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Estudos de Costumes
- Cenas da Vida Privada
Memórias de duas jovens esposas
SEGUNDA PARTE
LVII – A CONDESSA DE L’ESTORADE AO CONDE L’ESTORADE
Estudos de Costumes
- Cenas da Vida Privada
Memórias de duas jovens esposas
SEGUNDA PARTE
LVII – A CONDESSA DE L’ESTORADE AO CONDE L’ESTORADE
Do Chalé, 7 de agosto
Meu amigo, leva as crianças e faze sem mim a viagem à Provença; fico junto de
Luísa, que só tem poucos dias de vida, devo-me a ela e ao seu marido que, segundo
creio, enlouquecerá.
Depois de escrever o bilhete que conheces e que me fez voar, acompanhada dos
médicos, a Ville-d’Avray, não me separei dessa mulher encantadora e não te pude
escrever, pois é esta a décima quinta noite que passo com ela.
Ao chegar, encontrei-a com Gastão, bela e enfeitada, com a fisionomia risonha,
feliz. Que mentira sublime! Essas duas belas crianças tiveram uma explicação.
Durante um momento, eu, como Gastão, fui enganada por aquela audácia, mas
Luísa apertou-me a mão e me disse ao ouvido:
— É preciso iludi-lo, estou morrendo.
Um frio glacial envolveu-me ao sentir-lhe as mãos ardendo e as faces vermelhas.
Aplaudi-me por minha prudência. Eu tivera a ideia, para não assustar ninguém, de
dizer aos médicos que ficassem passeando pelos bosques até que os mandasse
chamar.
— Deixa-nos — disse ela a Gastão. — Duas mulheres que se reveem após cinco
anos de separação têm muitos segredos a se confiar, e Renata tem, sem dúvida,
alguma confidência a fazer-me.
Uma vez a sós, ela se atirou em meus braços sem poder conter as lágrimas.
— Mas que há? — perguntei. — Em todo caso, trago-te o primeiro cirurgião e o
primeiro médico do hospital, com Bianchon; enfim, são quatro.
— Oh! Se eles puderem salvar-me, se ainda for tempo, que venham! — exclamou
ela. — O mesmo sentimento que me induzia a morrer induz-me agora a viver.
— Mas que fizeste?
— Tornei-me tísica em último grau, em poucos dias.
— E como?
— Tinha suores noturnos e corria para junto do açude, no orvalho. Gastão julga
me resfriada, e eu estou morrendo.
— Manda-o a Paris; eu mesma vou buscar os médicos — disse, correndo como uma insensata para o lugar onde os tinha deixado.
— Manda-o a Paris; eu mesma vou buscar os médicos — disse, correndo como uma insensata para o lugar onde os tinha deixado.
Infelizmente, meu amigo, feita a conferência, nenhum desses sábios deu a
menor esperança, todos acham que, com a queda das folhas, Luísa morrerá. A
constituição dessa querida criatura favoreceu singularmente o seu intento: tinha
tendências para a doença que ela acelerou; teria podido viver muito tempo, mas em
poucos dias tornou tudo irreparável. Não te direi minhas impressões ao ouvir essa
sentença perfeitamente justificada. Sabes que vivi tanto por Luísa como por mim.
Fiquei aniquilada, e não pude reconduzir os cruéis doutores. Com o rosto banhado
em lágrimas, passei não sei quanto tempo mergulhada numa dolorosa meditação.
Uma voz celestial tirou-me do meu entorpecimento com estas palavras: “Então,
estou condenada!”, ditas por Luísa, que pousava a mão no meu ombro. Fez-me
levantar e levou-me para o seu pequeno salão.
