segunda-feira, 19 de setembro de 2022

Honoré de Balzac - A Comédia Humana / Cenas da Vida Privada: Memórias de duas jovens esposas (38)

Honoré de Balzac - A Comédia Humana / Vol 1

1
Estudos de Costumes 
- Cenas da Vida Privada




Memórias de duas jovens esposas




PRIMEIRA PARTE



XLI – A BARONESA DE MACUMER À CONDESSA DE L’ESTORADE


Paris

Pobre anjo, Macumer e eu te perdoamos tuas ruindades ao saber quanto foste atormentada. Estremeci, sofri ao ler os detalhes dessa dupla tortura, e aqui estou menos pesarosa de não ser mãe. Apresso-me a comunicar-te a nomeação de Luís, o qual pode usar a roseta oficial. Desejavas uma menina; terás uma, provavelmente, minha feliz Renata! O casamento de meu irmão e da srta. de Mortsauf foi celebrado no nosso regresso. Nosso encantador rei, que é realmente de uma bondade admirável, deu a meu irmão a sucessão do cargo de primeiro gentil-homem de Câmara, do qual é titular seu sogro.

— O cargo deve ir acompanhado dos títulos — disse ele ao duque de Lenoncourt- Givry.

Exigiu apenas que o escudo dos Mortsauf fosse colocado ao lado do dos Lenoncourt.
Meu pai tinha cem vezes razão. Sem a minha fortuna nada disso teria acontecido. Meu pai e minha mãe vieram de Madri para o casamento e para lá voltarão, depois da festa que ofereço amanhã aos recém-casados. O carnaval vai ser muito brilhante. O duque e a duquesa de Sória estão em Paris; a presença deles preocupa-me um pouco. Maria Heredia é indiscutivelmente uma das mais belas mulheres da Europa, e não me agrada o modo pelo qual Felipe a olha. Por isso redobro de amor e de ternura.

Ela jamais te haveria amado assim!” é uma frase que tenho o cuidado de não proferir, mas que está gravada em todos os meus olhares, em todos os meus gestos. Deus sabe se sou elegante e coquete. Ontem, a sra. de Maufrigneuse me dizia:

— Minha querida pequena, diante de você, tem-se de arriar pavilhão.

Enfim, distraio tanto Felipe que ele deve achar a cunhada tola como uma vaca espanhola. Terei tanto menos pesar em não fazer um pequeno abencerragem, porque a duquesa vai sem dúvida dar à luz em Paris, vai ficar feia; se for varão, ele se chamará Felipe em homenagem ao banido. Um acaso malicioso fará com que eu seja outra vez madrinha. Adeus, querida. Este ano, irei cedo para Chantepleurs, pois nossa viagem custou quantias exorbitantes; partirei em fins de março, a fim de fazer economias em Nivernais. De resto, Paris me aborrece. Felipe suspira tanto quanto eu pela bela solidão de nosso parque, pelos nossos prados frescos e nosso Loire palhetado por suas areias, que não tem outro rio que se lhe assemelhe. Chantepleurs me parecerá delicioso, depois das pompas e das vaidades da Itália; porque, afinal de contas, a magnificência é tediosa e o olhar de um amante é mais belo do que um capo d’opera, ou que um bel quadro![1] Nós lá te esperaremos; não terei mais ciúme de ti. Poderás sondar à vontade o coração do meu Macumer, nele pescar imperfeições, dali retirar escrúpulos; entrego-te o meu marido com soberba confiança. Depois da cena de Roma, Felipe ama-me mais ainda; disse-me ontem (ele está lendo por cima do meu ombro) que sua cunhada, a Maria de sua mocidade, sua antiga noiva, a princesa Heredia, seu primeiro sonho, era estúpida. Oh! Querida, sou pior do que uma rapariga da ópera, essa injúria causou-me prazer. Fiz notar a Felipe que ela não falava corretamente o francês; ela pronuncia esemple por exemple, sain por cinq, cheu por je; enfim ela é bela, mas não é graciosa, não tem nenhuma vivacidade de espírito. Quando se lhe dirige um cumprimento, ela olha para quem o faz como uma mulher que não estivesse acostumada a recebê-los. Com o caráter que tem, ele teria deixado Maria dois meses depois de casar. O duque de Sória, dom Fernando, está bem talhado para ela; tem generosidade, mas é uma criança mimada, bem se vê. Eu poderia ser maldosa e fazer-te rir; mas limito-me à verdade. Mil carinhos, meu anjo.






