assim passava a visita; chegando ao gabinete receitava: “Doente nº 1, repita a receita; doente 5... quem é?”... “É aquele barbado”... “Ahn!” E receitava.
Mas médico de um hospital particular não dá fama a ninguém: o indispensável é ser do governo, senão ele não passava de um simples prático. Queria ter um cargo oficial, médico, diretor ou mesmo lente da faculdade.
E isso não era difícil, desde que arranjasse boas recomendações pois já tinha certo nome, graças à sua atividade e fertilidade de recursos.
De quando em quando, publicava um folheto. O Cobreiro, Etiologia, Profilaxia e Tratamento ou Contribuição para o Estudo da Sarna no Brasil; e, mandava o folheto, quarenta e sessenta páginas, aos jornais que se ocupavam dele duas ou três vezes por ano; o “operoso Doutor Armando Borges, o ilustre clínico, o proficiente médico dos nossos hospitais”, etc., etc.
Obtinha isso graças à precaução que tomara em estudante de se relacionar com os rapazes da imprensa.
Não contente com isso escrevia artigos, estiradas compilações, em que não havia nada de próprio, mas ricos de citações em francês, inglês e alemão.
O lugar de lente é que o tentava mais; o concurso, porém, metia-lhe medo. Tinha elementos, estava bem relacionado e cotado na congregação, mas aquela história de arguição apavorava-o.
Não havia dia em que não comprasse livros, em francês, inglês e italiano; tomara até um professor de alemão, para entrar na ciência germânica; mas faltava-lhe energia para o estudo prolongado e a sua felicidade pessoal fizera evolar-se a pequena que tivera quando estudante.
A sala da frente do alto porão tinha sido transformada em biblioteca. As paredes estavam forradas de estantes que gemiam ao peso dos grandes tratados. À noite, ele abria as janelas das venezianas, acendia todos os bicos-de-gás e se punha à mesa, todo de branco com um livro aberto sob os olhos. O sono não tardava a vir ao fim da quinta página... Isso era o diabo! Deu em procurar os livros da mulher. Eram romances franceses, Goncourt, Anatole France, Daudet, Maupassant, que o faziam dormir da mesma maneira que os tratados. Ele não compreendia a grandeza daquelas análises, daquelas descrições, o interesse e o valor delas, revelando a todos, à sociedade, a vida, os sentimentos, as dores daqueles personagens, um mundo! O seu pedantismo, a sua falsa ciência e a pobreza de sua instrução geral faziam-no ver naquilo tudo, brinquedos, passatempos, falatórios, tanto mais que ele dormia à leitura de tais livros.
Precisava, porém, iludir-se, a si mesmo e à mulher. De resto, da rua, viam-no e se dessem com ele a dormir sobre os livros?!... Tratou de encomendar algumas novelas de Paulo de Kock em lombadas com títulos trocados e afastou o sono.
A sua clínica, entretanto, prosperava. De comandita com o tutor, chegou a ganhar uns seis contos, tratando de um febrão de uma órfã rica.
Desde muito que a mulher lhe entrava na sua simulação de inteligência, mas aquela manobra indecorosa indignou-a. Que necessidade tinha ele disso? Não era já rico? Não era moço? Não tinha o privilégio de um título universitário? Tal ato pareceu à moça mais vil, mais baixo, que a usura de um judeu, que o aluguel de uma pena...
Não foi desprezo, nojo que ela teve pelo marido; foi um sentimento mais calmo, menos ativo; desinteressou-se dele, destacou-se de sua pessoa. Ela sentiu que tinham cortado todos os laços de afeição, de simpatia, que prendiam ambos, toda a ligação moral, enfim.
Mesmo quando noiva, verificara que aquelas cousas de amor ao estudo, de interesse pela ciência, de ambições de descobertas, nele, eram superficiais, estavam à flor da pele; mas desculpou. Muitas vezes nós nos enganamos sobre as nossas próprias forças e capacidades; sonhamos ser Shakespeare e saímos Mal das Vinhas. Era perdoável, mas charlatão? Era demais!
Passou-lhe um pensamento mau, mas de que valeria essa quase indignidade?... Todos os homens deviam ser iguais; era inútil mudar deste para aquele...
Quando chegou a esta conclusão, sentiu um grande alívio, e a sua fisionomia se iluminou de novo como se já estivesse de todo passada a nuvem que empanava o sol dos seus olhos.
Naquela carreira atropelada para o nome fácil, ele não deu pelas modificações da mulher. Ela dissimulava os seus sentimentos, mais por dignidade e delicadeza, que mesmo por qualquer outro motivo; e a ele faltavam a sagacidade e finura necessárias para descobri-los sob o seu esconderijo. Continuavam a viver como se nada houvesse, mas quanto estavam longe um do outro!...
A revolta veio encontrá-los assim; e o doutor, desde três dias, pois há tanto ela rebentara, meditava a sua ascensão social e monetária.
O sogro suspendera a viagem à Europa, e, naquela manhã, após o almoço, conforme o seu hábito, lia recostado numa cadeira de viagem os jornais do dia. O genro vestia-se e a filha ocupava-se com sua correspondência, escrevendo à cabeceira da mesa de jantar. Ela tinha um gabinete, com todo o luxo, livros, secretária, estantes, mas gostava pela manhã de escrever ali, ao lado do pai. A sala lhe parecia mais clara, a vista para a montanha, feia e esmagadora, dava mais seriedade ao pensamento e a vastidão da sala mais liberdade no escrever.
Ela escrevia e o pai lia; num dado momento ele disse:

