volume V
A Prisioneira
continuando...
continuando...
Sem dúvida, nos primeiros dias de Balbec, Albertine parecia estar num plano paralelo àquele em
que eu vivia, mas que se aproximara (quando eu estivera na casa de Elstir), até se juntarem ambos, à
medida que se estreitavam nossas relações, em Balbec, em Paris, depois de novo em Balbec. Além
disso, entre os dois quadros de Balbec, o da primeira e o da segunda temporadas, compostos das
mesmas vivendas de onde saíam as mesmas jovens diante do mesmo mar, quanta diferença! Nas
amigas de Albertine da segunda temporada, tão bem conhecidas de mim, de qualidades e defeitos tão
visivelmente gravados em suas fisionomias, conseguiria eu reencontrar aquelas frescas e misteriosas
desconhecidas que outrora não podiam, sem que me batesse o coração, fazer ranger na areia a porta de
seus chalés e roçar de passagem as tamargueiras frementes? Seus grandes olhos tinham se reabsorvido
desde então, sem dúvida porque haviam deixado de ser crianças, mas também porque essas
deslumbrantes desconhecidas, atrizes do romanesco primeiro ano e sobre quem eu não cessava de pedir
informações, não mais tinham mistérios para mim. Obedientes aos meus caprichos, haviam se tornado,
para mim, simples moças em flor, das quais não me sentia mediocremente orgulhoso de ter colhido,
escondido de todos, a mais bela rosa.
Entre os dois cenários de Balbec, tão diversos um do outro, havia o intervalo de vários anos em
Paris, sobre cujo longo percurso se colocavam tantas visitas de Albertine.
Eu a via, nos diferentes anos de minha vida, ocupando, em relação a mim, posições diversas que
me faziam sentir a beleza dos espaços interferidos, aquele longo tempo que se passara sem que eu a
visse, e sobre cuja profundeza diáfana a rósea pessoa diante de mim se modelava com misteriosas
sombras e poderoso relevo. Este, aliás, era devido à superposição não só das imagens sucessivas que
Albertine fora para mim, mas também das grandes qualidades de inteligência e coração, dos defeitos de
caráter, uns e outros insuspeitados de mim, que Albertine, numa germinação, numa multiplicação de si
mesma, numa florescência carnuda de cores sombrias, acrescentara a uma natureza antigamente quase
nula, e agora difícil de aprofundar. Pois as criaturas, mesmo as que, de tanto sonharmos com elas, nos
pareciam apenas uma imagem, uma figura de Benozzo Gozzoli que se destacasse sobre um fundo
esverdeado e cujas únicas variações estávamos dispostos a acreditar se referissem ao ponto em que nos
colocáramos para contemplá-la, à distância que nos afastava dela, à iluminação, essas criaturas, ao
passo que mudam em relação a nós, igualmente mudam em si mesmas; e houvera enriquecimento,
solidificação e acréscimo de volume na figura outrora simplesmente recortada contra o mar. De resto, não
era somente o mar do fim do dia que vivia para mim em Albertine, mas, por vezes, a sonolência do mar
na areia pelas noites de luar. De fato, algumas vezes, quando eu me levantava para procurar um livro no
gabinete de meu pai, minha amiga, que me pedira licença para se deitar durante a minha ausência,
achava-se tão cansada devido à longa excursão que fizera de manhã e de tarde, ao ar livre, que, mesmo
se eu demorasse um instante apenas fora do quarto, ao voltar encontrava-a adormecida e não a
despertava. Estendida ao comprido em minha cama, numa atitude de um natural que não se teria podido
inventar, parecia-me uma longa haste em flor que tivessem colocado ali; e de fato assim era; o poder de
devanear, que eu só possuía em sua ausência, reencontrava-o nesses instantes junto dela, como se,
dormindo, ela se tornasse uma planta. Desse modo seu sono realizava, em certa medida, a possibilidade
do amor; sozinho, eu podia pensar nela, mas ela me faltava, não a possuía. Presente, eu lhe falava, mas
estava por demais ausente de mim mesmo para poder pensar.
Quando ela dormia, eu já não precisava falar, sabia que não era mais observado por ela, não tinha
mais necessidade de viver à superfície de mim mesmo. Fechando os olhos, perdendo a consciência,
Albertine se despojara, um após outro, de seus diferentes caracteres de humanidade que me haviam
decepcionado desde o dia em que a conhecera. Ela só estava animada da vida inconsciente dos vegetais
e das árvores, vida mais diversa da minha, mais estranha e que, no entanto, me pertencia mais.
