volume I
No Caminho de Swann
ao senhor gaston calmette
como um testemunho de profundo e afetuoso reconhecimento[1]
— marcel proust
combray
I(a) ao senhor gaston calmette
como um testemunho de profundo e afetuoso reconhecimento[1]
— marcel proust
combray
Durante muito tempo, costumava deitar-me cedo. Às vezes, mal apagava a vela, meus olhos se fechavam tão depressa que eu nem tinha tempo de pensar: “Adormeço”. E, meia hora depois, despertava-me a ideia de que já era tempo de procurar dormir; queria largar o volume que imaginava ter ainda nas mãos e soprar a vela; durante o sono, não havia cessado de refletir sobre o que acabara de ler, mas essas reflexões tinham assumido uma feição um tanto particular; parecia-me que eu era o assunto de que tratava o livro: uma igreja, um quarteto, a rivalidade entre Francisco i e Carlos v.[2] Essa crença sobrevivia alguns segundos ao despertar; não chocava minha razão, mas pairava-me como um véu sobre os olhos, impedindo-os de ver que a luz já não estava acesa. Depois começava a parecer-me ininteligível, como, após a metempsicose, os pensamentos de uma existência anterior; o tema da obra destacava-se de mim, ficando eu livre para adaptar-me ou não a ele; em seguida recuperava a vista, atônito de encontrar em derredor uma obscuridade, suave e repousante para os olhos, mas talvez ainda mais para o espírito, ao qual se apresentava como algo sem causa, incompreensível, algo de verdadeiramente obscuro. Indagava comigo que horas seriam; ouvia o silvo dos trens que, ora mais, ora menos afastado, e marcando as distâncias como o canto de um pássaro em uma floresta, descrevia-me a extensão do campo deserto, onde o viajante se apressa em direção à próxima parada: o caminho que ele segue[3] vai lhe ficar gravado na lembrança com a excitação produzida pelos lugares novos, os atos inabituais, pela recente conversa e as despedidas trocadas à luz de lâmpada estranha que ainda o acompanham no silêncio da noite, e pela doçura próxima do regresso.
Apoiava brandamente minhas faces contra as belas faces do travesseiro que, cheias e frescas, são como as faces de nossa infância. Riscava um fósforo para olhar o relógio. Em breve seria meia-noite. É esse o instante em que o enfermo obrigado a partir, e que teve de pousar em um hotel desconhecido, desperto por uma crise, alegra-se ao perceber debaixo da porta uma raia de luz. Que ventura! Já é dia! Dentro em pouco os criados se levantarão, poderá chamá-los, virão prestar-lhe socorro. A esperança de ser aliviado lhe dá ânimo para sofrer. Agora mesmo julgou ouvir passos; os passos se aproximam, depois se afastam. E a raia de luz que estava sob a porta desapareceu. É meia-noite; acabam de apagar o gás; o último criado partiu, e será preciso ficar toda a noite a sofrer sem remédio
Tornava a adormecer, e às vezes não despertava senão por um breve instante, mas o suficiente para ouvir os estalidos orgânicos das madeiras, para abrir os olhos e fixar o caleidoscópio da escuridão e saborear, graças a um lampejo momentâneo de consciência, o sono em que estavam mergulhados os móveis, o quarto, aquele todo do qual eu não era mais que uma parte mínima e em cuja insensibilidade logo tornava a integrar-me. Ou então, enquanto dormia, retrocedera sem esforço a uma época para sempre transcorrida de minha primitiva existência, tornando a encontrar alguns de meus terrores infantis, como o medo de que meu tio-avô me puxasse os cachos e que se dissipara no dia — início para mim de uma era nova — em que mos haviam cortado. Tal acontecimento, eu o esquecera durante o sono, mas sua lembrança voltava-me assim que conseguia despertar para fugir às mãos de meu tio-avô; em todo caso, como medida de precaução, envolvia completamente a cabeça com o travesseiro antes de regressar ao mundo dos sonhos.
