sexta-feira, 6 de janeiro de 2023

Marcel Proust - O Caminho de Guermantes (1a.Parte - O chilreio matinal)

em busca do tempo perdido

volume III
O Caminho de Guermantes


Primeira Parte


O chilreio matinal dos pássaros soava sem graça a Françoise. Qualquer palavra das "criadinhas" lhe dava sobressaltos; incomodada pelos seus passos, indagava-se quanto a eles; é que tínhamos mudado de casa. É claro que os criados não perturbavam menos na nossa casa antiga; mas ela os conhecia; de suas idas e vindas, Françoise fizera uma coisa amigável. Agora, até ao silêncio ela prestava uma atenção dolorosa. E, como o nosso novo bairro parecia tão calmo quanto era ruidoso o bulevar para o qual se abria a nossa casa antiga, a canção (audível mesmo de longe, quando é fraca feito um motivo de orquestra) de um homem que passava fazia subir lágrimas aos olhos de Françoise exilada. Assim, se eu zombara dela, que, desolada por ter de deixar um prédio onde éramos "tão estimados por todos", fizera as malas chorando, conforme os ritos de Combray, e declarando superior a todas as casas possíveis àquela que nos pertencera; em compensação, eu, que assimilava tão dificilmente as novas coisas como facilmente abandonava as antigas, reconciliei-me com a nossa velha criada quando vi que a instalação em uma casa onde ela não recebera do porteiro, que ainda não nos conhecia, os sinais de consideração necessários à sua boa nutrição moral, deixara-a mergulhada num estado próximo ao definhamento. Somente ela poderia me compreender; certo, não seria o seu pequeno lacaio quem o faria; para ele, que era tampouco de Combray quanto possível, mudar de casa, morar em outro bairro, era como tirar férias, onde a novidade das coisas conferia o mesmo descanso que se a gente tivesse ido viajar; ele se considerava no campo; e uma coriza lhe deu, como um "golpe de ar" que se pega num vagão de trem em que a janela fecha com defeito, a impressão deliciosa de que tinha visto o campo; a cada espirro ele se regozijava por ter achado um lugar tão chique, pois sempre desejara patrões que viajassem muito. Portanto, sem ligar para ele, eu ia direto a Françoise; como caçoara de suas lágrimas diante de uma partida que me deixara indiferente, ela se mostrou fria ante a minha tristeza, visto que partilhava dela. O egoísmo dos nervosos cresce com a sua "sensibilidade"; não podem suportar, da parte dos outros, a exibição dos incômodos que cada vez mais os preocupam em si próprios. Françoise, que não deixava passar em branco o mais leve dos mal-estares que sentia, desviava o rosto se eu sofria, para que eu não tivesse o prazer de ver lamentado o meu sofrimento, e nem mesmo reparado. Assim procedeu, desde que pretendi lhe falar de nossa nova casa. De resto, tendo de ir dali a dois dias buscar roupas esquecidas na casa que acabáramos de deixar, ao passo que eu, devido à mudança, ainda estava com temperatura e, semelhante a uma sucuri que acabasse de engolir um boi, sentia-me penosamente empanturrado por um enorme baú que minha vista precisava "digerir". Françoise, com a infidelidade das mulheres, voltou dizendo que julgara ficar sufocada em nosso antigo bulevar, que para ir até lá se sentira totalmente perdida, que nunca vira escadarias tão desconfortáveis, que não voltaria a morar lá nem "por um império" e podiam lhe dar milhões de hipóteses gratuitas e que tudo (quer dizer, o que se referia à cozinha e aos corredores) estava muito mais bem agenciado em nossa nova casa. Ora, é tempo de dizer que esta e nela tínhamos ido morar porque minha avó não estava passando bem, razão que lhe escondemos, e tinha necessidade de ar mais puro formava um apartamento nas dependências do palácio de Guermantes.

Na idade em que os Nomes, ofertando-nos a imagem do incognoscível que neles derramamos, no mesmo instante em que também designam para nós um lugar real, nos forçam desse modo a identificar um ao outro, a ponto de irmos buscar numa cidade uma alma que ela não pode conter mas que nós já não temos o poder de expulsar de seu nome, não é somente às cidades e aos rios que eles atribuem uma individualidade, como o fazem as pinturas alegóricas, não é somente ao universo físico que matizam de diferenças, que povoam com o maravilhoso, é também o universo social: então, cada castelo, cada mansão ou palácio famoso possui sua dama ou sua fada, como as florestas os seus gênios e as águas as suas divindades. Às vezes, oculta no fundo de seu nome, a fada se transforma ao sabor da vida de nossa imaginação, que a nutre; foi assim que a atmosfera em que a Sra. de Guermantes existia dentro de mim, depois de, durante muitos anos, não ter passado do reflexo de um vidro de lanterna mágica e de um vitral de igreja, começou a esmaecer quando sonhos bem diversos a impregnaram da umidade espumosa das torrentes.

