Aluísio Azevedo
XVI
.
A essas horas Piedade de Jesus ainda esperava pelo marido.
Ouvira, assentada impaciente à porta de sua casa, darem oito horas, oito e meia; nove, nove e meia.
“Que teria acontecido, Mãe Santíssima?... Pois o homem ainda não estava pronto de todo e punha-se
ao fresco, mal engolia o jantar, para demorar-se daquele modo?... Ele que nunca fora capaz de
semelhantes tonteiras!...”
- Dez horas! Valha-me Nosso Senhor Jesus Cristo!
Foi até o portão da estalagem, perguntou a conhecidos que passavam se tinham visto Jerônimo;
ninguém dava noticias dele. Saiu, correu à esquina da rua; um silêncio de cansaço bocejava naquele
resto de domingo; às dez e meia recolheu-se sobressaltada, com o coração a sair-lhe pela garganta, o
ouvido alerta, para que ela acudisse ao primeiro toque na porta; deitou-se sem tirar a saia, nem
apagar de todo o candeeiro. A ceia frugal de leite fervido e queijo assado com açúcar e manteiga
ficou intacta sobre a mesa.
Não conseguiu dormir: trabalhava-lhe a cabeça, afastando para longe o sono. Começou a imaginar
perigos, rolos, em que o seu homem recebia novas navalhadas; Firmo figurava em todas as cenas do
delírio; em todas elas havia sangue. Afinal, quando, depois de muito virar de um para outro lado do
colchão, a infeliz ia caindo em modorra, o mais leve rumor lá fora a fazia erguer-se de pulo e correr à
rótula da janela. Mas não era o cavouqueiro, da primeira, nem da segunda, nem de nenhuma das
vezes.
Quando principiou a chover, Piedade ficou ainda mais aflita; na sua sobreexcitação afigurava-se-lhe
agora que o marido estava sobre as águas do mar, embarcado, entregue unicamente à proteção da
Virgem, em meio de um temporal medonho. Ajoelhou-se defronte do oratório e rezou com a voz
emaranhada por uma agonia sufocadora. A cada trovão redobrava o seu sobressalto. E ela, de joelhos,
os olhos fitos na imagem de Nossa Senhora, sem consciência do tempo que corria, arfava soluçando.
De repente, ergueu-se, muito admirada de se ver sozinha, como se só naquele instante dera pela falta
do marido a seu lado. Olhou em torno de si, espavorida, com vontade de chorar, de pedir socorro; as
sombras espichadas em volta do candeeiro, tracejando trêmulas pelas paredes e pelo teto, pareciam
querer dizer-lhe alguma coisa misteriosa. Um par de calças, dependurado à porta do quarto, com um
paletó e um chapéu por cima, representou-lhe de relance o vulto de um enforcado, a mexer com as
pernas. Benzeu-se. Quis saber que horas eram e não pôde; afigurava-se-lhe terem decorrido já três
dias pelo menos durante aquela aflição. Calculou que não tardaria a amanhecer, se é que ainda
amanheceria: se é que aquela noite infernal não se fosse prolongando infinitamente, sem nunca mais
aparecer o sol! Bebeu um copo de água, bem cheio, apesar de haver pouco antes tomado outro, e
ficou imóvel, de ouvido atento, na expectativa de escutar as horas de algum relógio da vizinhança.
A chuva diminuíra e os ventos principiavam a soprar com desespero. Lá de fora a noite dizia-lhe
segredos pelo buraco da fechadura e pelas frinchas do telhado e das portas; a cada assobio a mísera
julgava ver surgir um espectro que vinha contar-lhe a morte de Jerônimo. O desejo impaciente de
saber que horas eram punha-a doida: foi à janela, abriu-a; uma rajada úmida entrou na sala,
esfuziando, e apagou a luz. Piedade soltou um grito e começou a procurar a caixa de fósforos, aos
esbarrões, sem conseguir reconhecer os objetos que tateava. Esteve a perder os sentidos; afinal achou
os fósforos, acendeu de novo o candeeiro e fechou a janela. Entrara-lhe um pouco de chuva em casa;
sentiu a roupa molhada no corpo; tomou um novo copo de água; um calafrio de febre percorreu-lhe a
espinha, e ela atirou-se para a cama, batendo o queixo, e meteu-se debaixo dos lençóis, a tiritar de
febre. Veio de novo a modorra, fechou os olhos; mas ergueu-se logo, assentando-se no colchão;
parecia-lhe ter ouvido alguém falar lá fora, na rua; o calafrio voltou; ela, trêmula, procurava escutar.
