sábado, 5 de outubro de 2024

Marcel Proust - A Prisioneira (Nas noites em que esta última)

em busca do tempo perdido

volume V
A Prisioneira

continuando...

      Nas noites em que esta última não me lia em voz alta, ela tocava piano para mim ou jogávamos partidas de damas, ou conversávamos, jogo e conversa que eu interrompia para beijá-la. Nossas relações eram de uma simplicidade que as tornava repousantes. O próprio vazio de sua vida conferia a Albertine uma espécie de solicitude e de obediência para as únicas coisas que eu exigia dela. Por detrás dessa jovem, como detrás da luz purpurina que caía aos pés de minhas cortinas em Balbec, enquanto ribombava o concerto dos músicos, nacaravam-se as ondulações azuladas do mar. Com efeito, não era ela (no fundo de quem residia de modo habitual uma ideia de mim tão familiar que, depois de sua tia, eu era talvez a pessoa que ela menos distinguia de si mesma) a mocinha que eu vira pela primeira vez em Balbec, sob sua boina achatada, com seus olhos insistentes e risonhos, desconhecida ainda, delgada como uma silhueta recortada contra o fundo das ondas? Essas efígies que se conservam intactas na memória, quando as reencontramos, espantamo-nos com sua dissemelhança da criatura que já conhecemos; compreendemos então qual o trabalho de modelagem que o hábito cumpre diariamente. No encanto que Albertine possuía em Paris, junto à minha lareira, vivia ainda o desejo que me inspirara o séquito insolente e florido que se desenrolara ao longo da praia e, como Rachel conservava para Saint Loup, mesmo depois que ele a fez largar o palco, o prestígio da vida teatral, naquela Albertine enclausurada em minha casa, longe de Balbec, de onde a trouxera precipitadamente, subsistiam a emoção, a desordem social, a vaidade inquieta, os desejos fugidios da vida dos banhos de mar. Ela estava tão bem engaiolada que até em certas noites eu não lhe mandava pedir que trocasse o seu quarto pelo meu, ela, a quem outrora todos seguiam, que me dava tanto trabalho para alcançá-la quando disparava na sua bicicleta, e que o próprio ascensorista não lograva me trazer de volta, não me dando qualquer esperança de que ela viesse, e que eu no entanto esperava a noite inteira. Pois não fora Albertine, diante do hotel, como uma grande atriz da praia em chamas, excitando ciúmes quando caminhava por aquele teatro da natureza, sem falar com ninguém, dando encontrões nos clientes habituais, dominando as amigas, e não era essa atriz tão cobiçada que, retirada por mim de cena, fechada em minha casa, a salvo dos desejos de todos, que de ora em diante podiam procurá-la em vão, ora no meu quarto, ora no seu, onde ela se entregava a algum trabalho de desenho ou cinzeladura?
     Sem dúvida, nos primeiros dias de Balbec, Albertine parecia estar num plano paralelo àquele em que eu vivia, mas que se aproximara (quando eu estivera na casa de Elstir), até se juntarem ambos, à medida que se estreitavam nossas relações, em Balbec, em Paris, depois de novo em Balbec. Além disso, entre os dois quadros de Balbec, o da primeira e o da segunda temporadas, compostos das mesmas vivendas de onde saíam as mesmas jovens diante do mesmo mar, quanta diferença! Nas amigas de Albertine da segunda temporada, tão bem conhecidas de mim, de qualidades e defeitos tão visivelmente gravados em suas fisionomias, conseguiria eu reencontrar aquelas frescas e misteriosas desconhecidas que outrora não podiam, sem que me batesse o coração, fazer ranger na areia a porta de seus chalés e roçar de passagem as tamargueiras frementes? Seus grandes olhos tinham se reabsorvido desde então, sem dúvida porque haviam deixado de ser crianças, mas também porque essas deslumbrantes desconhecidas, atrizes do romanesco primeiro ano e sobre quem eu não cessava de pedir informações, não mais tinham mistérios para mim. Obedientes aos meus caprichos, haviam se tornado, para mim, simples moças em flor, das quais não me sentia mediocremente orgulhoso de ter colhido, escondido de todos, a mais bela rosa.