Entretanto, a fada enfraquece se nos aproximamos da pessoa real a que seu nome corresponde, pois o nome, então, passa a refletir essa pessoa e ela não contém coisa alguma da fada; esta pode renascer, caso nos afastemos da pessoa. Mas, se permanecermos junto da pessoa, a fada morre definitivamente e com ela o nome, como aquela família de Lusignan que devia extinguir-se no dia em que desaparecesse a fada Melusina. Então o Nome, sob cujos retoques sucessivos poderíamos acabar por encontrar o belo retrato de uma estranha que jamais tenhamos conhecido, não passa da simples fotografia de identidade a que recorremos para saber se conhecemos, se devemos saudar ou não uma pessoa que passa. Mas que uma sensação de um ano de outrora como esses instrumentos de música registradores que guardam o som e o estilo dos diferentes artistas que os tocaram permita à nossa memória fazer-nos ouvir esse nome com o timbre especial que tinha então para o nosso ouvido e, nesse nome na aparência não mudado, sentimos a distância que separa uns dos outros os sonhos que significaram sucessivamente para nós as suas sílabas idênticas. Por um momento, do gorjeio reouvido que ele possuía em certa primavera antiga, podemos extrair, como dos pequenos tubos de que nos servimos para pintar, o matiz adequado, esquecido, misterioso e fresco dos dias que julgáramos recordar, quando, como os maus pintores, dávamos a todo o nosso passado estendido sobre a mesma tela os tons convencionais e semelhantes da memória voluntária. Ora, pelo contrário, cada um dos momentos que o compuseram empregava, para uma criação original, numa única harmonia, as cores de antigamente que já não conhecemos e que, por exemplo, ainda me deslumbram de repente se, graças a um acaso, o nome de Guermantes, tendo retomado por um momento, após tantos anos, o som, tão diferente do de hoje, que tinha para mim no dia do casamento da Srta. Percepied, me traz ele de novo esse tom de malva tão doce, por demais brilhante e novo, com que se aveludava a túmida gravata da jovem duquesa, e, como uma pervinca inatingível, reflorida, seus olhos ensolarados de um sorriso azul. E o nome de Guermantes desse tempo é também como um desses balõezinhos em que se encerrou oxigênio ou um outro gás: quando chego a rebentá-lo, a extrair dele o que ele contém, respiro o ar de Combray daquele ano, daquele dia, mesclado a um aroma de espinheiros alvos agitados pelo vento da esquina da praça, precursor da chuva, que sucessivamente expulsava o sol, deixava-o estender-se sobre o tapete de lã vermelha da sacristia e revestir-se de uma carnadura brilhante, quase rósea, de gerânio, e dessa doçura, por assim dizer wagneriana, na alegria, que soma tanta nobreza à festividade. Porém, mesmo fora dos raros minutos como esses, em que subitamente sentimos a entidade original vibrar e readquirir sua forma e cinzeladura no seio das sílabas mortas de hoje, se, no turbilhão vertiginoso da vida atual, onde só têm um emprego inteiramente prático, os nomes perderam todo o colorido, como um pião prismático a girar muito depressa e que parece cinzento, em compensação quando, num devaneio, refletimos, procuramos, para retornar ao passado, diminuir, suspender o movimento perpétuo em que somos arrastados, aos poucos vemos de novo aparecer, justapostos, mas inteiramente distintos uns dos outros, os matizes que no decurso de nossa existência nos ofereceu sucessivamente um mesmo nome.

