volume V
A Prisioneira
Logo de manhã, a cabeça ainda virada para a parede, e antes de ter visto, acima das grandes cortinas da janela, qual era o matiz da raia de luz, eu já sabia que tempo estava fazendo. Os primeiros ruídos da rua já tinham informado, conforme chegassem amortecidos, desviados pela umidade ou vibrantes como flechas na área ressoante e vazia de uma manhã espaçosa, gélida e pura; desde o rodar do primeiro bonde, eu percebera se o tempo estava enregelado na chuva ou a caminho para o azul. E talvez esses mesmos ruídos também tivessem sido precedidos por uma certa emanação mais rápida, mais penetrante, que, deslizando através do meu sono, espalhasse nele uma tristeza anunciadora da neve, ou fizesse entoar, a determinada personagenzinha intermitente, tão numerosos cânticos à glória do sol, que estes acabavam por trazer até mim, que, ainda adormecido, principiava a sorrir e cujas pálpebras fechadas se preparavam para o deslumbramento, um atordoante despertar em música. Aliás, foi sobretudo do meu quarto que, durante esse período, percebi a vida exterior. Sei que Bloch disse que, quando vinha visitar-me à noite, ouvia o rumor de uma conversa; como minha mãe estava em Combray, e ele jamais encontrava ninguém no meu quarto, concluiu que eu falava sozinho. Quando, muito mais tarde, soube que Albertine então morava comigo, compreendendo que eu a escondera de todos, declarou que via enfim o motivo pelo qual eu nunca desejava sair nessa época da minha vida. Enganava-se. Era, aliás, bem desculpável, pois a realidade, mesmo se necessária, não é inteiramente previsível. Aqueles que chegam a conhecer algum pormenor exato sobre a vida de outra pessoa, logo tiram dali consequências que o não são, vendo no fato recém-descoberto, a explicação de coisas que precisamente não têm nenhuma relação com ele.
Quando hoje penso que minha amiga fora morar, após o nosso regresso de Balbec, sob o mesmo teto que eu, em Paris, que renunciara à ideia de fazer um cruzeiro, que tinha o seu quarto a vinte passos do meu, no fim do corredor, no gabinete das tapeçarias de meu pai, e que todas as noites, bem tarde, antes de me deixar, deslizava sua língua dentro da minha boca, como um pão diário, como um alimento nutritivo e que tivesse a natureza quase sagrada de toda carne à qual os sofrimentos por que passamos devido a ela acabam por conferir uma espécie de doçura moral, o que logo recordo, por comparação, não é a noite que o capitão Borodino me permitiu que passasse no quartel, por um favor que, afinal, só curava um incômodo passageiro, mas aquela em que meu pai dissera a mamãe que fosse dormir na cama junto à minha. Desse modo, a vida, se mais uma vez deve livrar-nos de um sofrimento que parecia inevitável, fá-lo em condições diversas, por vezes opostas, a ponto de que há quase um sacrilégio aparente em constatar a identidade da graça outorgada!
Quando Albertine sabia por Françoise que, na noite de meu quarto de cortinas ainda cerradas, eu não estava dormindo, não se incomodava de fazer um pouco de barulho ao se lavar no banheiro. Então, com frequência, em vez de esperar uma hora mais tardia, eu ia para um banheiro contíguo ao dela e que era agradável. Outrora, um diretor teatral gastava centenas de milhares de francos para recamar de esmeraldas verdadeiras um trono em que a diva representava o papel de imperatriz. Os Balés russos nos ensinaram que simples jogos de luz, dirigidos aos pontos adequados, prodigalizam joias tão suntuosas e mais variadas. Todavia, essa decoração, mais imaterial já não é tão graciosa quanto aquela que, às oito horas da manhã, o sol substitui à que tínhamos o hábito de ver quando só nos levantávamos ao meio-dia.
