segunda-feira, 5 de setembro de 2022

Pedagogia do Oprimido - 4. A teoria da ação antidialógica (m)

Paulo Freire 




“educação como prática da liberdade”: 
alfabetizar é conscientizar 







AOS ESFARRAPADOS DO MUNDO 
E AOS QUE NELES SE 
DESCOBREM E, ASSIM 
DESCOBRINDO-SE, COM ELES 
SOFREM, MAS, SOBRETUDO, 
COM ELES LUTAM. 



4. A teoria da ação antidialógica


A TEORIA DA AÇÃO DIALÓGICA E SUAS
CARACTERÍSTICAS: A CO-LABORAÇÃO,
A UNIÃO, A ORGANIZAÇÃO E A SÍNTESE
CULTURAL


ORGANIZAÇÃO


Enquanto, na teoria da ação antidialógica, a manipulação, que serve à conquista, se impõe como condição indispensável ao ato dominador, na teoria dialógica da ação, vamos encontrar, como que oposto antagônico, a organização das massas populares.

A organização não apenas está diretamente ligada à sua unidade, mas é um desdobramento natural desta unidade das massas populares.

Desta forma, ao buscar a unidade, a liderança já, busca, igualmente, a organização das massas populares, o que implica no testemunho que deve dar a elas de que o esforço de libertação é uma tarefa comum a, ambas.

Este testemunho constante, humilde e corajoso do exercício de uma tarefa comum – a da libertação dos homens – evita o risco dos dirigismos antidialógicos.

O que pode variar, em função das condições históricas de uma dada sociedade, é o modo como testemunhar. O testemunho em si, porém, é um constituinte da ação revolucionária.

Por isto mesmo é que se impõe a necessidade de um conhecimento tanto quanto possível cada vez mais critico do momento histórico em que se dá a ação, da visão do mundo que tenham ou estejam tendo as massas populares, da percepção clara de qual seja a contradição principal e o principal aspecto da contradição que vive a sociedade, para se determinar o que e o como do testemunho.

Sendo históricas estas dimensões do testemunho, o dialógico, que é dialético, não pode importá-las simplesmente de outros contextos sem uma prévia análise do seu. A não ser assim, absolutiza o relativo e, mitificando-o, não pode escapar à alienação.

O testemunho, na teoria dialógica da ação, é uma das conotações principais do caráter cultural e pedagógico da evolução.

Entre os elementos constitutivos do testemunho, que não veriam historicamente, estão a coerência entre a palavra e o ato de quem testemunha, a ousadia do que testemunha, que o leva a enfrentar a existência como um risco permanente, a radicalização, nunca a sectarizaço, na opção feita, que leva não só o que testemunha, mas aqueles a quem dá, o testemunho, cada vez mais à ação. A valentia de amar que, segundo pensamos, já ficou claro não significar a acomodação ao mundo injusto mas a transformação deste mundo para a crescente libertação dos homens. A crença nas massas populares, uma vez que é a elas que o testemunho se dá, ainda que o testemunho a elas, dentro da totalidade em que estão, em relação dialética com as elites dominadoras, afete também a estas que a ele respondem dentro do quadro normal de sua forma de aturar.

Todo testemunho autêntico, por isto crítico, implica na ousadia de correr riscos – um deles, o de nem sempre a liderança conseguir de imediato, das massas populares, a adesão esperada. Um testemunho que, em certo momento e em certas condições, não frutificou, não está impossibilitado de, amanhã, vir a frutificar. É que, na medida em que o testemunho não é um gesto no ar, mas uma ação, um enfrentamento, com o mundo e com os homens, não é estático. É algo dinâmico, que passa a fazer parte da dualidade do contexto da sociedade em que se deu. E, daí em diante, já não para [1]


[1] Enquanto processo, o testemunho verdadeiro que, ao ser dado, não frutificou, não tem, neste momento negativo absolutização de seu fracasso. Conhecidos são os casos de lideres revolucionários cujo testemunho não morreu ao serem mortos pela repressão dos opressores.


Enquanto, na ação antidialógica, a manipulação, “anestesiando” as massas populares, facilita sua dominação, na ação dialógica, a manipulação cede seu lugar à verdadeira organização. Assim como, na ação antidialógica, a manipulação serve à conquista, na dialógica, o testemunho, ousado e amoroso, serve à organização. Esta, por sua vez, não apenas está ligada à união das massas populares como é um desdobramento natural desta união.

Por isto é que afirmamos: ao buscar a união, a liderança já busca, igualmente, a organização das massas populares.

É importante, porém, salientar que, na teoria dialógica da ação, a organização jamais será, a justaposição de indivíduos que, gregarizados, se relacionem mecanicistamente.

Este é um risco de que deve estar sempre advertido o verdadeiro dialógico.

