Gabriel Garcia Márquez
(13.3)
para jomí garcía ascot
e maría luisa elío
Não chovia há três meses e era tempo de seca. Mas quando o Sr.
Brown anunciou a sua decisão, precipitou-se em toda a zona bananeira o
aguaceiro torrencial que surpreendeu José Arcadio Segundo a caminho de
Macondo. Uma semana depois continuava chovendo. A versão oficial, mil
vezes repetida e repisada em todo o país por quanto meio de divulgação o
Governo encontrou ao seu alcance, terminou por se impor: não houve
mortos, os trabalhadores satisfeitos tinham voltado para o seio das suas
famílias, e a companhia bananeira suspendia as suas atividades até passar a
chuva. A lei marcial. continuava, prevendo que fosse necessário aplicar
medidas de emergência para a calamidade pública do aguaceiro
interminável, mas a tropa estava aquartelada. Durante o dia, os militares
andavam pelas torrentes das ruas, com as calças enroladas na metade da
perna, brincando de naufrágio com as crianças. De noite, depois do toque de
recolher, derrubavam as portas a coronhadas, arrancavam os suspeitos das
camas e os levavam para uma viagem sem regresso. Era ainda a busca e o
extermínio dos malfeitores, assassinos, incendiários e revoltosos do Decreto
Número Quatro, mas os militares o negavam aos próprios parentes das suas
vítimas, que atulhavam os escritórios dos comandantes em busca de notícias.
“Claro que foi um sonho”, insistiam os oficiais. “Em Macondo não aconteceu
nada, nem está acontecendo nem acontecerá nunca. É um povoado feliz.”
Assim consumaram o extermínio dos lideres sindicais.
O único sobrevivente foi José Arcadio Segundo. Uma noite de
fevereiro se ouviram na porta as batidas inconfundíveis das coronhas.
Aureliano Segundo, que continuava esperando que estiasse para sair, abriu a
seis soldados comandados por um oficial. Ensopados de chuva, sem
pronunciar uma palavra, revistaram a casa cômodo por cômodo, armário por
armário, das salas até a despensa. Úrsula acordou quando acenderam a luz
do quarto e não exalou um suspiro enquanto durou a revista, mas manteve
os dedos cruzados, movendo-os para onde os soldados se moviam. Santa
Sofía de la Piedad conseguiu prevenir José Arcadio Segundo que dormia no
quarto de Melquíades, mas ele compreendeu que era tarde demais para
tentar a fuga. De modo que Santa Sofía de la Piedad tornou a fechar a porta
e ele pôs a camisa e os sapatos e se sentou no catre para esperar que
chegassem. Nesse momento estavam revistando a oficina de ourivesaria. O
oficial tinha feito abrir o cadeado e, com uma rápida passagem da lanterna,
tinha visto a mesa de trabalho e a prateleira com os frascos de ácidos e os
instrumentos que continuavam no mesmo lugar em que os deixara o seu
dono e pareceu compreender que naquele quarto não vivia ninguém.
Entretanto, perguntou astutamente a Aureliano Segundo se era ourives e ele
lhe contou que aquela tinha sido a oficina do Coronel Aureliano día. “Ãhã”,
fez o oficial e acendeu a luz e ordenou uma vista tão minuciosa que não lhes
escaparam os dezoito peixinhos de ouro que tinham ficado sem fundir e que
estavam escondidos atrás dos frascos na vasilha de lata. O oficial os
examinou um por um na mesa de trabalho e então se humanizou por
completo. “Eu gostaria de levar um para mim, se o senhor permite”, disse.
“Em certa época foram uma senha da subversão, mas agora são uma
relíquia.” Era jovem, um adolescente, sem nenhum sinal de timidez e com
uma simpatia natural que não tinha sido notada até então. Aureliano
Segundo lhe deu o peixinho de presente. O oficial o guardou no bolso da
camisa, com um brilho infantil nos olhos, e jogou os outros na vasilha para
colocá-los onde estavam.
— É uma lembrança inestimável — disse. — O Coroa Aureliano
Buendía foi um dos nossos maiores homens.