As janelas dos nossos dois banheiros, para que não nos vissem de fora, não eram lisas e sim enrugadas por uma geada artificial e fora de moda. De repente o sol amarelava essa musselina de vidro, dourava-a e, descobrindo suavemente em mim um rapaz mais velho que o hábito havia ocultado por muito tempo, me embriagava de lembranças, como se eu me encontrasse em meio à natureza, diante das folhagens douradas onde nem mesmo faltasse a presença de um pássaro. Pois ouvia Albertine assobiar sem parar:
Eu amava-a demais para não sorrir alegremente do seu mau gosto musical. Aliás, essa canção tinha encantado a Sra. Bontemps no último verão; e esta, ouvindo dizer que se tratava de uma inépcia, em vez de pedir a Albertine que a cantasse, quando estava com visitas, substituiu-a por:
Que por sua vez se tornou "uma chatice de Massenet com que a pequena nos martela os ouvidos".
Uma nuvem passava, eclipsava o sol, e eu via extinguir-se e cobrir-se de grisalha a recatada e folhuda cortina de vidro.
Os tabiques que separavam nossos banheiros (o de Albertine, todo igual, era um banheiro que mamãe, tendo outro na parte oposta do apartamento, jamais utilizara para não me fazer barulho) eram tão delgados que podíamos nos falar ao nos lavarmos cada qual no seu, prosseguindo uma conversa que só o ruído da água interrompia, nessa intimidade que, num hotel, muitas vezes permite a exigüidade do aposento e a aproximação das peças, mas que em Paris é bem rara.
De outras vezes, eu permanecia deitado, devaneando o tempo que quisesse, pois tinham ordem de nunca entrar em meu quarto sem que eu tivesse tocado a campainha, o que, devido ao jeito incômodo com que haviam colocado a pêra elétrica acima do meu leito, levava tanto tempo que, muitas vezes, cansado de procurar alcançá-la e contente por estar sozinho, eu ficava alguns instantes quase que readormecido. Não é que eu fosse absolutamente indiferente à estada de Albertine em nossa casa. A sua separação das amigas conseguia aliviar meu coração de novos sofrimentos. Mantinha-o num repouso, numa quase imobilidade, que o ajudavam a curar-se. Mas enfim essa tranquilidade que minha amiga me proporcionava era antes apaziguamento da dor do que alegria. Não que não me permitisse gozar de numerosas alegrias, às quais a dor muito viva me havia fechado, mas essas alegrias, longe de devê-las a Albertine, que aliás eu já não achava bonita, com quem me aborrecia e a quem eu tinha a sensação nítida de não amar, eu as gozava, ao contrário, quando Albertine não estava comigo. Assim, para começar a manhã, não mandava que a chamassem logo, principalmente se fazia bom tempo. Durante alguns momentos, e na certeza de que ele me fazia mais feliz do que Albertine, eu permanecia em colóquio íntimo com a personagenzinha interior, cantante saudadora do sol e de que já falei. De todas as que compõem o nosso indivíduo, não são as mais aparentes que nos são mais essenciais. Em mim, quando a doença as tiver lançado uma por uma em terra, ficarão ainda umas duas ou três que terão vida mais dura que as outras, notadamente um certo filósofo que só está feliz quando descobre uma porção comum entre duas obras, entre duas sensações. Porém, às vezes tenho me perguntado se a última de todas não seria o homenzinho, muitíssimo parecido a outro que o oculista de Combray havia colocado atrás de sua vitrina para indicar o tempo que fazia, e que, tirando o capuz logo que fazia sol, voltava a pô-lo assim que chovia. Eu conhecia o egoísmo desse homenzinho: posso estar sofrendo de uma crise de sufocação, que só a queda da chuva acalmaria, mas ele pouco se importa e, às primeiras gotas tão impacientemente aguardadas, perdendo sua alegria, repõe o capuz de mau humor. Em compensação, creio que, na minha agonia, quando todos os meus outros "eus" estiverem mortos, se acontecer brilhar um raio de sol, a personagenzinha barométrica, enquanto eu estiver exalando meus últimos suspiros, irá sentir-se bem à vontade e retirará seu capuz para cantar: "Ah! finalmente faz bom tempo."