— Não me deixes mais — pediu-me com um olhar suplicante —, não quero ver
desesperos em torno de mim; sobretudo quero enganá-lo, a ele, e terei forças para
isso. Sinto-me cheia de energia, de mocidade, e saberei morrer de pé. Quanto a
mim, não me queixo, morro como tantas vezes desejei: aos trinta anos, jovem, bela,
íntegra. Quanto a ele, vejo que o faria infeliz. Deixei-me prender nas redes do meu
amor, como uma corça que se estrangula ao se impacientar por se ver presa: das
duas, sou eu a corça... e muito selvagem. Meus injustificados ciúmes já lhe
martelaram o coração de modo a fazê-lo sofrer. No dia em que minhas suspeitas se
topassem com a indiferença que é o prêmio que o ciúme atrai, pois bem... eu
morreria. Estou quite com a vida. Há seres que têm sessenta anos de serviço nos
registros do mundo e que de fato não viveram dois anos, e inversamente eu pareço
ter apenas trinta anos, mas na realidade tenho sessenta anos de amor. Assim, pois,
para mim e para ele, este desenlace é feliz. Quanto a nós duas é uma outra história:
tu perdes uma irmã que te ama, e essa perda é irreparável. Somente tu, aqui, deves
chorar minha morte. Minha morte — continuou ela, após uma longa pausa durante
a qual eu a vi através de um véu de lágrimas — traz consigo uma cruel lição. Meu
querido doutor de saias, tens razão: o casamento não pode ter como base a paixão,
nem mesmo o amor. Tua vida é nobre e bela, caminhaste na tua via, querendo cada
vez mais ao teu Luís, ao passo que, começando a vida conjugal com um ardor
extremo, este não pode senão decrescer. Errei duas vezes, e duas vezes a Morte veio
esbofetear a minha felicidade com a sua mão descamada. Tirou-me o mais nobre e o
mais dedicado de todos os homens; hoje, a magra rapta-me ao mais belo, ao mais
sedutor, ao mais poético dos maridos deste mundo. Mas, alternadamente, terei
conhecido o belo ideal da alma e o da forma. Em Felipe, a alma dominava o corpo e
o transformava; em Gastão o coração, o espírito e a beleza rivalizam. Morro
adorada, que posso mais querer?... Reconciliar-me com Deus, que talvez
negligenciei um pouco, e para o qual me dirigirei cheia de amor, pedindo-lhe que
me restitua um dia, no céu, aqueles dois anjos. Sem eles, o paraíso para mim seria
um deserto. Meu exemplo seria fatal; sou uma exceção. Como é impossível
encontrar Felipes ou Gastões, a lei social nisto está de acordo com a lei natural.
Sim, a mulher é um ser fraco que deve, ao casar-se, fazer inteiro sacrifício da sua
vontade ao homem, que em troca deve fazer-lhe o sacrifício do seu egoísmo. As
revoltas e os prantos que o nosso sexo ergueu e divulgou nestes últimos tempos,
com tanto estridor, são tolices que nos tornam merecedoras do qualificativo de
crianças, que tantos filósofos nos deram.
Luísa continuou a falar assim, com voz meiga que lhe conheces, dizendo as mais
sensatas coisas, do modo mais elegante, até que Gastão voltou trazendo de Paris a
cunhada, com as duas crianças e a ama inglesa, que Luísa lhe pedira, fosse buscar.
— Eis os meus lindos algozes — disse ela ao ver os sobrinhos. — Não era natural
que me enganasse? Como se parecem com o tio!
Foi encantadora com a sra. Gastão senior, a quem pediu que se considerasse no
chalé como na sua própria casa, e fez-lhe as honras da casa com essas maneiras à
Chaulieu que possui no mais alto grau. Escrevi imediatamente ao duque e à
duquesa de Chaulieu, ao duque de Rhétoré e ao duque de Lenoncourt-Chaulieu,
bem como à Madalena. Fiz bem. No dia seguinte, cansada de tanto esforço, Luísa
não pôde dar seu passeio; nem sequer se levantou, a não ser para assistir ao jantar.
Madalena de Lenoncourt, os dois irmãos e a mãe vieram à noite. A frieza, que o
casamento de Luísa pusera entre ela e sua família, dissipou-se. A partir dessa noite,
os dois irmãos e o pai de Luísa têm vindo todas as manhãs a cavalo, e as duas
duquesas passam no chalé todas as noites. A morte aproxima tanto quanto separa,
faz com que as paixões mesquinhas emudeçam. Luísa é sublime de graça, de razão,
de seduções, de espírito e de sensibilidade. Até o último momento, evidencia esse
bom gosto que a tornou tão notável e nos galardoou com os tesouros desse espírito,
que fazia dela uma das rainhas de Paris.
— Quero estar bonita até no meu caixão — disse-me com aquele sorriso que é só
dela, ao recolher-se ao leito para nele deperecer nestes últimos quinze dias.