Às vezes, como nasceu Eva de uma costela de Adão, nascia uma mulher, durante meu sono, de uma falsa posição de minha coxa. Oriunda do prazer que eu estava a ponto de experimentar, imaginava que era ela que mo oferecia. Meu corpo, que sentia no dela meu próprio calor, procurava juntar-se-lhe, e eu despertava. O resto dos humanos se me afigurava como coisa muito remota em comparação com aquela mulher que eu havia deixado momentos antes; minha face estava ainda quente de seu beijo e meus membros doloridos pelo peso de seu corpo. Se, como às vezes acontecia, apresentava os traços de alguma mulher a quem conhecera na vida, ia dedicar-me inteiramente a este fim: encontrá-la, tal como os que empreendem uma viagem para ver com os próprios olhos uma desejada cidade e imaginam que se pode gozar, em uma coisa real, o encanto da coisa sonhada. Pouco a pouco sua lembrança se dissipava, e eu esquecia a filha de meu sonho.[4]
Um homem que dorme mantém em círculo em torno de si o fio das horas, a ordem dos anos e dos mundos. Ao acordar consulta-os instintivamente e neles verifica em um segundo o ponto da terra em que se acha, o tempo que decorreu até despertar; essa ordenação, porém, pode-se confundir e romper. Se acaso pela madrugada, após uma insônia, vem o sono surpreendê-lo durante a leitura, em uma posição muito diversa daquela em que dorme habitualmente, basta seu braço erguido para deter e fazer recuar o sol, e, no primeiro minuto em que desperte, já não saberá da hora, e ficará pensando que acabou apenas de deitar-se. Se adormece em posição ainda mais insólita e contrafeita, por exemplo sentado em uma poltrona depois do jantar, dar-se-á então uma completa reviravolta nos mundos desorbitados, a cadeira mágica o fará viajar a toda a velocidade no tempo e no espaço, e, no momento de abrir as pálpebras, pensará que está deitado alguns meses antes, em uma terra diferente. Quanto a mim, no entanto, bastava que estivesse a dormir em meu próprio leito e que o sono fosse bastante profundo para relaxar-se a tensão de meu espírito, o qual perdia então a planta do local onde eu adormecera; assim, quando acordava no meio da noite, e como ignorasse onde me achava, no primeiro instante nem mesmo sabia quem era; tinha apenas, em sua singeleza primitiva, o sentimento da existência, tal como pode fremir no fundo de um animal; estava mais despercebido que o homem das cavernas; mas aí a lembrança — não ainda do local em que me achava, mas de alguns outros que havia habitado e onde poderia estar — vinha a mim como um socorro do alto para me tirar do nada, de onde não poderia sair sozinho; passava em um segundo por cima de séculos de civilização e a imagem confusamente entrevista de lampiões de querosene, depois de camisas de gola virada, recompunha pouco a pouco os traços originais de meu próprio eu.
A imobilidade das coisas que nos cercam talvez lhes seja imposta por nossa certeza de que essas coisas são elas mesmas e não outras, pela imobilidade de nosso pensamento perante elas. A verdade é que, quando eu assim despertava, com o espírito a debater-se para averiguar, sem sucesso, onde poderia achar-me, tudo girava em redor de mim no escuro, as coisas, os países, os anos. Meu corpo, muito entorpecido para se mover, procurava, segundo a forma de seu cansaço, determinar a posição dos membros para daí induzir a direção da parede, o lugar dos móveis, para reconstruir e dar um nome à moradia onde se achava. Sua memória, a memória de suas costelas, de seus joelhos, de suas espáduas, apresentava-lhe, sucessivamente, vários dos quartos onde havia dormido, enquanto em torno dele as paredes invisíveis, mudando de lugar segundo a forma da peça imaginada, redemoinhavam nas trevas. E antes mesmo que meu pensamento, hesitante no limiar dos tempos e das formas, tivesse identificado a habitação, reunindo as diversas circunstâncias, ele — meu corpo — ia recordando, para cada quarto, a espécie do leito, a localização das portas, o lado para que davam as janelas, a existência de um corredor, e isso com os pensamentos que eu ali tivera ao adormecer e que reencontrava ao despertar.[5] Meu corpo anquilosado, procurando adivinhar sua orientação, imaginava-se, por exemplo, virado para a parede, em um grande leito de dossel, e eu logo dizia comigo: “Pois não é que acabei adormecendo antes que mamãe me viesse dar boa-noite!”; achava-me então no campo, em casa de meu avô, morto havia muitos anos; e meu corpo, o flanco sobre o qual eu repousava, fiel zelador de um passado que meu espírito nunca deveria esquecer, recordava-me a chama da lâmpada de cristal da Boêmia, em forma de urna suspensa do teto por leves correntes, a lareira de mármore de Viena, em meu quarto de dormir, em Combray, em casa de meus avós, em remotos dias que naquele instante eu julgava atuais, sem formar deles uma imagem exata e que tornaria a ver muito melhor dali a momentos, quando despertasse de todo.[6]