Sem dúvida, não sei que forma se recortava a meus olhos ante esse nome de Guermantes, quando minha ama que evidentemente ignorava, tanto quanto eu agora, em honra de quem fora composta me ninava com esta velha canção: Glória à Marquesa de Guermantes, ou quando, alguns anos depois, o velho marechal de Guermantes, enchendo de orgulho a minha criada, parava nos Champs-Élysées dizendo: "Que belo menino!" e tirava de uma bomboneira de bolso uma pastilha de chocolate. Esses anos de minha primeira infância já não estão em mim, são-me exteriores, só posso apreendê-los, como a tudo que ocorreu antes do nosso nascimento, pelo relato alheio. Porém, mais tarde, encontro sucessivamente na duração em mim desse mesmo nome sete ou oito figuras diferentes; as primeiras eram mais belas: pouco a pouco o meu sonho, forçado pela realidade a abandonar uma posição insustentável, se entrincheirava de novo um pouco mais aquém, até ser obrigado a recuar ainda mais. E, ao mesmo tempo que a Sra. de Guermantes, transformava sua casa, igualmente provinda desse nome que fecundava ano após ano essa ou aquela palavra ouvida que modificava os meus sonhos, essa casa os refletia em suas próprias pedras, que se tornavam reverberantes como a superfície de uma nuvem ou de um lago. Um torreão sem espessura, que não passava de uma faixa de luz alaranjada e de cujo cimo o fidalgo e sua dama decidiam sobre a vida e a morte de seus vassalos, cedera o posto bem no extremo desse "lado de Guermantes" onde, por tantas e tão belas tardes, eu seguia com meus pais o curso do Vivonne - àquela terra torrentosa em que a duquesa me ensinava a pescar truta e a conhecer o nome das flores de cachos cor-de-violeta e avermelhadas que decoravam os muros baixos dos cercados vizinhos; depois fora a terra hereditária, o domínio poético, onde essa raça altiva dos Guermantes, como uma torre amarelada e florida que atravessa as idades, já se elevava sobre a França, enquanto o céu ainda estava vazio ali onde mais tarde deveria aparecer a Norte-Dame de Paris e a Norte-Dame de Chartres; quando, no alto da colina de Laon, a nave da catedral ainda não pousara como a Arca da Aliança no cimo do monte Ararat, cheia de patriarcas e de Justos ansiosamente debruçados às janelas para ver se já se apaziguara a cólera de Deus, e repleta de espécies vegetais que se multiplicarão sobre a Terra, transbordante de animais que se escapam até pelas torres, em cujo telhado passeiam pacificamente os bois contemplando do alto as planícies da Champagne; quando o viajante que deixava Beauvais à tardinha ainda não via seguirem-no, a girar, desdobradas sobre a tela de ouro do poente, as alas negras e ramificadas da catedral. Estava esse Guermantes, como o cenário de um romance, uma paisagem imaginária que eu mal podia me afigurar e sentia maior desejo de descobrir, encravado no meio de terras e estradas verdadeiras que de súbito se impregnariam de particularidades heráldicas, a duas léguas de uma estação de trem; lembrava-me eu de nomes das localidades vizinhas como se elas estivessem situadas ao pé do Parnaso ou do Hélicon, e elas se me afiguravam preciosas como as condições materiais em ciência topográfica da produção de um fenômeno misterioso. Eu revia os brasões que estão pintados nos envasamentos dos vitrais de Combray, e cujos quartéis se haviam enchido, através dos séculos, de todos os senhorios que, por aquisições ou casamentos, aquela casa ilustre havia feito voarem para si de todos os cantos da Alemanha, da Itália e da França: terras imensas do Norte, cidades poderosas do Sul, todas vindas a se juntar e compor em Guermantes e, perdendo sua materialidade, inscrever alegoricamente seu torreão de sinople ou seu castelo de prata em seu campo de azul. Ouvira falar das célebres tapeçarias de Guermantes e via-as, azuis e medievais, um tanto espessas, destacarem-se como uma nuvem sobre o nome amarantino e legendário, à beira da antiga floresta onde Childeberto caçou seguidamente; e esse extremo fundo e misterioso de terras, essa distância de séculos, parecia-me que penetraria em seus segredos, assim como numa viagem, bastando-me para isso aproximar-me por um instante, em Paris, da Sra. de Guermantes, suserana do lugar e dama do lago, como se seu rosto e suas palavras devessem ter a posse do encanto local dos bosques e das margens, e as mesmas particularidades seculares da velha usança de seus arquivos. Então, porém, conhecera SaintLoup; ele me ensinara que o castelo só se chamava Guermantes desde o século XVII, quando sua família o adquirira. Até então, ela residira nas vizinhanças, e seu título não provinha daquela região. A aldeia de Guermantes recebera esse nome do castelo junto ao qual fora erguida e, para que ela não lhe arruinasse as perspectivas, uma servidão, que permanecia em vigor, regulava o traçado das ruas e limitava a altura das casas. Quanto às tapeçarias, elas eram de Boucher, compradas no século XIX por um Guermantes amador, e estavam colocadas ao lado de medíocres quadros de caça que ele próprio havia pintado, num salão bem ordinário enfeitado de pelúcia e andrinopla. Por tais revelações, Saint-Loup introduziria elementos estranhos ao nome de Guermantes no castelo, elementos que não mais me permitiram continuar a extrair, apenas da sonoridade das sílabas, a fábrica das construções. Então, no fundo desse nome se desfizera o castelo refletido em seu lago, e o que me surgira ao redor da Sra. de Guermantes como sua residência fora o seu palácio de Paris, o palácio de Guermantes, límpido como o seu nome, pois nenhum elemento material e opaco lhe vinha ali interromper e cegar a transparência. Como a igreja não significa apenas o templo, mas também a assembléia de fiéis, esse palácio de Guermantes compreendia todos aqueles que partilhavam da vida da duquesa; mas os íntimos, a quem jamais vira, não passavam para mim de nomes célebres e poéticos, e, conhecendo unicamente pessoas que também não eram mais que nomes, outra coisa não faziam senão engrandecer e proteger o mistério da duquesa, estendendo à sua volta um enorme halo que quando muito se fazia mais rarefeito.