Eu chamava Françoise. Abria o fígaro. Procurava e acabava por verificar que nele não se encontrava um artigo, ou tido como tal, que eu enviara a esse jornal e que nada mais era, um pouco remodelada, do que a página, recentemente descoberta, outrora escrita no carro do doutor Percepied, ao contemplar os campanários de Martinville. Depois, lia a carta de mamãe. Ela achava esquisito, chocante, que uma moça morasse sozinha comigo. No primeiro dia, no momento de deixar Balbec, quando me vira tão infeliz e se inquietara por deixar-me sozinho, talvez minha mãe se sentisse feliz ao saber que Albertine viajaria conosco e ao ver que, com nossas malas, junto às quais eu passara a noite chorando no hotel de Balbec, tinham posto no "tortinho" as de Albertine, estreitas e pretas, que me pareciam ter a forma de ataúdes, sem que soubesse se iam trazer vida ou morte à minha casa. Mas nem havia pensado nisso, tão contente que estava, naquela manhã radiosa, por levar Albertine comigo depois do medo de ficar em Balbec. Mas a esse projeto, se no princípio minha mãe não lhe fora hostil (falando amavelmente à minha amiga, como uma mãe cujo filho acaba de ser gravemente ferido, e que é reconhecida à jovem namorada que dele cuidava com desvelo), passara a sê-lo desde que tal projeto se cumprira de todo e que a estada da moça se prolongava em nossa casa, e na ausência dela e de meu pai. Todavia, não posso dizer que minha mãe tenha me manifestado alguma vez essa hostilidade. Como antigamente, quando deixara de ousar censurar-me o meu nervosismo e minha preguiça, agora sentia escrúpulos que eu talvez não tenha adivinhado ou desejado adivinhar no momento em se arriscar, fazendo algumas reservas acerca da moça com quem lhe dissera que ia me casar, a entristecer a minha vida, a me tornar mais tarde menos devotado à minha mulher, a semear talvez, para quando ela própria já não existisse, o remorso de a ter desgostado ao casar com Albertine. Mamãe preferia parecer aprovar uma escolha da qual sentia não poder remover-me. Mas todos os que a viam por essa época disseram-me que, à dor de ter perdido a mãe, acrescentava-se um ar de constante preocupação. Essa contenção de espírito, essa discussão interior, davam a mamãe um grande calor nas têmporas, e ela abria constantemente as janelas para se refrescar. Mas não chegava a tomar qualquer decisão, por medo de me "influenciar" num mau sentido e de estragar aquilo que julgava ser a minha felicidade. Nem mesmo podia resolver-se a impedir que eu conservasse Albertine provisoriamente na casa. Não desejava mostrar-se mais severa que a Sra. Bontemps, que era a maior interessada naquilo e não lhe via inconveniente algum, o que muito surpreendia minha mãe. Em todo caso, lamentava ter sido obrigada a nos deixar ambos sozinhos, partindo justo naquela ocasião para Combray, onde poderia ter de ficar (e de fato ficou) longos meses, durante os quais minha tia precisou incessantemente dela dia e noite. Lá, tudo lhe foi facilitado graças à bondade e ao devotamento de Legrandin que, não recuando diante de nenhum sacrifício, adiou semana após semana o seu regresso a Paris, sem conhecer muito a minha tia, simplesmente, em primeiro lugar, porque fora amiga de sua mãe, e depois porque sentiu que a enferma, condenada, gostava de seus cuidados e não podia passar sem ele. O esnobismo é uma grave doença da alma, porém localizada, e que não a estraga de todo. Entretanto, eu, ao contrário de mamãe, estava bem feliz com a sua ida para Combray, sem a qual teria receado (sem poder dizer a Albertine que a ocultasse) que ela descobrisse a sua amizade com a Srta. Vinteuil. Para minha mãe, isso teria sido um obstáculo absoluto não só a um casamento, do qual, aliás, pedira-me que não falasse ainda em definitivo à minha amiga, e cuja idéia erame cada vez mais intolerável, mas também a que Albertine passasse algum tempo em nossa casa. A não ser esse motivo tão grave e que ela ignorava, mamãe, pelo duplo efeito da imitação edificante e libertadora de minha avó, admiradora de George Sand, para quem a virtude consistia na nobreza do coração, e, por outro lado, de minha própria influência corruptora, era agora indulgente para com mulheres sobre cuja conduta se mostrara severa antigamente, ou mesmo nos dias de hoje, se se tratasse de suas amigas burguesas de Paris ou de Combray, mas de quem eu lhe gabava a grande alma e às quais ela perdoava em grande parte porque gostavam muito de mim. Apesar de tudo, e mesmo sem falar na questão das conveniências, creio que Albertine não teria tolerado mamãe, que conservara de Combray, de minha tia Léonie, de todos os parentes, hábitos de ordem de que minha amiga não tinha a menor noção. Não teria fechado uma porta e, em compensação, não ficaria mais constrangida que um cão ou um gato de entrar quando uma porta estivesse aberta. Seu encanto um pouco incômodo era, assim, o de estar na casa menos como uma moça do que feito um animal doméstico que entra numa sala; que sai, que se encontra em toda parte onde não é esperado, e que vinha; era para mim um repouso profundo; jogar-se em minha cama a meu lado, arrumando um lugarzinho de onde não se mexia mais, sem incomodar, como o teria feito uma pessoa. Entretanto, acabou por dobrar-se às minhas horas de sono, e evitou não só entrar no meu quarto, mas fazer barulho antes que eu tivesse tocado a campainha. Foi Françoise quem impôs essas regras. Era dessas criadas de Combray que conhecem o valor do patrão e acham que o menos que podem fazer é exigir que tenham com ele todas as atenções que julgam lhe serem devidas.
