Victor Hugo - Os Miseráveis
A autoridade readquire os seus direitos
Primeira Parte - Fantine
Livro Oitavo — Desforra
IV — A autoridade readquire os seus direitos
— Salve-me, senhor Madelaine!
Jean Valjean (doravante não o denominaremos de outro modo) levantara-se. Ouvindo
a exclamação de Fantine voltou-se para ela e disse-lhe com a maior doçura e
tranquilidade:
— Não tenha receio. Não foi por sua causa que ele veio aqui. — Depois, dirigindo-se a
Javert: — Já sei o que me quer.
Javert retorquiu:
— Vamos, depressa!
Estas palavras foram acompanhadas com uma inflexão em que havia qualquer coisa
de bravio e frenético. Não há ortografia que pudesse transmitir o acento com que elas
foram pronunciadas. Não foram palavras humanas, foi um rugido.
Não fez como era costume, não entrou em matéria, não exibiu o mandado de prisão.
Para ele, Jean Valjean era uma espécie de inimigo misterioso e insubjugável, um lutador
tenebroso a que ele se abraçara havia cinco anos sem que nunca tivesse podido derrubá-lo. Esta prisão não era um começo, mas um fim. Limitou-se, pois, a dizer: «Vamos,
depressa!»
Falando deste modo, não deu um passo, lançou a Jean Valjean esse olhar que ele
deitava como um arpão, e com o qual costumava puxar para si os miseráveis de quem
queria apossar-se. Era o mesmo olhar que Fantine, dois meses antes, sentira penetrar-lhe até à medula dos ossos. Ao grito de Javert, Fantine abrira novamente os olhos. Mas o
maire estava ao pé dela, o que poderia recear?
Javert avançou até ao meio do quarto e gritou:
— Então, avias-te?!
A desgraçada olhou em roda de si. Não estava ali mais ninguém além da religiosa e do
maire. A quem poderia dirigir-se aquele abjecto tratamento de tu? Não podia ser senão a
ela. A pobrezinha estremeceu. Em seguida, viu uma coisa inaudita e tal como nunca lhe
aparecera nos mais negros delírios da febre. Viu o espião Javert lançar a mão à gola da
sobrecasaca do maire e este curvar a cabeça. Pareceu-lhe que se acabava o mundo.
Javert, com efeito, segurou Jean Valjean pela gola da sobrecasaca.
— Senhor maire! — gritou Fantine.
Javert desatou a rir, mas com o tal riso que lhe descobria as gengivas.
— Já não há aqui nenhum maire!
Jean Valjean não tentou livrar-se da mão que o segurava e disse:
— Javert...
Javert interrompeu-o:
— Chama-me senhor inspector!
— Desejava dizer-lhe uma palavra em particular, senhor inspector.
— Fala alto, fala alto! — respondeu Javert. — Comigo não se fala em particular.
Jean Valjean continuou, baixando a voz:
— É uma súplica que tenho a fazer-lhe...
— Já te disse que fales alto.
— Mas o que eu tenho a dizer-lhe só deve ser ouvido pelo senhor.
— Que me importa a mim isso? Não tenho que ouvir!
Jean Valjean voltou-se para ele e disse-lhe rapidamente em voz baixa:
— Conceda-me três dias! Três dias para ir buscar a filha desta infeliz mulher! Pagarei o
que for preciso! Acompanhar-me-á, se quiser.
— Estás a brincar?! — exclamou Javert. — Não te julgava tão estúpido! Pedes-me três
dias para te safares! Dizes então que são para ires buscar a filha desta meretriz! Não
pega!
Fantine estremeceu.
— A minha filha! — exclamou ela. — Ir buscar a minha filha! Então não está aqui?!
Diga-me, minha irmã, onde está Cosette? Senhor Madelaine, senhor maire, quero a
minha filha!
Javert bateu com o pé no chão.
— Temos outra! Vê se te calas! Que diabo de terra esta em que os forçados são
magistrados e as meretrizes tratadas como fidalgas! Mas tudo isto vai acabar e já não
era sem tempo! — Olhou em seguida fixamente para Fantine e acrescentou, segurando
melhor Jean Valjean, agarrando-lhe desta vez, além da gola, na gravata e na camisa. — Já
te disse que não há aqui nem senhor Madelaine, nem senhor maire. O que aqui há é um ladrão, um salteador, um grilheta chamado Jean Valjean, o qual já me não escapa!