Depois renascia a lembrança de uma nova atitude; a parede fugia em outra direção: achava-me em meu quarto em casa da sra. Saint-Loup, no campo; meu Deus! São dez horas, no mínimo; já devem ter acabado de jantar! Com certeza prolonguei em demasia a sesta que faço todas as tardes ao voltar de meu passeio com a sra. Saint-Loup, antes de vestir a casaca. Pois muitos anos haviam se passado desde aqueles dias de Combray, quando, em nossos regressos mais tardios, eram os reflexos vermelhos do poente que eu avistava nas vidraças de minha janela. Muito outro é o gênero de vida que se leva na residência da sra. Saint-Loup, em Tansonville, outro o gênero de prazer que experimento em só sair à noite, em seguir, ao luar, esses caminhos onde brincava outrora ao sol; e o quarto onde terei adormecido em vez de preparar-me para a ceia, avisto-o de longe, quando voltamos, iluminado pelo clarão da lâmpada, único farol dentro da noite
Essas evocações torvelinhantes e confusas nunca duravam mais que alguns segundos; muitas vezes, minha breve incerteza do local em que me achava não permitia tampouco distinguir umas das outras as diversas suposições que a constituíam, da mesma forma que não isolamos, ao ver um cavalo correndo, as posições sucessivas que nos mostra o cinetoscópio.[7] Mas, ora este, ora aquele, tinha eu revisto os quartos que habitara em minha vida, e acabava por lembrar-me de todos nas longas cismas que se seguiam ao despertar: quartos de inverno onde, quando se está deitado, a gente[8] aconchega a cabeça em um ninho tecido com as coisas mais disparatadas, um canto do travesseiro, o alto das cobertas, uma ponta de xale, a borda do leito e um número dos Débates Roses,[9] coisas que afinal consolidamos muito bem, conforme a técnica dos pássaros, calcando-as indefinidamente; quartos onde, por um tempo glacial, todo o prazer consiste em nos sentirmos separados do exterior (como a andorinha do mar, que faz o ninho ao fundo de um subterrâneo, no calor da terra), e onde, estando o fogo aceso toda a noite na lareira, dormimos sob um grande manto de ar quente e fumoso, atravessado pelo fulgurar dos tições que se avivam, espécie de alcova impalpável, de quente caverna aberta no seio do próprio quarto, zona ardente e móvel em seus contornos térmicos, arejada por sopros que nos refrescam o rosto e vêm dos cantos, das partes próximas às janelas ou afastadas do fogo e que esfriaram — quartos de verão, onde se gosta de estar unido à noite morna, onde o luar apoiado nos postigos entreabertos lança até o pé do leito sua escada mágica, onde se dorme quase ao ar livre, como a ave balançada pela brisa na ponta de um ramo — às vezes o quarto Luís xvi, tão alegre que nem mesmo na primeira noite me sentira muito infeliz e onde as colunetas que sustentavam levemente o teto se afastavam com tanta graça para mostrar e reservar o local do leito — às vezes, ao contrário, era aquele outro, pequeno e tão elevado de teto, aberto em forma de pirâmide até a altura de dois andares e parcialmente forrado de acaju, onde, desde o primeiro segundo, ficava moralmente intoxicado pelo odor desconhecido do vetiver, certo da hostilidade dos cortinados roxos e da insolente indiferença da pêndula que taramelava alto como se eu ali não estivesse; onde um estranho e implacável espelho de pés quadrangulares, barrando obliquamente um dos ângulos da peça, ocupava, à força, na suave plenitude de meu costumeiro campo visual, um lugar que não estava previsto; onde meu pensamento, esforçando-se durante horas por se deslocar, por se expandir em altura, a fim de tomar exatamente a forma do quarto e encher até o alto seu gigantesco funil, passava noites terríveis, enquanto me achava estendido no leito, com os olhos erguidos, os ouvidos ansiosos, as narinas rebeldes, o coração palpitante: até que o hábito mudasse a cor dos cortinados, emudecesse a pêndula, insuflasse piedade ao espelho oblíquo e cruel, dissimulasse, já que não o extinguia de todo, o cheiro do vetiver, e diminuísse notavelmente a altura aparente do teto.[10] O hábito! Camareiro hábil, mas bastante moroso, que começa por deixar sofrer nosso espírito durante semanas em uma instalação provisória; mas que, apesar de tudo, é-lhe grato encontrar, pois que, sem o hábito e reduzido a seus próprios recursos, seria nosso espírito incapaz de nos tornar habitável qualquer alojamento.