Nas festas que ela dava, como eu não imaginava para os convidados nenhum corpo, nenhum bigode, botina alguma, nenhuma frase pronunciada que fosse banal, ou mesmo original de um modo humano e racional, aquele turbilhão de nomes, introduzindo menos matéria do que o faria um banquete de fantasmas ou um baile de espectros, ao redor daquela estatueta de porcelana de Saxe que era a Sra. de Guermantes, conservava uma transparência de vitrine ao seu castelo de vidro. Depois, quando Saint-Loup me contou anedotas relativas ao capelão e aos jardineiros de sua prima, o palácio de Guermantes se tornou como o poderia ter sido outrora algum Louvre uma espécie de castelo cercado, em pleno centro de Paris, por suas terras hereditariamente possuídas, em virtude de um direito antigo estranhamente sobrevivo, e nas quais ela exercesse ainda privilégios feudais. Mas esta última residência ela mesma se evaporara quando fomos morar, tão perto da Sra. de Villeparisis, num dos apartamentos vizinhos ao da Sra. de Guermantes, em uma ala do seu palácio. Era uma dessas velhas moradias, como talvez ainda existam, e nas quais o pátio principal seja por aluviões trazidas pela maré montante da democracia, seja por legados de tempos mais antigos em que os diversos ofícios vinham se agrupar em torno do senhor tinha muitas vezes, dos lados, balcões, oficinas, e até alguma loja de sapateiro ou de alfaiate, como as que se vêem apoiadas nos flancos das catedrais e que a estética dos engenheiros não pôde arejar, ou um porteiro remendão que criava galinhas e cultivava flores e, no fundo, no alojamento que "fazia de palácio", uma "condessa" que, quando saía em sua velha caleça tirada por dois cavalos, exibindo sobre o chapéu algumas capuchinhas que pareciam fugidas do jardinzinho da portaria (tendo ao lado do cocheiro um lacaio que descia para entregar cartões em cada residência aristocrática do bairro), enviava indistintamente sorrisos e acenos com a mão aos filhos do porteiro e aos locatários burgueses que passavam naquele instante e que ela confundia em sua desdenhosa afabilidade e igualitária arrogância.

Na casa em que tínhamos ido morar, a grande dama do fundo do pátio era uma duquesa, elegante e ainda jovem. Tratava-se da Sra. de Guermantes. E, graças a Françoise, depressa consegui informações sobre o palácio. Pois os Guermantes (que muitas vezes Françoise designava pelas expressões "lá embaixo", "os de baixo") eram sua preocupação constante desde a manhã, quando, lançando para o pátio um olhar proibido, irresistível e furtivo, enquanto penteava mamãe, dizia:

- Vejam, duas freiras; certamente vão lá embaixo ou: - Oh, que belos faisões na janela da cozinha, nem é preciso indagar de onde vêm, com certeza o duque andou caçando até à noite, quando, ao me entregar minha roupa de dormir, se ouvia o som de um piano, um eco de cançoneta, deduzia: - Têm convidados os de baixo; estão festejando -; e, no seu rosto regular, sob os cabelos agora brancos, um sorriso de juventude, animado e sóbrio, colocava por um instante cada um de seus traços no devido lugar, harmonizava-os numa ordem requintada e sutil, como antes de uma contradança.



continua na página 06...
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O Caminho de Guermantes (Prefácio)
O Caminho de Guermantes (1a.Parte - O chilreio matinal)
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