XLII – RENATA A LUÍSA


Minha filhinha está com dois meses; minha mãe foi a madrinha, e um velho tio-avô de Luís, o padrinho da pequena que se chama Joana Atenaís.
Logo que possa, partirei para ir vê-los em Chantepleurs, uma vez que uma ama não o assuste. Teu afilhado já diz teu nome, ele o pronuncia Matumer!, pois não sabe dizer o c de outra forma; ficarás louquinha por ele; tem todos os dentes; come carne agora, como um rapaz; corre como um ratinho; eu, porém, cerco-o sempre com olhares inquietos e estou desesperada por não poder conservá-lo continuamente junto a mim durante meu puerpério, o qual exige mais de quarenta dias de quarto, devido às precauções recomendadas pelos médicos. Ai de nós! Minha filha, a gente não se acostuma aos partos! As mesmas dores e as mesmas apreensões. Entretanto (não mostres minha carta a Felipe) eu tenho alguma responsabilidade na fabricação desta meninazinha, que talvez prejudique a teu Armando.
Meu pai achou Felipe emagrecido e minha querida mimosa também magrinha. Entretanto o duque e a duquesa de Sória já se foram, não havendo portanto mais motivo de ciúmes! Estarás a esconder-me algum pesar? Tua carta não era nem tão comprida nem tão afetuosamente pensada quanto as outras. Será somente um capricho da minha caprichosa?
Já é demais, minha enfermeira está ralhando comigo por te ter escrito, e a srta. Atenaís de l’Estorade quer jantar. Adeus, pois, escreve-me umas cartas boas e bem extensas.



continua pág 335...

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[1] Capo d’opera: “obra-prima”. Bel quadro: “quadro bonito”.

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Honoré de Balzac (Tours, 20 de maio de 1799 — Paris, 18 de agosto de 1850) foi um produtivo escritor francês, notável por suas agudas observações psicológicas. É considerado o fundador do Realismo na literatura moderna.[1][2] Sua magnum opus, A Comédia Humana, consiste de 95 romances, novelas e contos que procuram retratar todos os níveis da sociedade francesa da época, em particular a florescente burguesia após a queda de Napoleão Bonaparte em 1815.

Entre seus romances mais famosos destacam-se A Mulher de Trinta Anos (1831-32), Eugènie Grandet (1833), O Pai Goriot (1834), O Lírio do Vale (1835), As Ilusões Perdidas (1839), A Prima Bette (1846) e O Primo Pons (1847). Desde Le Dernier Chouan (1829), que depois se transformaria em Les Chouans (1829, na tradução brasileira A Bretanha), Balzac denunciou ou abordou os problemas do dinheiro, da usura, da hipocrisia familiar, da constituição dos verdadeiros poderes na França liberal burguesa e, ainda que o meio operário não apareça diretamente em suas obras, discorreu sobre fenômenos sociais a partir da pintura dos ambientes rurais, como em Os Camponeses, de 1844. Além de romances, escreveu também "estudos filosóficos" (como A Procura do Absoluto, 1834) e estudos analíticos (como a Fisiologia do Casamento, que causou escândalo ao ser publicado em 1829).

Balzac tinha uma enorme capacidade de trabalho, usada sobretudo para cobrir as dívidas que acumulava. De certo modo, suas despesas foram a razão pela qual, desde 1832 até sua morte, se dedicou incansavelmente à literatura. Sua extensa obra influenciou nomes como Proust, Zola, Dickens, Dostoyevsky, Flaubert, Henry James, Machado de Assis, Castelo Branco e Ítalo Calvino, e é constantemente adaptada para o cinema. Participante da vida mundana parisiense, teve vários relacionamentos, entre eles um célebre caso amoroso, desde 1832, com a polonesa Ewelina Hańska, com quem veio a se casar pouco antes de morrer.


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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (cip)
(Câmara Brasileira do Livro, sp, Brasil)

Balzac, Honoré de, 1799-1850. 
          A comédia humana: estudos de costumes: cenas da vida privada / Honoré de Balzac;                            orientação, introduções e notas de Paulo Rónai; tradução de Vidal de Oliveira; 3. ed. – São                  Paulo: Globo, 2012. 

          (A comédia humana; v. 1) Título original: La comédie humaine ISBN 978-85-250-5333-1                    0.000 kb; ePUB 

1. Romance francês i. Rónai, Paulo. ii. Título. iii. Série. 

12-13086                                                                               cdd-843 

Índices para catálogo sistemático: 
1. Romances: Literatura francesa 843

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