Sem dúvida que eu estava agora bem desperto, meu corpo dera uma última volta e o bom anjo da certeza imobilizara tudo em redor de mim, deitara-me sob minhas cobertas, em meu quarto, e pusera aproximadamente em seu lugar, no escuro, minha cômoda, minha mesa de trabalho, minha lareira, a janela da rua e as duas portas. Mas, embora soubesse que não me achava nesses quartos, cuja presença a ignorância do despertar me apresentara ao menos como possível, sem todavia oferecer-me sua imagem distinta, a verdade é que me fora dado um impulso à memória; em geral, não tentava adormecer logo em seguida; passava a maior parte da noite a recordar minha vida de outrora, em casa de minha tia-avó em Combray, em Balbec, em Paris, em Doncières, em Veneza, em outras partes ainda, a recordar os lugares, as pessoas que ali conhecera, tudo o que delas tinha visto, o que me haviam contado a seu respeito.
Todos os dias em Combray, desde o final da tarde, muito antes do momento em que deveria ir para a cama e ficar, sem dormir, longe de minha mãe e de minha avó, o quarto de dormir tornava-se o ponto fixo e doloroso de minhas preocupações. Bem se haviam lembrado, para distrair-me nas noites em que me achavam com um ar muito melancólico, de presentear-me com uma lanterna mágica, com a qual cobriam minha lâmpada, enquanto não chegava a hora de jantar; a lanterna, à maneira dos primeiros arquitetos e mestres vidraceiros da idade gótica, sobrepunha, à opacidade das paredes, impalpáveis criações, sobrenaturais aparições multicores, onde se pintavam legendas como em um vitral vacilante e efêmero. Mas com isso ainda mais crescia minha tristeza, pois a simples mudança de iluminação destruía o hábito que eu tinha de meu quarto, e graças ao qual este se me tornava suportável, descontado o suplício de ir deitar-me. Agora já não o reconhecia e sentia-me inquieto como em um quarto de hotel ou de chalé, aonde tivesse chegado pela primeira vez, ao desembarcar de um trem.
continua na página 22...
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Leia também:
Volume 1
No Caminho de Swann (Durante muito tempo - a)
Volume 2
Volume 3
Volume 4
Volume 5
Volume 6
Volume 7
[1] Proust dedica o primeiro volume de sua obra ao diretor do jornal Le Figaro, em cujo suplemento literário ele publicara alguns de seus pastiches. O herói do livro passará muito tempo esperando a publicação de um artigo nesse jornal. [n. e.]
[2] Referência ao livro homônimo, publicado em 1875, por François Mignet. [n. e.]
[3] Os primeiros parágrafos do livro contêm uma oscilação constante entre a primeira e a terceira pessoa. [n. e.]
[4] Passagem que prefigura a natureza das relações amorosas do herói do livro. [n. e.]
[5] Introdução musical dos quartos nos quais o herói dormirá. [n. e.]
[6] O Em busca do tempo perdido inicia-se, assim, com a descrição fantástica da experiência
do limiar entre vigília e sono, realidade e lembrança (cf. posfácio de Jeanne-Marie
Gagnebin). [n. e.]
[7] Aparelho criado por Edison, em 1894, que permitia a visualização individual de
fotografias em movimento, um dos últimos precursores do cinema. [n. e.]
[8] O livro começa a alçar voo com a mistura entre lembranças pessoais do narrador e
uma série de frases que formulam o conteúdo comum de nossas experiências. Dito de
outra maneira, ele toca justamente na junção entre o que há de mais pessoal com o que é
partilhado conosco. [n. e.]
[9] Além da edição matinal, a partir de 1893, o Journal de Débats passou a trazer uma
edição noturna, em papel cor-de-rosa. [n. e.]
[10] A sequência de quartos corresponde aos principais quartos nos quais o herói
adormeceu (ou tentou adormecer) durante sua vida. [n. e.]
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