Quando um visitante estranho dava a Françoise uma gorjeta para que a dividisse com a criada de cozinha, o doador mal tinha tempo de entregá-Ia, e já Françoise, com uma rapidez, uma discrição e uma energia iguais, passara a lição à criada de cozinha, que vinha agradecer não com meias palavras, mas francamente, em voz alta, como Françoise lhe havia dito que era necessário fazer.
O cura de Combray não era um gênio, mas ele também sabia o que se devia fazer. Sob sua orientação, a filha dos primos protestantes da Sra. Sazerat se convertera ao catolicismo, e a família tivera um comportamento exemplar para com ele, ao se tratar de um casamento com um nobre de Méséglise. Os pais do rapaz escreveram, para pedir informações, uma carta bastante desdenhosa e onde era depreciada a origem protestante da moça. O cura de Combray respondeu em tom tão enérgico, que o nobre de Méséglise, curvo e prosternado, escreveu outra carta bem diferente, na qual solicitava, como o mais precioso favor, unir-se à jovem.
Françoise não teve mérito em fazer respeitar o meu sono por Albertine. Estava imbuída da tradição. Por um silêncio que manteve, ou pela resposta peremptória que deu a um pedido de entrar no meu quarto ou de me perguntar alguma coisa, que inocentemente formulara Albertine, esta compreendeu, com assombro, achar-se em um mundo estranho, de costumes desconhecidos, regulados por leis de vida que ninguém podia pensar em transgredir. Já tivera um primeiro pressentimento daquilo em Balbec, mas em Paris não tentou sequer resistir e esperou pacientemente, todas as manhãs, o meu toque de campainha para ter coragem de fazer barulho.
Aliás, a educação que lhe deu Françoise foi salutar até mesmo para a nossa velha criada, acalmando aos poucos os gemidos que, desde a nossa volta de Balbec, ela não deixara de soltar. Pois, no momento de subir para o trem, percebera que havia esquecido de despedir-se da "governanta" do hotel, criatura bigoduda que supervisionava os andares, mal conhecia Françoise, mas fora relativamente cortês com ela. Françoise queria porque queria voltar, descer do trem, regressar ao hotel, fazer suas despedidas à governanta e só partir no dia seguinte. O juízo e sobretudo o meu súbito horror a Balbec me impediram de conceder-lhe essa graça, mas ela cultivara um mau-humor doentio e arrebatado que a mudança de clima não fora bastante para fazer abrandar e que se prolongou em Paris. Pois, segundo o código de Françoise, tal como está representado nos baixos-relevos de Saint-André-des-Champs, desejar a morte do inimigo, e até matá-lo, não é proibido, porém é horrível não fazer o que se deve, não retribuir uma gentileza, não despedir-se antes de partir, como uma perfeita grosseirona, de uma governanta de hotel.