Entretanto, o acesso de humanização não modificou a conduta
profissional. Diante do quarto de Melquíades, estava outra vez com cadeado,
Santa Sofía de la Piedad lançou mão de uma última esperança. “Faz mais ou
menos século que não vive ninguém neste quarto”, disse. O oficial o fez abrir,
percorreu-o com o foco da lanterna, e Aureliano Segundo e Santa Sofía de la
Piedad viram os olhos árabes de José Arcadio Segundo no momento em que
passou pela cara a rajada de luz e compreenderam que aquele era o fim de
uma ansiedade e o princípio de outra que só encontraria alívio na
resignação. Mas o oficial continuou examinando cômodo com a lanterna e
não deu nenhum sinal de interesse enquanto não descobriu os setenta e dois
penicos arregimentados nos armários. Então acendeu a luz. José Arcadio
Segundo estava sentado na ponta do catre, pronto para sair, mais grave e
pensativo do que nunca. Ao fundo estavam as prateleiras com os livros
escalavrados, os rolos de pergaminho e a mesa de trabalho limpa e arrumada
e ainda fresca a tinta nos tinteiros. Havia a mesma pureza no ar, a mesma
diafanidade, o mesmo privilégio contra a poeira e a destruição que
conhecera Aureliano Segundo na infância e que só o Coronel Aureliano
Buendía não pudera perceber. Mas o oficial não se interessou a não ser pelos
penicos.
— Quantas pessoas vivem nesta casa? — perguntou.
— Cinco.
O oficial, evidentemente, não entendeu. Deteve o olhar no espaço
onde Aureliano Segundo e Santa Sofía de la Piedad continuavam vendo José
Arcadio Segundo e também este se deu conta de que o militar estava
olhando para ele sem vê-lo. Em seguida apagou a luz e encostou a porta.
Quando falou com os soldados, Aureliano Segundo compreendeu que o
jovem militar tinha visto o quarto com os mesmos olhos com que o vira o
Coronel Aureliano Buendía.
— É verdade que ninguém entra nesse quarto há pelo menos um
século — disse o oficial aos soldados. — Deve ter até cobra.
Ao se fechar a porta, José Arcadio Segundo teve a certeza de que a
sua guerra tinha terminado. Anos antes, o Coronel Aureliano Buendía lhe
falara da fascinação da guerra e tratara de demonstrá-la com exemplos
inumeráveis tirados da sua própria experiência. Ele tinha acreditado. Mas na
noite em que os militares o olharam sem vê-lo, enquanto pensava na tensão
dos últimos meses, na miséria da prisão, no pânico da estação e no trem
carregado de mortos, José Arcadio Segundo chegou à conclusão de que o
Coronel Aureliano Buendía não fora mais que um farsante ou um imbecil.
Não entendia que tivesse necessitado tantas palavras para explicar o que se
sentia na guerra, se uma só bastava: medo. No quarto de Melquíades, pelo
contrário, protegido pela luz sobrenatural, pelo barulho da chuva, pela
sensação de ser invisível, encontrou o repouso que não tinha tido por um só
instante na sua vida anterior e o único medo que persistia era o de que o
enterrassem vivo. Contou isso para Santa Sofía de la Piedad, que lhe trazia as
refeições diárias, e ela lhe prometeu lutar para estar viva até além das suas
forças, para assegurar-se de que só o enterrariam morto. A salvo de todo o
temor, José Arcadio Segundo se dedicou então a reler muitas vezes os
pergaminhos de Melquíades, tanto mais satisfeito quanto menos os entendia.
Acostumado com o barulho da chuva, que ao fim de dois meses se
transformou numa nova forma de silencio, a única coisa que perturbava a
sua solidão eram as entradas e saídas de Santa Sofía de la Piedad. Por isso lhe
suplicou que deixasse a comida no parapeito da janela e pusesse o cadeado
na porta. O resto da família o esqueceu, inclusive Fernanda, que não teve
inconveniente em deixá-lo ali, quando soube que os militares o tinham visto
sem reconhecer. Depois de seis meses de clausura, em vista de terem os
militares deixado Macondo, Aureliano Segundo tirou o cadeado, procurando
alguém com quem conversar enquanto não passava a chuva. Desde que
abriu a porta se sentiu agredido pelo mau cheiro dos penicos que estavam
colocados no chão e todos muitas vezes ocupados. José Arcadio Segundo,
devorado pela careca, indiferente ao ar rarefeito pelos vapores
nauseabundos, continuava lendo e relendo os pergaminhos ininteligíveis.
Estava iluminado por um brilho seráfico. Mal levantou a vista quando sentiu
que a porta se abria, mas ao irmão bastou aquele olhar para ver repetido nele
o destino irreparável do bisavô.
— Eram mais de três mil — foi tudo quanto disse José Arcadio
Segundo. — Agora estou certo de que eram todos os que estavam na estação.
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Cem Anos de Solidão (13.3) - Não chovia há três meses
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