- Sabes quem vem aí, minha filha?

- Quem é?

- Teu padrinho. Telegrafou ao Floriano, dizendo que vinha... Está aqui, n’O País.

A moça adivinhou logo o motivo, o modo de agir e reagir de fato sobre as ideias e sentimentos de Quaresma. Quis desaprovar, censurar; sentiu-o, porém, tão coerente com ele mesmo, tão de acordo com a substância da vida que ele mesmo fabricara, que se limitou a sorrir complacente:

- O padrinho...

- Está doido, disse Coleoni, Per la madonna! Pois um homem que está quieto, sossegado, vem meter-se nesta barafunda, neste inferno...

O doutor voltava já inteiramente vestido, com a sobrecasaca fúnebre e a cartola reluzente na mão. Vinha irradiante e o seu rosto redondo reluzia, exceto onde o grande bigode punha sombras. Ainda ouviu as últimas palavras do sogro, pronunciadas com aquele seu português rouco:

- Que há? perguntou ele.

Coleoni explicou e repetiu os comentários que já fizera:

- Mas não há tal, disse o doutor. É o dever de todo o patriota... Que tem a idade? Quarenta e poucos anos, não é lá velho... Pode ainda bater-se pela República...

- Mas não tem interesse nisso, objetou o velho.

- E há de ser só quem tem interesse que se deve bater pela República? interrogou o doutor.

A moça que acabava de ler a carta que tinha escrito, mesmo sem levantar a cabeça, disse:

- Decerto.

- É vem você com as suas teorias, filhinha. O patriotismo não está na barriga...

E sorriu com um falso sorriso que o brilho morto dos seus dentes postiços mais falsificava.

- Mas vocês só falam em patriotismo? E os outros? É monopólio de vocês o patriotismo? fez Olga.

- Decerto. Se eles fossem patriotas não estariam a despejar balas para a cidade, a entorpecer, a desmoralizar a ação da autoridade constituída.

- Deviam continuar a presenciar as prisões, as deportações, os fuzilamentos, toda a série de violências que se vêm cometendo, aqui e no Sul?

- Você, no fundo, é uma revoltosa, disse o doutor, fechando a discussão.

Ela não deixava de ser. A simpatia dos desinteressados, da população inteira era pelos insurgentes. Não só isso sempre acontece em toda a parte, como particularmente, no Brasil, devido a múltiplos fatores, há de ser assim normalmente.
Os governos, com os seus inevitáveis processos de violência e hipocrisias, ficam alheados da simpatia dos que acreditam nele; e demais, esquecidos de sua vital impotência e inutilidade, levam a prometer o que não podem fazer, de forma a criar desesperados, que pedem sempre mudanças e mudanças.
Não era, pois, de admirar que a moça tendesse para os revoltosos; e Coleoni, estrangeiro e conhecendo, graças à sua vida, as nossas autoridades, calasse as suas simpatias num mutismo prudente.

- Não me vá comprometer, hein, Olga?

Ela se tinha levantado para acompanhar o marido. Parou um pouco, deitou-lhe o seu grande olhar luminoso, e com os finos lábios um pouco franzidos:

- Você sabe bem que eu não te comprometo.