      Entre os dois cenários de Balbec, tão diversos um do outro, havia o intervalo de vários anos em Paris, sobre cujo longo percurso se colocavam tantas visitas de Albertine.
     Eu a via, nos diferentes anos de minha vida, ocupando, em relação a mim, posições diversas que me faziam sentir a beleza dos espaços interferidos, aquele longo tempo que se passara sem que eu a visse, e sobre cuja profundeza diáfana a rósea pessoa diante de mim se modelava com misteriosas sombras e poderoso relevo. Este, aliás, era devido à superposição não só das imagens sucessivas que Albertine fora para mim, mas também das grandes qualidades de inteligência e coração, dos defeitos de caráter, uns e outros insuspeitados de mim, que Albertine, numa germinação, numa multiplicação de si mesma, numa florescência carnuda de cores sombrias, acrescentara a uma natureza antigamente quase nula, e agora difícil de aprofundar. Pois as criaturas, mesmo as que, de tanto sonharmos com elas, nos pareciam apenas uma imagem, uma figura de Benozzo Gozzoli que se destacasse sobre um fundo esverdeado e cujas únicas variações estávamos dispostos a acreditar se referissem ao ponto em que nos colocáramos para contemplá-la, à distância que nos afastava dela, à iluminação, essas criaturas, ao passo que mudam em relação a nós, igualmente mudam em si mesmas; e houvera enriquecimento, solidificação e acréscimo de volume na figura outrora simplesmente recortada contra o mar. De resto, não era somente o mar do fim do dia que vivia para mim em Albertine, mas, por vezes, a sonolência do mar na areia pelas noites de luar. De fato, algumas vezes, quando eu me levantava para procurar um livro no gabinete de meu pai, minha amiga, que me pedira licença para se deitar durante a minha ausência, achava-se tão cansada devido à longa excursão que fizera de manhã e de tarde, ao ar livre, que, mesmo se eu demorasse um instante apenas fora do quarto, ao voltar encontrava-a adormecida e não a despertava. Estendida ao comprido em minha cama, numa atitude de um natural que não se teria podido inventar, parecia-me uma longa haste em flor que tivessem colocado ali; e de fato assim era; o poder de devanear, que eu só possuía em sua ausência, reencontrava-o nesses instantes junto dela, como se, dormindo, ela se tornasse uma planta. Desse modo seu sono realizava, em certa medida, a possibilidade do amor; sozinho, eu podia pensar nela, mas ela me faltava, não a possuía. Presente, eu lhe falava, mas estava por demais ausente de mim mesmo para poder pensar.
     Quando ela dormia, eu já não precisava falar, sabia que não era mais observado por ela, não tinha mais necessidade de viver à superfície de mim mesmo. Fechando os olhos, perdendo a consciência, Albertine se despojara, um após outro, de seus diferentes caracteres de humanidade que me haviam decepcionado desde o dia em que a conhecera. Ela só estava animada da vida inconsciente dos vegetais e das árvores, vida mais diversa da minha, mais estranha e que, no entanto, me pertencia mais.
     Seu eu não fugia em todos os momentos, como quando conversávamos, pelas saídas do olhar e do pensamento inconfesso. Recolhera a si própria tudo o que, lhe pertencendo, estava do lado de fora; refugiara-se, enclausurada, resumida, em seu corpo. Tendo-a sob o meu olhar, em minhas mãos, tinha eu aquela impressão de possuí-la por inteiro, o que não ocorria quando ela estava acordada. Sua vida era-me submissa, exalava para mim o seu leve sopro. Eu escutava aquela murmurante emanação misteriosa, suave como um zéfiro marinho, fascinante como esse luar que era o seu sono. Enquanto este durava, eu podia sonhar com ela e todavia observá-la, e, quando ele se tornava mais profundo, tocá-la e beijá-la. O que eu experimentava então era um amor diante de algo tão puro, tão imaterial, tão misterioso, como se me encontrasse diante das criaturas inanimadas que são as belezas naturais. E, de fato, logo que ela dormia um pouco mais profundamente, deixava de ser apenas a planta que fora; seu sono, à beira do qual eu cismava com franca volúpia de que nunca me cansava, e de que poderia gozar indefinidamente, era para mim toda uma paisagem. Seu sono punha junto a mim algo tão calmo, tão sensualmente delicioso como essas noites de lua cheia na baía de Balbec, que se tornava suave como um lago e onde os ramos mal se moviam; onde, estendidos na areia, escutaríamos sem fim o quebrar do refluxo.