Logo de manhã, a cabeça ainda virada para a parede, e antes de ter visto, acima das grandes cortinas da janela, qual era o matiz da raia de luz, eu já sabia que tempo estava fazendo. Os primeiros ruídos da rua já tinham informado, conforme chegassem amortecidos, desviados pela umidade ou vibrantes como flechas na área ressoante e vazia de uma manhã espaçosa, gélida e pura; desde o rodar do primeiro bonde, eu percebera se o tempo estava enregelado na chuva ou a caminho para o azul. E talvez esses mesmos ruídos também tivessem sido precedidos por uma certa emanação mais rápida, mais penetrante, que, deslizando através do meu sono, espalhasse nele uma tristeza anunciadora da neve, ou fizesse entoar, a determinada personagenzinha intermitente, tão numerosos cânticos à glória do sol, que estes acabavam por trazer até mim, que, ainda adormecido, principiava a sorrir e cujas pálpebras fechadas se preparavam para o deslumbramento, um atordoante despertar em música. Aliás, foi sobretudo do meu quarto que, durante esse período, percebi a vida exterior. Sei que Bloch disse que, quando vinha visitar-me à noite, ouvia o rumor de uma conversa; como minha mãe estava em Combray, e ele jamais encontrava ninguém no meu quarto, concluiu que eu falava sozinho. Quando, muito mais tarde, soube que Albertine então morava comigo, compreendendo que eu a escondera de todos, declarou que via enfim o motivo pelo qual eu nunca desejava sair nessa época da minha vida. Enganava-se. Era, aliás, bem desculpável, pois a realidade, mesmo se necessária, não é inteiramente previsível. Aqueles que chegam a conhecer algum pormenor exato sobre a vida de outra pessoa, logo tiram dali consequências que o não são, vendo no fato recém-descoberto, a explicação de coisas que precisamente não têm nenhuma relação com ele.
Quando hoje penso que minha amiga fora morar, após o nosso regresso de Balbec, sob o mesmo teto que eu, em Paris, que renunciara à ideia de fazer um cruzeiro, que tinha o seu quarto a vinte passos do meu, no fim do corredor, no gabinete das tapeçarias de meu pai, e que todas as noites, bem tarde, antes de me deixar, deslizava sua língua dentro da minha boca, como um pão diário, como um alimento nutritivo e que tivesse a natureza quase sagrada de toda carne à qual os sofrimentos por que passamos devido a ela acabam por conferir uma espécie de doçura moral, o que logo recordo, por comparação, não é a noite que o capitão Borodino me permitiu que passasse no quartel, por um favor que, afinal, só curava um incômodo passageiro, mas aquela em que meu pai dissera a mamãe que fosse dormir na cama junto à minha. Desse modo, a vida, se mais uma vez deve livrar-nos de um sofrimento que parecia inevitável, fá-lo em condições diversas, por vezes opostas, a ponto de que há quase um sacrilégio aparente em constatar a identidade da graça outorgada!
Quando Albertine sabia por Françoise que, na noite de meu quarto de cortinas ainda cerradas, eu não estava dormindo, não se incomodava de fazer um pouco de barulho ao se lavar no banheiro. Então, com frequência, em vez de esperar uma hora mais tardia, eu ia para um banheiro contíguo ao dela e que era agradável. Outrora, um diretor teatral gastava centenas de milhares de francos para recamar de esmeraldas verdadeiras um trono em que a diva representava o papel de imperatriz. Os Balés russos nos ensinaram que simples jogos de luz, dirigidos aos pontos adequados, prodigalizam joias tão suntuosas e mais variadas. Todavia, essa decoração, mais imaterial já não é tão graciosa quanto aquela que, às oito horas da manhã, o sol substitui à que tínhamos o hábito de ver quando só nos levantávamos ao meio-dia.
As janelas dos nossos dois banheiros, para que não nos vissem de fora, não eram lisas e sim enrugadas por uma geada artificial e fora de moda. De repente o sol amarelava essa musselina de vidro, dourava-a e, descobrindo suavemente em mim um rapaz mais velho que o hábito havia ocultado por muito tempo, me embriagava de lembranças, como se eu me encontrasse em meio à natureza, diante das folhagens douradas onde nem mesmo faltasse a presença de um pássaro. Pois ouvia Albertine assobiar sem parar:
Les douleurs sont des folies
Et qui les écoute est encore plus fou.
