Estudos de Costumes
- Cenas da Vida Privada
Memórias de duas jovens esposas
PRIMEIRA PARTE
XLIII – A BARONESA DE MACUMER À CONDESSA DE L’ESTORADE
Pela primeira vez em minha vida, querida Renata, chorei sozinha à sombra de um salgueiro, num banco de madeira, à beira de meu vasto açude de Chantepleurs, uma vista deliciosa que vais embelezar, pois nela faltam apenas crianças alegres. Tua fecundidade fez com que eu, que não tenho filhos, depois de quase três anos de casamento, me recolhesse em mim mesma. “Oh! Estive pensando, mesmo que tivesse de sofrer cem vezes mais do que Renata sofreu ao dar à luz o meu afilhado, mesmo que tivesse de ver meu filho em convulsões, faze, meu Deus, que eu tenha uma criatura angélica como essa pequena Atenaís, que daqui vejo tão bela como a luz!” Porque nada me disseste a respeito! Reconheci nisso a minha Renata. Parece que adivinhas os meus sofrimentos. Toda vez que vejo frustradas as minhas esperanças, fico durante vários dias presa de um pesar profundo. Fazia, então, melancólicas elegias. Quando me tocará bordar pequeninas toucas? Quando escolherei as fazendas para um enxoval de bebê? Quando coserei lindas rendas para envolver uma cabecinha? Estarei destinada a nunca ouvir uma dessas encantadoras criaturas chamar-me mamãe, puxar-me pelo vestido, tiranizar-me? Não verei na areia os vestígios de um carrinho? Não apanharei brinquedos quebrados no meu pátio? Não irei, como tantas mães, ao bazar comprar espadinhas, bonecas, pequenos aparelhos domésticos? Não verei desenvolver-se essa vida e esse anjo que será um outro Felipe mais amado? Quisera um filho para saber como se pode amar o amante mais do que se ama, num outro ele. Meu parque, meu castelo, parecem-me desertos e frios. Uma mulher sem filhos é uma monstruosidade; nascemos unicamente para mães. Oh! Doutorzinho de saias, viste bem a vida. De resto, a esterilidade é horrível sob todos os pontos de vista. Minha vida assemelha-se um pouco às pastorais de Gessner e de Florian, das quais dizia Rivarol, [1] que a gente lhes desejava lobos. Também eu quero dedicar-me! Sinto em mim forças que Felipe descuida; e, se não for mãe, será preciso que me conceda a fantasia de alguma desgraça. Eis o que acabo de dizer a meu rebento de mouro, ao qual estas palavras fizeram assomar lágrimas aos olhos; ficou quite em ser chamado de sublime animal; não se pode gracejar com ele sobre seu amor.
Momentos há em que tenho vontade de fazer rezar novenas, de ir pedir, a certas madonas ou a certas águas, a fecundidade. No próximo inverno consultarei os médicos. Estou tão furiosa comigo mesma que não te posso escrever mais longamente. Adeus.
XLIV – DA MESMA PARA A MESMA
Paris, 1829
Como, querida, um ano sem cartas?... Estou um pouco ressentida. Acreditas que teu Luís, que tem vindo ver-me quase de dois em dois dias, te substitui? Não me basta saber que não estás doente e que os vossos negócios vão bem; quero teus sentimentos e tuas ideias, como te entrego os meus, correndo embora o risco de que ralhes comigo, ou me censures, ou não me compreendas, porque te quero. Teu silêncio e tua reclusão no campo, quando aqui poderias gozar os triunfos parlamentares do conde de l’Estorade, cujo falatório e dedicação lhe granjearam influência, e que, sem dúvida nenhuma, ficará muito altamente colocado depois do período parlamentar, trazem-me graves inquietações. Será que passas tua vida a escrever-lhe, dando-lhe instruções? Numa não estava tão longe assim de sua Egéria [2]. Por que não aproveitaste a oportunidade para ver Paris? Eu já estaria gozando tua presença há quatro meses. Luís disse-me ontem que virias buscá-lo e que terias teu terceiro parto em Paris, horrorosa mãe Gigogne [3] que és! Depois de muitas perguntas, lamentos e queixumes, Luís, embora diplomata, acabou por me dizer que seu tio-avô, o padrinho de Atenaís, estava muito mal. Ora, suponho-te, como boa mãe de família, capaz de tirar partido da glória e dos discursos do deputado para obter um legado vantajoso do último parente do lado materno do teu marido. Tranquiliza-te, minha Renata, os Lenoncourt, os Chaulieu, o salão da sra. de Macumer trabalham por Luís. Martignac [4] com certeza o colocará no Tribunal de Contas. Mas, se não me disseres por que motivo permaneces na província, zango-me contigo. Será para não dares a impressão de seres toda a política da casa de l’Estorade? Será pela herança do tio? Tiveste receio de ser menos mãe em Paris? Oh! Como eu quisera saber se é para não te mostrares no teu estado de gravidez, coquete! Adeus.
continua pág 338...
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[1] As pastorais de Gessner e de Florian: os poemas idílicos do suíço Salomon Gessner (1730-1788) e do francês Jean-Pierre Claris de Florian (1755-1794) distinguem-se por seu caráter sentimental, ingênuo, moralizador, bastante insulso; foi sua pieguice que provocou essa observação do espirituoso jornalista Antoine de Rivarol (1753-1801).
[2] Numa não estava tão longe assim de sua Egéria: conforme a lenda, Numa, segundo rei de Roma, ia ao bosque de Arícia, perto da cidade, pedir os conselhos da ninfa profetisa Egéria.
[3] Mãe Gigogne: chama-se assim uma personagem feminina cônica do antigo teatro de títeres. Representava a fecundidade. Mais tarde apareceu também no cenário dos grandes teatros, em companhia de Arlequim e de Polichinelo.
[4] Jean Baptiste Martignac (1778-1832): ministro liberal de Carlos x.
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