Victor Hugo - Os Miseráveis
Primeira Parte - Fantine
Livro Oitavo — Desforra
II — Fantine feliz
Fantine continuou:
— Eu já sabia que o senhor se encontrava aí, estava a dormir, mas via-o. Há muito
tempo que o estava vendo; segui-o com os olhos toda a noite. O senhor estava no centro
de uma auréola brilhante e tinha em volta de si toda a espécie de figuras celestes.
Madelaine ergueu os olhos para o crucifixo.
— Mas — continuou ela —, diga-me, onde está Cosette? Por que não a pôs sobre a
minha cama, para que eu a visse assim que acordasse?
Madelaine respondeu-lhe o que quer que foi de que mais tarde não pôde lembrar-se.
Felizmente chegou o médico, que tinha sido prevenido e que acudiu em auxílio de
Madelaine.
— Sossegue, minha filha. A menina está ali.
Os olhos de Fantine iluminaram-se e inundaram-lhe de luz todo o rosto. Juntou ao
mesmo tempo as mãos com uma expressão que continha tudo o que na súplica pode
haver de mais violento e mais suave.
— Tragam-na! — exclamou ela.
Enternecedora ilusão maternal! Cosette continuava a ser para ela a criancinha de
colo.
— Por ora não, porque ainda tem febre — tornou o médico. — A presença de sua filha
agitá-la-ia e far-lhe-ia mal. É preciso, primeiro que tudo, restabelecer-se.
Fantine interrompeu-o impetuosamente:
— Mas eu já estou boa! Afianço-lhe que já não tenho nada! É tolo este médico!
Então... quero ver minha filha!
— Bem vê — disse o médico — o modo porque se inquieta. Enquanto estiver nesse
estado hei de opor-me sempre a que lhe deixem ver amenina. Não é bastante vê-la, é
preciso que viva para ela. Quando se mostrar mais razoável eu mesmo a trarei.
A pobre mãe curvou a cabeça.
— Perdoe-me, senhor doutor, peço-lhe que me perdoe. Noutro tempo não teria
falado como o fiz agora, mas têm-me sucedido tantas desgraças que às vezes nem sei o
que digo. Compreendo muito bem, o senhor receia alguma comoção; esperarei quanto
quiser, mas juro-lhe que me não faria mal vê-la. Eu vejo-a, desde ontem à noite que não tiro os olhos dela. Quer até que lhe diga? Se a trouxessem agora falar-lhe-ia muito
devagarinho. Aí está. Pois não é natural que eu deseje ver a minha filha, a quem
expressamente foram buscar a Monƞermeil? Eu não estou zangada. Tenho a certeza de
que vou ser feliz. Toda a noite estive vendo coisas brancas e rostos que se sorriam para
mim. Quando o senhor doutor quiser, traga-me Cosette. Já não tenho febre, já estou
curada, sei muito bem que não tenho nada, mas vou estar como se me achasse doente:
não me hei de mexer, para fazer a vontade às senhoras que aqui estão. Quando virem
que estou muito tranquila, hão de dizer: não há remédio senão entregar-lhe a filha.
Madelaine sentou-se numa cadeira que estava ao lado da cama, Fantine voltou-se
para ele, fazendo visíveis esforços para parecer tranquila e prudente, como ela dizia com
o enfraquecimento da doença que se assemelha à infância, a fim de que, vendo-a tão
pacífica, não tivessem dificuldade em lhe levarem Cosette.
Entretanto, mesmo contendo-se, não podia abster-se de dirigir a Madelaine
intermináveis perguntas:
— Foi boa a sua jornada, senhor maire? Que bondade a sua em ir buscá-la! Diga-me
só como ela está. Veio bem pelo caminho? Decerto não me conhece? Há tanto tempo,
por força se esqueceu de mim, pobre anjinho! As crianças não têm memória, são como
os passarinhos. Hoje veem uma coisa, amanhã outra, e não pensam em nada. E ela tem
roupa branca? Os Thenardier traziam-na limpa? Alimentavam-na bem? Se soubesse
como eu sofria dirigindo a mim mesma todas estas perguntas no meio da minha miséria!
Agora já não é assim! Estou muito alegre! Como eu desejo vê-la! Achou-a bonita, senhor
maire? Não é bonita a minha filha? O senhor havia de sentir bastante frio na diligência.
Não a podiam trazer só por um bocadinho? Levavam-na logo outra vez! Diga, senhor
maire! Se o senhor quisesse! O senhor é quem manda aqui!
Madelaine pegou-lhe na mão.