     Entrando no quarto, eu ficara de pé na soleira sem ousar fazer barulho e não ouvia outro senão o do hálito, que vinha expirar em seus lábios a intervalos intermitentes e regulares, como um refluxo, porém mais brando e suave. E, no momento em que meu ouvido recolhia esse rumor divino, parecia-me que era, nele condensada, toda a pessoa, toda a vida da cativa encantadora, estendida ali aos meus olhos. Passavam carros barulhentos na rua; sua fronte, porém, permanecia imóvel, tão pura, sua respiração bem leve, reduzida à simples expiração do ar necessário. Depois, vendo que seu sono não seria perturbado, eu me adiantava com prudência, sentava-me na cadeira ao lado da cama e depois na própria cama. Passei noites encantadoras conversando e brincando com Albertine, porém nunca tão doces como quando a olhava dormir.
     Por mais que ela tivesse tagarelando, jogando cartas, aquele ar natural que uma atriz não poderia imitar, era uma naturalidade mais profunda, uma naturalidade de segundo grau o que me oferecia o seu sono. A cabeleira, descendo-lhe ao longo do rosto corado, estava pousada a seu lado na cama e, às vezes, uma mecha isolada e reta dava o mesmo efeito de perspectiva dessas árvores lunares, delgadas e pálidas, que vemos nos quadros rafaelescos de Elstir. Se os lábios de Albertine estavam fechados, em compensação, da maneira como eu me colocara, suas pálpebras pareciam tão pouco unidas que quase me perguntava se ela estava dormindo de fato. Ainda assim, essas pálpebras baixas davam a seu rosto aquela continuidade perfeita que os olhos não interrompem. Há pessoas cujo rosto assume beleza e majestade desacostumadas quando não se lhes vê o olhar. Media com os olhos, Albertine estendida a meus pés. Por instantes, ela era percorrida por uma agitação leve e inexplicável, como as folhagens que uma brisa inesperada convulsiona durante alguns momentos. Tocava no cabelo, e depois, não o tendo feito como desejava, estendia de novo a mão em movimentos tão seguidos, tão voluntários, que eu estava certo de que ela ia acordar. De modo algum; tornava-se calma no sono, que não abandonara. Daí em diante permanecia imóvel.
     Pousara a mão sobre o peito num abandono do braço tão ingenuamente pueril, que eu era obrigado, ao olhá-la, a conter o sorriso que, pela sua seriedade, inocência e graça, nos provocam as criancinhas. A mim, que conhecia várias Albertines numa só, parecia-me ver muitas outras mais repousando a meu lado.
      Suas sobrancelhas, arqueadas como jamais as vira, cercavam os globos de suas pálpebras como um ninho suave de alcíone. Raças, atavismos e vícios repousavam no seu rosto. De cada vez que movia a cabeça criava uma nova mulher, freqüentemente não suspeitada por mim. Parecia-me possuir não uma, mas inúmeras moças. Sua respiração, aos poucos mais profunda, agora erguia-lhe o colo regularmente e, por sobre ele, as mãos cruzadas, as pérolas, deslocadas de modo diferente pelo mesmo movimento, como esses barcos, essas correntes de amarração que o movimento das ondas faz oscilar. Então, sentindo que ela estava em pleno sono, e que eu não iria ferir-me em escolhos de consciência agora recobertos pela maré montante do sono profundo, deliberadamente saltava para a cama, deitava-me ao comprido a seu lado, estreitava o seu talhe com um dos braços, pousava os lábios em seu rosto e no seu coração, e depois sobre todas as partes do corpo lhe pousava a mão que ficara livre, e que também era erguida como as pérolas pela respiração de Albertine; eu mesmo era levemente deslocado pelo seu movimento regular. Embarcara no sono de Albertine.