Seu eu não fugia em todos os momentos, como quando conversávamos, pelas saídas do olhar e
do pensamento inconfesso. Recolhera a si própria tudo o que, lhe pertencendo, estava do lado de fora;
refugiara-se, enclausurada, resumida, em seu corpo. Tendo-a sob o meu olhar, em minhas mãos, tinha
eu aquela impressão de possuí-la por inteiro, o que não ocorria quando ela estava acordada. Sua vida
era-me submissa, exalava para mim o seu leve sopro. Eu escutava aquela murmurante emanação
misteriosa, suave como um zéfiro marinho, fascinante como esse luar que era o seu sono. Enquanto este
durava, eu podia sonhar com ela e todavia observá-la, e, quando ele se tornava mais profundo, tocá-la e
beijá-la. O que eu experimentava então era um amor diante de algo tão puro, tão imaterial, tão misterioso,
como se me encontrasse diante das criaturas inanimadas que são as belezas naturais. E, de fato, logo
que ela dormia um pouco mais profundamente, deixava de ser apenas a planta que fora; seu sono, à
beira do qual eu cismava com franca volúpia de que nunca me cansava, e de que poderia gozar
indefinidamente, era para mim toda uma paisagem. Seu sono punha junto a mim algo tão calmo, tão
sensualmente delicioso como essas noites de lua cheia na baía de Balbec, que se tornava suave como
um lago e onde os ramos mal se moviam; onde, estendidos na areia, escutaríamos sem fim o quebrar do
refluxo.
Entrando no quarto, eu ficara de pé na soleira sem ousar fazer barulho e não ouvia outro senão o
do hálito, que vinha expirar em seus lábios a intervalos intermitentes e regulares, como um refluxo, porém
mais brando e suave. E, no momento em que meu ouvido recolhia esse rumor divino, parecia-me que era,
nele condensada, toda a pessoa, toda a vida da cativa encantadora, estendida ali aos meus olhos.
Passavam carros barulhentos na rua; sua fronte, porém, permanecia imóvel, tão pura, sua respiração
bem leve, reduzida à simples expiração do ar necessário. Depois, vendo que seu sono não seria
perturbado, eu me adiantava com prudência, sentava-me na cadeira ao lado da cama e depois na própria
cama. Passei noites encantadoras conversando e brincando com Albertine, porém nunca tão doces como
quando a olhava dormir.
Por mais que ela tivesse tagarelando, jogando cartas, aquele ar natural que uma atriz não poderia
imitar, era uma naturalidade mais profunda, uma naturalidade de segundo grau o que me oferecia o seu
sono. A cabeleira, descendo-lhe ao longo do rosto corado, estava pousada a seu lado na cama e, às
vezes, uma mecha isolada e reta dava o mesmo efeito de perspectiva dessas árvores lunares, delgadas e
pálidas, que vemos nos quadros rafaelescos de Elstir. Se os lábios de Albertine estavam fechados, em
compensação, da maneira como eu me colocara, suas pálpebras pareciam tão pouco unidas que quase
me perguntava se ela estava dormindo de fato. Ainda assim, essas pálpebras baixas davam a seu rosto
aquela continuidade perfeita que os olhos não interrompem. Há pessoas cujo rosto assume beleza e
majestade desacostumadas quando não se lhes vê o olhar. Media com os olhos, Albertine estendida a
meus pés. Por instantes, ela era percorrida por uma agitação leve e inexplicável, como as folhagens que
uma brisa inesperada convulsiona durante alguns momentos. Tocava no cabelo, e depois, não o tendo
feito como desejava, estendia de novo a mão em movimentos tão seguidos, tão voluntários, que eu
estava certo de que ela ia acordar. De modo algum; tornava-se calma no sono, que não abandonara. Daí
em diante permanecia imóvel.
Pousara a mão sobre o peito num abandono do braço tão ingenuamente pueril, que eu era
obrigado, ao olhá-la, a conter o sorriso que, pela sua seriedade, inocência e graça, nos provocam as
criancinhas. A mim, que conhecia várias Albertines numa só, parecia-me ver muitas outras mais
repousando a meu lado.
Suas sobrancelhas, arqueadas como jamais as vira, cercavam os globos de suas pálpebras como
um ninho suave de alcíone. Raças, atavismos e vícios repousavam no seu rosto. De cada vez que movia
a cabeça criava uma nova mulher, freqüentemente não suspeitada por mim. Parecia-me possuir não uma,
mas inúmeras moças. Sua respiração, aos poucos mais profunda, agora erguia-lhe o colo regularmente e,
por sobre ele, as mãos cruzadas, as pérolas, deslocadas de modo diferente pelo mesmo movimento,
como esses barcos, essas correntes de amarração que o movimento das ondas faz oscilar. Então,
sentindo que ela estava em pleno sono, e que eu não iria ferir-me em escolhos de consciência agora
recobertos pela maré montante do sono profundo, deliberadamente saltava para a cama, deitava-me ao
comprido a seu lado, estreitava o seu talhe com um dos braços, pousava os lábios em seu rosto e no seu
coração, e depois sobre todas as partes do corpo lhe pousava a mão que ficara livre, e que também era
erguida como as pérolas pela respiração de Albertine; eu mesmo era levemente deslocado pelo seu
movimento regular. Embarcara no sono de Albertine.