["As dores são umas loucas,/ E quem as escuta mais louco ainda." (N. do T)]
Eu amava-a demais para não sorrir alegremente do seu mau gosto musical. Aliás, essa canção tinha encantado a Sra. Bontemps no último verão; e esta, ouvindo dizer que se tratava de uma inépcia, em vez de pedir a Albertine que a cantasse, quando estava com visitas, substituiu-a por:
Une chanson d'adieu sort des sources troublées
["Uma canção de adeus sai das fontes turvadas." (N. do T)]
Que por sua vez se tornou "uma chatice de Massenet com que a pequena nos martela os ouvidos".
Uma nuvem passava, eclipsava o sol, e eu via extinguir-se e cobrir-se de grisalha a recatada e folhuda cortina de vidro.
Os tabiques que separavam nossos banheiros (o de Albertine, todo igual, era um banheiro que mamãe, tendo outro na parte oposta do apartamento, jamais utilizara para não me fazer barulho) eram tão delgados que podíamos nos falar ao nos lavarmos cada qual no seu, prosseguindo uma conversa que só o ruído da água interrompia, nessa intimidade que, num hotel, muitas vezes permite a exigüidade do aposento e a aproximação das peças, mas que em Paris é bem rara.
De outras vezes, eu permanecia deitado, devaneando o tempo que quisesse, pois tinham ordem de nunca entrar em meu quarto sem que eu tivesse tocado a campainha, o que, devido ao jeito incômodo com que haviam colocado a pêra elétrica acima do meu leito, levava tanto tempo que, muitas vezes, cansado de procurar alcançá-la e contente por estar sozinho, eu ficava alguns instantes quase que readormecido. Não é que eu fosse absolutamente indiferente à estada de Albertine em nossa casa. A sua separação das amigas conseguia aliviar meu coração de novos sofrimentos. Mantinha-o num repouso, numa quase imobilidade, que o ajudavam a curar-se. Mas enfim essa tranquilidade que minha amiga me proporcionava era antes apaziguamento da dor do que alegria. Não que não me permitisse gozar de numerosas alegrias, às quais a dor muito viva me havia fechado, mas essas alegrias, longe de devê-las a Albertine, que aliás eu já não achava bonita, com quem me aborrecia e a quem eu tinha a sensação nítida de não amar, eu as gozava, ao contrário, quando Albertine não estava comigo. Assim, para começar a manhã, não mandava que a chamassem logo, principalmente se fazia bom tempo. Durante alguns momentos, e na certeza de que ele me fazia mais feliz do que Albertine, eu permanecia em colóquio íntimo com a personagenzinha interior, cantante saudadora do sol e de que já falei. De todas as que compõem o nosso indivíduo, não são as mais aparentes que nos são mais essenciais. Em mim, quando a doença as tiver lançado uma por uma em terra, ficarão ainda umas duas ou três que terão vida mais dura que as outras, notadamente um certo filósofo que só está feliz quando descobre uma porção comum entre duas obras, entre duas sensações. Porém, às vezes tenho me perguntado se a última de todas não seria o homenzinho, muitíssimo parecido a outro que o oculista de Combray havia colocado atrás de sua vitrina para indicar o tempo que fazia, e que, tirando o capuz logo que fazia sol, voltava a pô-lo assim que chovia. Eu conhecia o egoísmo desse homenzinho: posso estar sofrendo de uma crise de sufocação, que só a queda da chuva acalmaria, mas ele pouco se importa e, às primeiras gotas tão impacientemente aguardadas, perdendo sua alegria, repõe o capuz de mau humor. Em compensação, creio que, na minha agonia, quando todos os meus outros "eus" estiverem mortos, se acontecer brilhar um raio de sol, a personagenzinha barométrica, enquanto eu estiver exalando meus últimos suspiros, irá sentir-se bem à vontade e retirará seu capuz para cantar: "Ah! finalmente faz bom tempo."