      Às vezes, tal sono me ofertava um prazer menos puro. Para tanto, eu não precisava fazer nenhum movimento; apertava a perna contra a dela, como um remo que se deixa à toa e ao qual se imprime, de vez em quando, uma leve oscilação parecida ao bater intermitente da asa, como fazem os pássaros que dormem voando. Para olhá-la, eu escolhia aquela face de seu rosto que nunca se via e era tão linda. Compreende-se, a rigor, que as cartas que alguém nos escreve sejam mais ou menos iguais entre si e desenhem uma imagem bem diversa da pessoa que se conhece para que constituam uma segunda personalidade. Porém, quanto é mais estranho que uma mulher seja colada, como Rosita e Doodica, [Rosita e Doodica: gêmeas siamesas, a primeira de nome verdadeiro Radica (e não Rosita), separadas em 1902 pelo professor Doyen. (N. do T)] a outra mulher, cuja beleza diversa leva a induzir um outro caráter, e que para ver uma seja necessário colocarmo-nos de perfil, e para ver a outra, de frente. O rumor de sua respiração, tornando-se mais forte, podia dar a ilusão do ofegante prazer e, quando o meu chegava ao fim, podia beijá-la sem interromper o seu sono. Nesses momentos, parecia-me acabar de possuí-la mais completamente, como uma coisa inconsciente e sem resistência da natureza muda. Não me inquietavam as palavras que ela às vezes deixava escapar ao dormir; o seu sentido me fugia, e, além disso, fosse qual a pessoa desconhecida a que se referissem, era sobre a minha mão, meu rosto, que sua mão, por vezes animada de um leve estremecimento, crispava-se por um instante. Eu fruía o seu sono com um amor desinteressado e calmante, assim como ficava horas a escutar a arrebentação das ondas. Talvez seja necessário que as criaturas se mostrem capazes de nos fazer sofrer muito, para que, nas horas de remissão, nos proporcionem o mesmo alívio que a natureza. Não tinha de lhe responder como quando conversávamos, e, mesmo que me calasse, como fazia também quando ela falava, ao ouvi-la falar eu não penetrava tão profundamente nela. Continuando a ouvi-la, a recolher de instante em instante o murmúrio tranquilizador, como uma brisa imperceptível de seu hálito puro era toda uma existência fisiológica que estava diante de mim e para mim; tanto tempo como antigamente ficava deitado na praia, ao luar, teria ficado ali a contemplá-la, a escutá-la. Às vezes, dir-se-ia que o mar se encapelava, que a tempestade se fazia sentir até na baía, e eu me punha, como ela, a escutar o ronco do seu sopro, que rugia.
      Às vezes, quando ela sentia muito calor, tirava, já quase dormindo, o seu quimono, e o atirava numa poltrona. Enquanto ela dormia, eu dizia comigo que todas as suas cartas estavam no bolso interno desse quimono onde as punha sempre. Uma assinatura, um encontro marcado seriam o bastante para provar uma mentira ou dissipar uma suspeita. Quando sentia ser bem profundo o sono de Albertine, afastando-me dos pés da sua cama onde a contemplava há muito sem fazer um só movimento, eu arriscava um passo, tomado de ardente curiosidade, sentindo o segredo dessa vida oferecido, frouxo e sem defesa naquela poltrona. Talvez também desse aquele passo porque contemplar sem se mexer acaba por tornar-se cansativo. E assim, na ponta dos pés, voltando-me sem cessar para ver se Albertine não acordava, eu ia até a poltrona. Ali parava, ficava longo tempo a olhar o quimono como tinha estado longo tempo a contemplar Albertine. Mas (e talvez tenha sido um erro) nunca toquei no quimono, nem coloquei a mão no bolso ou olhei as cartas. Por fim, vendo que não me resolvia, desandava o caminho com passos de lã, voltava para junto da cama de Albertine e me punha de novo a olhá-la dormindo, ela que não me dizia nada, ainda que eu visse no braço da poltrona aquele quimono que talvez me dissesse muitas coisas. E, assim como as pessoas alugam, por cem francos diários, um quarto no hotel de Balbec a fim de respirar o ar marinho, eu achava muito natural gastar mais do que isso com ela, pois tinha o seu hálito junto à face, em sua boca, que contra a minha eu entreabria e onde pela minha língua passava a sua vida.

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