— Cosette é bonita — disse ele — e passa excelentemente. Há de vê-la em breve, mas
por agora sossegue. Está falando com muita vivacidade e depois descobre os braços, o
que lhe faz aumentar a tosse.
Com efeito, a tosse interrompia-a de momento a momento.
Fantine não respondeu coisa alguma, receou ter comprometido por algumas
expressões demasiadamente apaixonadas a confiança que desejava inspirar, e passou a
dizer coisas indiferentes.
— Monƞermeil é uma terra bonita, não é verdade? No Verão vai lá muita gente
passear. Os Thenardier fazem negócio? Por ali há pouco trânsito, e depois a estalagem
que eles têm é uma espécie de baiuca.
Madelaine segurava-lhe ainda a mão e contemplava-a com angústia. Era evidente que
fora ali para lhe dizer coisas, perante as quais o pensamento parecia hesitar.
O médico, tendo feito a sua visita, retirara-se. Só ficara junto deles a irmã Simplícia!
De repente, no meio do silêncio, Fantine exclamou:
— Ouço-a, meu Deus! Ouço-a!
Estendeu os braços para que se conservassem silenciosos, conteve a respiração e
aplicou ouvido como escutando.
Era uma criança que andava a brincar no pátio, talvez a filha de alguma operária. Era
este um dos acasos que se encontram sempre e que parece fazerem parte do misterioso
cenário dos acontecimentos lúgubres. A criança era uma rapariguinha, que andava
correndo de um lado para o outro, rindo e cantando em voz alta. Ah! Ao que se aliam
muitas vezes os brinquedos de crianças! Era esta pequenina que Fantine ouvia cantar.
— É a minha Cosette! — tornou ela. — Bem lhe conheço a voz!
A criança afastou-se pelo mesmo modo porque se aproximara, a voz deixou de se
ouvir. Fantine escutou ainda por algum tempo, depois o rosto anuviou-se e o senhor
Madelaine ouviu-a dizer em voz baixa:
— Sempre é muito mau este médico em não me deixar ver a minha filha! Se ele tem
tão má cara!
Todavia, o fundo risonho das suas ideias reapareceu. Com a cabeça no travesseiro
continuou a falar:
— Como nós vamos ser felizes! Em primeiro lugar havemos de ter um jardinzinho, o
senhor Madelaine prometeu-me. A minha filha há de brincar no jardim. Ela já deve
conhecer as letras, hei de fazê-la soletrar. Como hei de gostar de a ver correr atrás das
borboletas! E depois há de ir à sua primeira comunhão. É verdade! Quando irá ela à
primeira comunhão? Um... dois... três... quatro... tem sete anos. Há de levar um véu
branco e meias abertas, há de parecer uma mulherzinha. Oh, minha boa irmã, então não
sou eu doida?! Pensar já na primeira comunhão da minha filha!
E, dizendo isto, riu-se.
Madelaine largara a mão de Fantine. Escutava o que ela dizia como se escuta o sibilar
do vento, com os olhos no chão e o espírito mergulhado em reflexões sem fundo. A
pobre mãe calou-se de repente, o que o fez erguer maquinalmente a cabeça. Fantine
tornara-se medonha. Não só não falava, mas parecia nem respirar, estava quase sentada
na cama, o ombro magríssimo saía-lhe da camisa, o rosto pouco antes radiante, estava
lívido e os olhos, parecendo ainda maiores por efeito do terror, fitavam-se na
extremidade oposta do quarto, como se ali estivesse algum objeto tremendo.
— Jesus! — exclamou Madelaine. — O que tem, Fantine?
A doente não lhe respondeu, nem afastou os olhos do que quer que era que julgava
ver e, tocando-lhe no braço com uma das mãos, fez-lhe com a outra sinal para que
olhasse para trás de si.
Madelaine voltou-se e viu Javert.
continua na página 225...
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Victor-Marie Hugo (1802—1885) foi um novelista, poeta, dramaturgo, ensaísta, artista, estadista e ativista pelos direitos humanos francês de grande atuação política em seu país. É autor de Les Misérables e de Notre-Dame de Paris, entre diversas outras obras clássicas de fama e renome mundial.
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Os Miseráveis: Fantine, Livro Oitavo - II — Fantine feliz
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Victor Hugo
OS MISERÁVEIS
Título original: Les Misérables (1862)
Tradução: Francisco Ferreira da Silva Vieira
OS MISERÁVEIS
Título original: Les Misérables (1862)
Tradução: Francisco Ferreira da Silva Vieira
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