Eu chamava Françoise. Abria o fígaro. Procurava e acabava por verificar que nele não se encontrava um artigo, ou tido como tal, que eu enviara a esse jornal e que nada mais era, um pouco remodelada, do que a página, recentemente descoberta, outrora escrita no carro do doutor Percepied, ao contemplar os campanários de Martinville. Depois, lia a carta de mamãe. Ela achava esquisito, chocante, que uma moça morasse sozinha comigo. No primeiro dia, no momento de deixar Balbec, quando me vira tão infeliz e se inquietara por deixar-me sozinho, talvez minha mãe se sentisse feliz ao saber que Albertine viajaria conosco e ao ver que, com nossas malas, junto às quais eu passara a noite chorando no hotel de Balbec, tinham posto no "tortinho" as de Albertine, estreitas e pretas, que me pareciam ter a forma de ataúdes, sem que soubesse se iam trazer vida ou morte à minha casa. Mas nem havia pensado nisso, tão contente que estava, naquela manhã radiosa, por levar Albertine comigo depois do medo de ficar em Balbec. Mas a esse projeto, se no princípio minha mãe não lhe fora hostil (falando amavelmente à minha amiga, como uma mãe cujo filho acaba de ser gravemente ferido, e que é reconhecida à jovem namorada que dele cuidava com desvelo), passara a sê-lo desde que tal projeto se cumprira de todo e que a estada da moça se prolongava em nossa casa, e na ausência dela e de meu pai. Todavia, não posso dizer que minha mãe tenha me manifestado alguma vez essa hostilidade. Como antigamente, quando deixara de ousar censurar-me o meu nervosismo e minha preguiça, agora sentia escrúpulos que eu talvez não tenha adivinhado ou desejado adivinhar no momento em se arriscar, fazendo algumas reservas acerca da moça com quem lhe dissera que ia me casar, a entristecer a minha vida, a me tornar mais tarde menos devotado à minha mulher, a semear talvez, para quando ela própria já não existisse, o remorso de a ter desgostado ao casar com Albertine. Mamãe preferia parecer aprovar uma escolha da qual sentia não poder remover-me. Mas todos os que a viam por essa época disseram-me que, à dor de ter perdido a mãe, acrescentava-se um ar de constante preocupação. Essa contenção de espírito, essa discussão interior, davam a mamãe um grande calor nas têmporas, e ela abria constantemente as janelas para se refrescar. Mas não chegava a tomar qualquer decisão, por medo de me "influenciar" num mau sentido e de estragar aquilo que julgava ser a minha felicidade. Nem mesmo podia resolver-se a impedir que eu conservasse Albertine provisoriamente na casa. Não desejava mostrar-se mais severa que a Sra. Bontemps, que era a maior interessada naquilo e não lhe via inconveniente algum, o que muito surpreendia minha mãe. Em todo caso, lamentava ter sido obrigada a nos deixar ambos sozinhos, partindo justo naquela ocasião para Combray, onde poderia ter de ficar (e de fato ficou) longos meses, durante os quais minha tia precisou incessantemente dela dia e noite. Lá, tudo lhe foi facilitado graças à bondade e ao devotamento de Legrandin que, não recuando diante de nenhum sacrifício, adiou semana após semana o seu regresso a Paris, sem conhecer muito a minha tia, simplesmente, em primeiro lugar, porque fora amiga de sua mãe, e depois porque sentiu que a enferma, condenada, gostava de seus cuidados e não podia passar sem ele. O esnobismo é uma grave doença da alma, porém localizada, e que não a estraga de todo. Entretanto, eu, ao contrário de mamãe, estava bem feliz com a sua ida para Combray, sem a qual teria receado (sem poder dizer a Albertine que a ocultasse) que ela descobrisse a sua amizade com a Srta. Vinteuil. Para minha mãe, isso teria sido um obstáculo absoluto não só a um casamento, do qual, aliás, pedira-me que não falasse ainda em definitivo à minha amiga, e cuja idéia erame cada vez mais intolerável, mas também a que Albertine passasse algum tempo em nossa casa. A não ser esse motivo tão grave e que ela ignorava, mamãe, pelo duplo efeito da imitação edificante e libertadora de minha avó, admiradora de George Sand, para quem a virtude consistia na nobreza do coração, e, por outro lado, de minha própria influência corruptora, era agora indulgente para com mulheres sobre cuja conduta se mostrara severa antigamente, ou mesmo nos dias de hoje, se se tratasse de suas amigas burguesas de Paris ou de Combray, mas de quem eu lhe gabava a grande alma e às quais ela perdoava em grande parte porque gostavam muito de mim. Apesar de tudo, e mesmo sem falar na questão das conveniências, creio que Albertine não teria tolerado mamãe, que conservara de Combray, de minha tia Léonie, de todos os parentes, hábitos de ordem de que minha amiga não tinha a menor noção. Não teria fechado uma porta e, em compensação, não ficaria mais constrangida que um cão ou um gato de entrar quando uma porta estivesse aberta. Seu encanto um pouco incômodo era, assim, o de estar na casa menos como uma moça do que feito um animal doméstico que entra numa sala; que sai, que se encontra em toda parte onde não é esperado, e que vinha; era para mim um repouso profundo; jogar-se em minha cama a meu lado, arrumando um lugarzinho de onde não se mexia mais, sem incomodar, como o teria feito uma pessoa. Entretanto, acabou por dobrar-se às minhas horas de sono, e evitou não só entrar no meu quarto, mas fazer barulho antes que eu tivesse tocado a campainha. Foi Françoise quem impôs essas regras. Era dessas criadas de Combray que conhecem o valor do patrão e acham que o menos que podem fazer é exigir que tenham com ele todas as atenções que julgam lhe serem devidas.