No seu quarto não há vestígios de doença: as poções, os tubos de borracha, toda
a aparelhagem médica está oculta.
— Não é que estou tendo uma bela morte? — dizia ela ontem ao cura de Sèvres, a
quem deu sua confiança.
Nós desfrutamos dela como avarentos. Gastão, que tem sido preparado por
tantas inquietações e tantas horríveis evidências, tem-se mostrado corajoso, mas
está atingido: não me admirarei se o vir seguir de perto a esposa. Ontem, à margem
do açude, ele me disse:
— Devo ser o pai dessas duas crianças. — E mostrava-me a cunhada que fazia os
sobrinhos passear. — Mas, embora nada pretenda fazer para me ir deste mundo,
prometa-me ser uma segunda mãe para eles e consentir que seu marido aceite a
tutela oficial, que eu lhe confiarei juntamente com minha cunhada.
Disse isso sem a menor ênfase e como um homem que se sente perdido. Sua
fisionomia responde com sorriso aos sorrisos de Luísa, e somente eu não me
engano com esse jogo. Ele mostra uma coragem igual à dela. Luísa quis ver o
afilhado; mas não me desgostei de ele estar na Provença, pois ela poderia querer
fazer-lhe algumas liberalidades que muito me embaraçariam.
Adeus, meu amigo.
25 de agosto (dia do santo de seu nome)
Ontem à noite, durante alguns momentos, Luísa delirou; mas foi um delírio verdadeiramente elegante, que demonstra que as pessoas de espírito não enlouquecem do mesmo modo que os burgueses e os tolos. Cantou com voz abafada algumas árias italianas dos Puritanos, da Sonâmbula e de Moisés.[1] Estávamos todos silenciosos em torno do leito, e todos, inclusive o seu irmão Rhétoré, ficamos com os olhos cheios de lágrimas, tão claro estava que a sua alma assim se evolava. Não nos via mais! Nos atrativos daquele canto fraco e de uma meiguice divina havia ainda toda a sua graça. A agonia começou à noite. Acabo, às sete horas da manhã, de a levantar; ela recuperou algumas forças e quis sentar-se junto à janela; pediu a mão de Gastão... Depois, meu amigo, o anjo mais encantador que poderemos ver neste mundo nada mais nos deixou que os seus despojos. Tendo recebido, na véspera, a extrema-unção, sem que Gastão o soubesse, pois durante a terrível cerimônia estivera a dormir um pouco, ela me exigira que lhe lesse em francês o De profundis,[2] enquanto se conservava assim frente a frente com a bela natureza que para si própria criara. Mentalmente ela repetia as palavras e apertava as mãos do marido, ajoelhado do outro lado da poltrona.
26 de agosto
Tenho o coração despedaçado. Acabo de vê-la no seu sudário, onde está pálida com tonalidades violeta. Oh! Quero ver os meus filhos! Os meus filhos! Traze-me os meus filhos a meu encontro.
Paris, 1841.
continua pág 387...
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[1] Os puritanos, A sonâmbula e Moisés: óperas italianas, com música de Bellini as duas primeiras, de Rossini
a terceira.
[2] De Profundis: o Salmo CXXIX na tradução latina da Vulgata, incluído no ofício dos mortos.
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A Comédia Humana/Cenas da Vida Privada: Memórias de duas jovens esposas (57)
[2] De Profundis: o Salmo CXXIX na tradução latina da Vulgata, incluído no ofício dos mortos.
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Honoré de Balzac (Tours, 20 de maio de 1799 — Paris, 18 de agosto de 1850) foi um produtivo escritor francês, notável por suas agudas observações psicológicas. É considerado o fundador do Realismo na literatura moderna.[1][2] Sua magnum opus, A Comédia Humana, consiste de 95 romances, novelas e contos que procuram retratar todos os níveis da sociedade francesa da época, em particular a florescente burguesia após a queda de Napoleão Bonaparte em 1815.