Às vezes, tal sono me ofertava um prazer menos puro. Para tanto, eu não precisava fazer nenhum
movimento; apertava a perna contra a dela, como um remo que se deixa à toa e ao qual se imprime, de
vez em quando, uma leve oscilação parecida ao bater intermitente da asa, como fazem os pássaros que
dormem voando. Para olhá-la, eu escolhia aquela face de seu rosto que nunca se via e era tão linda.
Compreende-se, a rigor, que as cartas que alguém nos escreve sejam mais ou menos iguais entre si e
desenhem uma imagem bem diversa da pessoa que se conhece para que constituam uma segunda
personalidade. Porém, quanto é mais estranho que uma mulher seja colada, como Rosita e Doodica,
[Rosita e Doodica: gêmeas siamesas, a primeira de nome verdadeiro Radica (e não Rosita), separadas
em 1902 pelo professor Doyen. (N. do T)] a outra mulher, cuja beleza diversa leva a induzir um outro
caráter, e que para ver uma seja necessário colocarmo-nos de perfil, e para ver a outra, de frente. O
rumor de sua respiração, tornando-se mais forte, podia dar a ilusão do ofegante prazer e, quando o meu
chegava ao fim, podia beijá-la sem interromper o seu sono. Nesses momentos, parecia-me acabar de
possuí-la mais completamente, como uma coisa inconsciente e sem resistência da natureza muda. Não
me inquietavam as palavras que ela às vezes deixava escapar ao dormir; o seu sentido me fugia, e, além
disso, fosse qual a pessoa desconhecida a que se referissem, era sobre a minha mão, meu rosto, que
sua mão, por vezes animada de um leve estremecimento, crispava-se por um instante. Eu fruía o seu
sono com um amor desinteressado e calmante, assim como ficava horas a escutar a arrebentação das
ondas. Talvez seja necessário que as criaturas se mostrem capazes de nos fazer sofrer muito, para que,
nas horas de remissão, nos proporcionem o mesmo alívio que a natureza. Não tinha de lhe responder
como quando conversávamos, e, mesmo que me calasse, como fazia também quando ela falava, ao ouvi-la falar eu não penetrava tão profundamente nela. Continuando a ouvi-la, a recolher de instante em
instante o murmúrio tranquilizador, como uma brisa imperceptível de seu hálito puro era toda uma
existência fisiológica que estava diante de mim e para mim; tanto tempo como antigamente ficava deitado
na praia, ao luar, teria ficado ali a contemplá-la, a escutá-la. Às vezes, dir-se-ia que o mar se encapelava,
que a tempestade se fazia sentir até na baía, e eu me punha, como ela, a escutar o ronco do seu sopro,
que rugia.
Às vezes, quando ela sentia muito calor, tirava, já quase dormindo, o seu quimono, e o atirava
numa poltrona. Enquanto ela dormia, eu dizia comigo que todas as suas cartas estavam no bolso interno
desse quimono onde as punha sempre. Uma assinatura, um encontro marcado seriam o bastante para
provar uma mentira ou dissipar uma suspeita. Quando sentia ser bem profundo o sono de Albertine,
afastando-me dos pés da sua cama onde a contemplava há muito sem fazer um só movimento, eu
arriscava um passo, tomado de ardente curiosidade, sentindo o segredo dessa vida oferecido, frouxo e
sem defesa naquela poltrona. Talvez também desse aquele passo porque contemplar sem se mexer
acaba por tornar-se cansativo. E assim, na ponta dos pés, voltando-me sem cessar para ver se Albertine
não acordava, eu ia até a poltrona. Ali parava, ficava longo tempo a olhar o quimono como tinha estado
longo tempo a contemplar Albertine. Mas (e talvez tenha sido um erro) nunca toquei no quimono, nem
coloquei a mão no bolso ou olhei as cartas. Por fim, vendo que não me resolvia, desandava o caminho
com passos de lã, voltava para junto da cama de Albertine e me punha de novo a olhá-la dormindo, ela
que não me dizia nada, ainda que eu visse no braço da poltrona aquele quimono que talvez me dissesse
muitas coisas. E, assim como as pessoas alugam, por cem francos diários, um quarto no hotel de Balbec
a fim de respirar o ar marinho, eu achava muito natural gastar mais do que isso com ela, pois tinha o seu
hálito junto à face, em sua boca, que contra a minha eu entreabria e onde pela minha língua passava a
sua vida.
continua na página 30...
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Leia também:
Volume 1
Volume 2
Volume 3
Volume 4
Volume 5
A Prisioneira (Prefácio)A Prisioneira (Nas noites em que esta última)
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