Fantine ergueu-se convulsivamente, apoiou-se nos magros e hirtos braços, olhou para
Jean Valjean, para Javert, para a religiosa, e abriu a boca como que para falar, mas
apenas lhe saiu da garganta uma espécie de suspiro sufocado, os dentes bateram uns
nos outros, estendeu os braços aflitivamente, abrindo de um modo convulsivo as mãos,
e procurando apoio em volta de si, como alguém prestes a afogar-se, caiu
inopinadamente sobre o travesseiro.
A cabeça bateu no encosto do leito e pendeu-lhe em seguida sobre o peito, com a
boca aberta, os olhos igualmente abertos, mas sem brilho.
Estava morta.
Jean Valjean pôs a sua mão na mão com que Javert o segurava, abriu-a como teria
aberto a de uma criança e disse-lhe:
— O senhor matou esta mulher!
— Acabemos com isto! — exclamou Javert furioso. — Não estou aqui para ouvir
satisfações. Deixemo-nos de histórias, a escolta está lá em baixo; ou avias-te ou mando-te amarrar.
No canto do quarto havia um leito velho de ferro, em mau estado, e que servia às
irmãs para repousar quando velavam junto das doentes. Jean Valjean dirigiu-se ao leito,
deslocou-lhe num abrir e fechar de olhos, a cabeceira já desengonçada, coisa facílima
para músculos como os seus, empunhou a barra mais grossa e encarou Javert. Este
recuou até à porta.
Jean Valjean, com a barra de ferro na mão, dirigiu-se vagarosamente para a cama de
Fantine. Quando ali chegou, voltou-se para Javert e disse-lhe com uma voz que mal se
ouviu:
— Não o aconselho a que me inquiete neste momento.
Javert lembrou-se de ir chamar a escolta, mas Jean Valjean podia aproveitar essa curta
ausência para se evadir. Deixou-se pois estar onde estava, pegou na bengala pela
ponteira e encostou-se à ombreira da porta, sem afastar os olhos de Jean Valjean.
Este apoiou o cotovelo na maçaneta da cabeceira do leito, descansou a cabeça sobre a
mão e pôs-se a contemplar Fantine, hirta e imóvel. Conservou-se assim, absorto, mudo e
não pensando evidentemente em mais coisa alguma desta vida. Na sua fisionomia e
atitude não se distinguia mais do que extrema piedade.
Depois de alguns instantes de meditação, inclinou-se para Fantine e falou-lhe em voz
baixa.
Que lhe disse ele? O que poderia dizer aquele homem réprobo, àquela mulher morta?
Que palavras foram as suas? Ninguém na terra as ouviu. Ouvi-las-ia a defunta? Há ilusões
tocantes, que são, talvez, realidades sublimes. O que é fora de dúvida, é que a irmã
Simplícia única testemunha desta cena, contou muitas vezes que vira distintamente, no
momento em que Jean Valjean falara ao ouvido de Fantine, esboçar-se-lhe nos lábios e
nas pupilas vagas e cheias do espanto sepulcral, o mais inefável sorriso.
Jean Valjean tomou nas suas mãos a cabeça de Fantine e acomodou-a sobre o
travesseiro como qualquer mãe faria a um filho: depois atou-lhe o cordão da camisa e
aconchegou-lhe os cabelos para dentro da touca. Feito isto, fechou-lhe os olhos.
O rosto de Fantine pareceu naquele momento extremamente iluminado. A morte é a
entrada na luz suprema.
A mão de Fantine pendia para fora da cama, Jean Valjean ajoelhou diante daquela
mão, levantou-a timidamente e beijou-a. Em seguida ergueu-se e voltou-se para Javert,
dizendo:
— Agora estou às suas ordens.
continua na página 230...
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Victor-Marie Hugo (1802—1885) foi um novelista, poeta, dramaturgo, ensaísta, artista, estadista e ativista pelos direitos humanos francês de grande atuação política em seu país. É autor de Les Misérables e de Notre-Dame de Paris, entre diversas outras obras clássicas de fama e renome mundial.
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Os Miseráveis: Fantine, Livro Oitavo - IV — A autoridade readquire os seus direitos
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Victor Hugo
OS MISERÁVEIS
Título original: Les Misérables (1862)
Tradução: Francisco Ferreira da Silva Vieira
OS MISERÁVEIS
Título original: Les Misérables (1862)
Tradução: Francisco Ferreira da Silva Vieira
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