Se, para a elite dominadora, a organização é a de si mesma, para a liderança revolucionária, a organização é a dela com as massas populares.

No primeiro caso, organizando- se, a elite dominadora estrutura cada vez mais o seu poder com que melhor domina e coisifica; no segundo, a organização só corresponde à sua natureza e a seu objetivo se é, em si, prática da liberdade. Neste sentido é que não é possível confundir a disciplina indispensável à organização com a condução pura das massas.

É verdade que, sem liderança, sem disciplina, sem ordem, sem decisão, sem objetivos, sem tarefas a cumprir e contas a prestar, não há, organização e, sem esta, se dilui a ação revolucionária. Nada disso, contudo, justifica o manejo das massas populares, a sua “coisificação”.

O objetivo da organização, que é libertador, é negado pela “coisificação” das massas populares, se a liderança revolucionária as manipula. “Coisificadas” já, estão elas pela opressão.

Não é como “coisas” já dissemos, e é bom que mais uma vez digamos, que os oprimidos se libertam, mas como homens.

A organização das massas populares em classe é o processo no qual a liderança revolucionária, tão proibida quanto este, de dizer sua palavra [2], instaura o aprendizado da pronúncia do mundo, aprendizado verdadeiro, por isto, dialógico.


[2] Certa vez, em conversa com o autor, um médico, dr. Orlando Aguirre, diretor da Faculdade de Medicina de uma Universidade Cubana, disse: “A revolução implica em três ‘P’ – Palavra, Povo e Pólvora. A explosão da Pólvora, continuou, aclara a visualização que tem o povo de sua situação concreta, em busca, na ação, de sua libertarão”. Pareceu-nos interessante observar, durante a conversação, como este médico revolucionário insistia na palavra, no sentido em que a tornamos neste ensaio. Isto é, palavra como ação e reflexão – palavra como práxis.


Daí que não possa a liderança dizer sua palavra sozinha, mas com o povo. A liderança que assim não proceda, que insista em impor sua palavra de ordem, não organiza, manipula o povo. Não liberta, nem se liberta, oprime. 

O fato, contudo, de na teoria dialógica, no processo de organização, não ter a liderança o direito de impor arbitrariamente sua palavra, não significa dever assumir uma posição liberalista, que levaria as massas oprimidas – habituadas à opressão – a licenciosidades. 

A teoria dialógica da ação nega o autoritarismo como nega a licenciosidade. E, ao fazê-lo, afirma a autoridade e a liberdade. 

Reconhece que, se não há liberdade sem autoridade, não há também esta sem aquela. 

A fonte geradora, constituinte da autoridade autêntica está na liberdade que, em certo momento se faz autoridade. Toda liberdade contém em si a possibilidade de vir a ser, em circunstâncias especiais, (e em níveis existenciais diferentes), autoridades. 

Não podemos olhá-las isoladamente, mas em suas relações, não necessariamente antagônicas. [3]


[3] O antagonismo entre ambas se dá, na situação objetiva de opressão ou de licenciosidade.


É por isto que a verdadeira autoridade não se afirma como tal, na pura transferência, mas na delegação ou na adesão simpática. Se se gera num ato de transferência, ou de imposição “antipática” sobre as maiorias, se degenera em autoritarismo que esmaga as liberdades. 

Somente ao existenciar-se como liberdade que foi constituída em autoridade, pode evitar seu antagonismo com as liberdades. 

Toda hipertrofia de uma provoca a atrofia da outra. Assim como não há autoridade sem liberdade e esta sem aquela, não há autoritarismo sem negação das liberdades e licenciosidade sem negaçãao da autoridade. 

Na teoria da ação dialógica, portanto, a organização, implicando em autoridade, não pode ser autoritária; implicando em liberdade, não pode ser licenciosa. 

Pelo contrário, é o momento altamente pedagógico, em que a liderança e o povo fazem juntos o aprendizado da autoridade e da liberdade verdadeiras que ambos, como um só corpo, buscam instaurar, com a transformação da realidade que os mediatiza. 



continua página 104...

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PAULO FREIRE

PEDAGOGIA DO OPRIMIDO

23ª Reimpressão

PAZ E TERRA


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© Paulo Freire, 1970
Capa
Isabel Carballo
Revisão
Maria Luiza Simões e Jonas Pereira dos Santos
(Preparação pelo Centro de Catalogação -na-fonte do
Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ)


Freire, Paulo
F934p Pedagogia do oprimido, 17ª. ed. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1987
(O mundo, hoje, v.21)


1. Alfabetização – Métodos 2. Alfabetização – Teoria I. Título II. Série
CDD-374.012
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Educação como Prática da Liberdade. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1967; e Pedagogia do Oprimido



"Quem atua sobre os homens para, doutrinando-os, adaptá-los cada vez mais à realidade que deve permanecer intocada, são os dominadores." 


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