O doutor desceu a escada da varanda, atravessou o jardim e ainda do portão disse adeus à mulher, que lhe seguia a saída, debruçada na varanda, conforme o ritual dos bem ou mal casados. Por esse tempo, Coração dos Outros sonhava desligado das contingências terrenas.
Ricardo vivia ainda na sua casa de cômodos dos subúrbios, cuja vista ia de Todos os Santos à Piedade, abrangendo um grande trato de área edificada, um panorama de casas e árvores. Já não se falava mais no seu rival e a sua mágoa tinha assentado.
Por esses dias o triunfo desfilava sem contestação. Toda a cidade o tinha na consideração devida e ele quase se julgava ao termo da sua carreira. Faltava o assentimento de Botafogo, mas estava certo de obter.
Já publicara mais de um volume de canções; e, agora pensava em publicar mais outro.
Há dias vivia em casa, pouco saindo, organizando o seu livro. Passava confinado no seu quarto, almoçando café, que ele mesmo fazia, e pão, indo à tarde jantar a uma tasca próximo à estação. Notara que sempre que chegava, os carroceiros e trabalhadores, que jantavam nas mesas sujas, abaixavam a voz e olhavam-no desconfiados; mas não deu importância...
Apesar de popular no lugar, não encontrara pessoa alguma conhecida durante os três últimos dias; ele mesmo evitava falar e, em sua casa, limitava-se ao “bom-dia” e à “boa-tarde” trocados com os vizinhos.
Gostava de passar assim dias, metido em si mesmo e ouvindo o seu coração. Não lia jornais para não distrair a atenção do seu trabalho. Vivia a pensar nas suas modinhas e no seu livro que havia de ser mais uma vitória para ele e para o violão estremecido.
Naquela tarde estava sentado à mesa, corrigindo um dos seus trabalhos, um dos últimos, aquele que compusera no sítio de Quaresma - “Os lábios de Carola”.
Primeiro, leu toda a produção, cantarolando; voltou a lê-la, agarrou o violão para melhor apanhar o efeito e empacou nestes:

É mais bela que Helena e Margarida,
Quando sorri meneando a ventarola.
Só se encontra a ilusão que adoça a vida
Nos lábios de Carola.

Nisto ouviu um tiro, depois, outro, outro... Que diabo? pensou. Hão de ser salvas a algum navio estrangeiro. Repinicou o violão e continuou a cantar os lábios de Carola, onde encontrava a ilusão que adoça a vida...


continua na página 69...
__________________


Afonso Henriques de Lima Barreto nasceu no Rio de Janeiro em 1881, sete anos antes da assinatura da Lei Áurea. Trabalhando como jornalista, valeu-se de uma linguagem objetiva e informal, mais tarde valorizada por seus contemporâneos e pelos modernistas, para relatar o cotidiano dos bairros pobres do Rio de Janeiro como poucos…

Definida pelo próprio autor como “militante”, sua produção literária está quase inteiramente voltada para a investigação das desigualdades sociais. Em muitas obras, como no seu célebre romance Triste Fim de Policarpo Quaresma e no conto O Homem que Sabia Javanês, o método escolhido por Lima Barreto para tratar desse tema é o da sátira, cheia de ironia, humor e sarcasmo.



_________________



MINISTÉRIO DA CULTURA
Fundação Biblioteca Nacional 
Departamento Nacional do Livro


_________________


Leia também:

O Triste fim de Policarpo Quaresma: 1ª Parte I - A Lição de Violão
O Triste fim de Policarpo Quaresma: 1ª Parte II(a) - Reformas Radicais
O Triste fim de Policarpo Quaresma: 1ª Parte II(b) - Reformas Radicais
O Triste fim de Policarpo Quaresma: 1ª Parte III(a) - Reformas Radicais
O Triste fim de Policarpo Quaresma: 1ª Parte III(b) - Reformas Radicais
O Triste fim de Policarpo Quaresma: 1ª Parte IV(a) - Desastrosas consequências...
O Triste fim de Policarpo Quaresma: 1ª Parte IV(b) - Uma vez ou outra...
O Triste fim de Policarpo Quaresma: 1ª Parte V(a) - O Bibelot
O Triste fim de Policarpo Quaresma: 1ª Parte V(b) - O Bibelot
O Triste fim de Policarpo Quaresma: 2ª Parte I(a) - No "Sossego"
O Triste fim de Policarpo Quaresma: 2ª Parte I(b) - No "Sossego"
O Triste fim de Policarpo Quaresma: 2ª Parte II(a) - Espinhos e Flores
O Triste fim de Policarpo Quaresma: 2ª Parte II(b) - Espinhos e Flores
O Triste fim de Policarpo Quaresma: 2ª Parte III(a) - GoliasO Triste fim de Policarpo Quaresma: 2ª Parte IV(b) - "Peço Energia, Sigo Já"
O Triste fim de Policarpo Quaresma: 2ª Parte V(b) - O Trovador
O Triste fim de Policarpo Quaresma: 3ª Parte I (a) - Patriotas

Nenhum comentário:

Postar um comentário