Entre seus romances mais famosos destacam-se A Mulher de Trinta Anos (1831-32), Eugènie Grandet (1833), O Pai Goriot (1834), O Lírio do Vale (1835), As Ilusões Perdidas (1839), A Prima Bette (1846) e O Primo Pons (1847). Desde Le Dernier Chouan (1829), que depois se transformaria em Les Chouans (1829, na tradução brasileira A Bretanha), Balzac denunciou ou abordou os problemas do dinheiro, da usura, da hipocrisia familiar, da constituição dos verdadeiros poderes na França liberal burguesa e, ainda que o meio operário não apareça diretamente em suas obras, discorreu sobre fenômenos sociais a partir da pintura dos ambientes rurais, como em Os Camponeses, de 1844. Além de romances, escreveu também "estudos filosóficos" (como A Procura do Absoluto, 1834) e estudos analíticos (como a Fisiologia do Casamento, que causou escândalo ao ser publicado em 1829).
Balzac tinha uma enorme capacidade de trabalho, usada sobretudo para cobrir as dívidas que acumulava. De certo modo, suas despesas foram a razão pela qual, desde 1832 até sua morte, se dedicou incansavelmente à literatura. Sua extensa obra influenciou nomes como Proust, Zola, Dickens, Dostoyevsky, Flaubert, Henry James, Machado de Assis, Castelo Branco e Ítalo Calvino, e é constantemente adaptada para o cinema. Participante da vida mundana parisiense, teve vários relacionamentos, entre eles um célebre caso amoroso, desde 1832, com a polonesa Ewelina Hańska, com quem veio a se casar pouco antes de morrer.
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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (cip)
(Câmara Brasileira do Livro, sp, Brasil)
Balzac, Honoré de, 1799-1850.
A comédia humana: estudos de costumes: cenas da vida privada / Honoré de Balzac; orientação, introduções e notas de Paulo Rónai; tradução de Vidal de Oliveira; 3. ed. – São Paulo: Globo, 2012.
(A comédia humana; v. 1) Título original: La comédie humaine ISBN 978-85-250-5333-1 0.000 kb; ePUB
1. Romance francês i. Rónai, Paulo. ii. Título. iii. Série.
12-13086 cdd-843
Índices para catálogo sistemático:
1. Romances: Literatura francesa 843
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Leia também:
"Chat-Qui-Pelote"
A Comédia Humana / Cenas da Vida Privada - Ao "Chat-Qui-Pelote" (1)
Entre seus romances mais famosos destacam-se A Mulher de Trinta Anos (1831-32), Eugènie Grandet (1833), O Pai Goriot (1834), O Lírio do Vale (1835), As Ilusões Perdidas (1839), A Prima Bette (1846) e O Primo Pons (1847). Desde Le Dernier Chouan (1829), que depois se transformaria em Les Chouans (1829, na tradução brasileira A Bretanha), Balzac denunciou ou abordou os problemas do dinheiro, da usura, da hipocrisia familiar, da constituição dos verdadeiros poderes na França liberal burguesa e, ainda que o meio operário não apareça diretamente em suas obras, discorreu sobre fenômenos sociais a partir da pintura dos ambientes rurais, como em Os Camponeses, de 1844. Além de romances, escreveu também "estudos filosóficos" (como A Procura do Absoluto, 1834) e estudos analíticos (como a Fisiologia do Casamento, que causou escândalo ao ser publicado em 1829).
Balzac tinha uma enorme capacidade de trabalho, usada sobretudo para cobrir as dívidas que acumulava. De certo modo, suas despesas foram a razão pela qual, desde 1832 até sua morte, se dedicou incansavelmente à literatura. Sua extensa obra influenciou nomes como Proust, Zola, Dickens, Dostoyevsky, Flaubert, Henry James, Machado de Assis, Castelo Branco e Ítalo Calvino, e é constantemente adaptada para o cinema. Participante da vida mundana parisiense, teve vários relacionamentos, entre eles um célebre caso amoroso, desde 1832, com a polonesa Ewelina Hańska, com quem veio a se casar pouco antes de morrer.
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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (cip)
(Câmara Brasileira do Livro, sp, Brasil)
Balzac, Honoré de, 1799-1850.
A comédia humana: estudos de costumes: cenas da vida privada / Honoré de Balzac; orientação, introduções e notas de Paulo Rónai; tradução de Vidal de Oliveira; 3. ed. – São Paulo: Globo, 2012.
(A comédia humana; v. 1) Título original: La comédie humaine ISBN 978-85-250-5333-1 0.000 kb; ePUB
1. Romance francês i. Rónai, Paulo. ii. Título. iii. Série.
12-13086 cdd-843
Índices para catálogo sistemático:
1. Romances: Literatura francesa 843
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