Quando um visitante estranho dava a Françoise uma gorjeta para que a dividisse com a criada de cozinha, o doador mal tinha tempo de entregá-Ia, e já Françoise, com uma rapidez, uma discrição e uma energia iguais, passara a lição à criada de cozinha, que vinha agradecer não com meias palavras, mas francamente, em voz alta, como Françoise lhe havia dito que era necessário fazer.
O cura de Combray não era um gênio, mas ele também sabia o que se devia fazer. Sob sua orientação, a filha dos primos protestantes da Sra. Sazerat se convertera ao catolicismo, e a família tivera um comportamento exemplar para com ele, ao se tratar de um casamento com um nobre de Méséglise. Os pais do rapaz escreveram, para pedir informações, uma carta bastante desdenhosa e onde era depreciada a origem protestante da moça. O cura de Combray respondeu em tom tão enérgico, que o nobre de Méséglise, curvo e prosternado, escreveu outra carta bem diferente, na qual solicitava, como o mais precioso favor, unir-se à jovem.
Françoise não teve mérito em fazer respeitar o meu sono por Albertine. Estava imbuída da tradição. Por um silêncio que manteve, ou pela resposta peremptória que deu a um pedido de entrar no meu quarto ou de me perguntar alguma coisa, que inocentemente formulara Albertine, esta compreendeu, com assombro, achar-se em um mundo estranho, de costumes desconhecidos, regulados por leis de vida que ninguém podia pensar em transgredir. Já tivera um primeiro pressentimento daquilo em Balbec, mas em Paris não tentou sequer resistir e esperou pacientemente, todas as manhãs, o meu toque de campainha para ter coragem de fazer barulho.
Aliás, a educação que lhe deu Françoise foi salutar até mesmo para a nossa velha criada, acalmando aos poucos os gemidos que, desde a nossa volta de Balbec, ela não deixara de soltar. Pois, no momento de subir para o trem, percebera que havia esquecido de despedir-se da "governanta" do hotel, criatura bigoduda que supervisionava os andares, mal conhecia Françoise, mas fora relativamente cortês com ela. Françoise queria porque queria voltar, descer do trem, regressar ao hotel, fazer suas despedidas à governanta e só partir no dia seguinte. O juízo e sobretudo o meu súbito horror a Balbec me impediram de conceder-lhe essa graça, mas ela cultivara um mau-humor doentio e arrebatado que a mudança de clima não fora bastante para fazer abrandar e que se prolongou em Paris. Pois, segundo o código de Françoise, tal como está representado nos baixos-relevos de Saint-André-des-Champs, desejar a morte do inimigo, e até matá-lo, não é proibido, porém é horrível não fazer o que se deve, não retribuir uma gentileza, não despedir-se antes de partir, como uma perfeita grosseirona, de uma governanta de hotel.
continua na página 06...
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Leia também:
Volume 1
Volume 2
Volume 3
Volume 4
Volume 5
A Prisioneira (Prefácio)A Prisioneira (Logo de manhã)
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