Se se não enganava, distinguira vozes abafadas, conversando, e as vozes eram de homem; deixou-se
ficar à escuta, concheando a mão atrás da orelha; depois ouviu baterem, não na sua porta, mas lá
muito mais para diante, na casa da das Dores, da Rita, ou da Augusta. “Devia ser o Alexandre que
voltava do serviço...” Quis ir ter com ele e pedir-lhe notícias de Jerôrimo, o calafrio, porém, obrigou-a a ficar debaixo das cobertas.
Às cinco horas levantou-se de novo com um salto. “Já havia gente lá fora com certeza!...” Ouvira
ranger a primeira porta; abriu a janela, mas ainda estava tão escuro que se não distinguia patavina.
Era uma preguiçosa madrugada de agosto, nebulosa, úmida; parecia disposta a resistir ao dia. “Ó
senhores! aquela noite dos diachos não acabaria nunca mais?...” Entretanto, adivinhava-se que ia
amanhecer. Piedade ouviu dentro do pátio, do lado contrário à sua casa, um zunzum de duas vozes
cochichando com interesse. “Virgem do céu! dir-se-ia a voz do seu homem! E a outra era voz de
mulher, credo! Ilusão sua com certeza! ela essa noite estava para ouvir o que não se dava...” Mas
aqueles cochichos dialogados na escuridão causavam-lhe extremo alvoroço. “Não! Como poderia ser
ele?... Que loucura! se o homem estivesse ali teria sem dúvida procurado a casa!...” E os cochichos
persistiam, enquanto Piedade, toda ouvidos, estalava de agonia.
- Jeromo! gritou ela.
As vozes calaram-se logo, fazendo o silêncio completo: depois nada mais se ouviu
Piedade ficou à janela. As trevas dissolveram-se afinal; uma claridade triste formou-se no nascente e
foi, a pouco e pouco, se derramando pelo espaço. O céu era uma argamassa cinzenta e gorda. O
cortiço acordava com o remancho das segundas-feiras; ouviam-se os pigarros das ressacas de parati.
As casinhas abriam-se; vultos espreguiçados vinham bocejando fazer a sua lavagem à bica; as
chaminés principiavam a fumegar; recendia o cheiro do café torrado.
Piedade atirou um xale em cima dos ombros e saiu ao pátio; a Machona, que acabava de aparecer à
porta do número 7 com um berro para acordar a família de uma só vez, gritou-lhe:
- Bons dias, vizinha! Seu marido como vai? Melhor?
Piedade soltou um suspiro.
- Ai, não mo pergunte, Sóra Leandra!
- Piorou, filha?
- Não veio esta noite pra casa...
- Olha o demo! Como não veio? Onde ficou ele então?
- Cá está quem não lho sabe responder.
- Ora já se viu?!
- Estou com o miolo que é água de bacalhau! Não preguei olho durante a noite! Forte desgraça a
minha!
- Teria a ele lhe sucedido alguma?...
Piedade pôs-se a soluçar, enxugando as lágrimas no xale de lã; ao passo que a outra, com a sua voz
rouca e forte, que nem o som de uma trompa enferrujada, passava adiante a nova de que o Jerônimo
não se recolhera aquela noite à estalagem.
- Talvez voltasse pro hospital... obtemperou Augusta, que lavava junto a uma tina a gaiola do seu
papagaio.
- Mas ele ontem veio de muda... contrapôs Leandra.
- E lá não se entra depois das oito horas da noite, acrescentou outra lavadeira.
E os comentários multiplicavam-se, palpitando de todos os lados, numa boa disposição para fazer
daquilo o escândalo do dia. Piedade respondia friamente às perguntas curiosas que lhe dirigiam as
companheiras; estava triste e sucumbida; não se lavou, não mudou de roupa, não comeu nada,
porque a comida lhe crescia na boca e não lhe passava da garganta; o que fazia só era chorar e
lamentar-se.
- Forte desgraça a minha! repetia a infeliz a cada instante.
- Se vais assim, filha, estás bem arranjada! exclamou-lhe a Machona, chegando à porta de sua casa a
dar dentadas num pão recheado de manteiga. Que diabo, criatura! O homem não te morreu, pra
estares agora ai a carpir desse modo!
- Sei-o eu lá se me morreu?... disse Piedade entre soluços. Vi tanta coisa esta noite!...
- Ele te apareceu nos sonhos?... perguntou Leandra com assombro.
- Nos sonhos não, que não dormi, mas vi a modos que fantasmas...
E chorava.
- Ai, credo, filha!
- Estou desgraçada!
- Se te apareceram almas, decerto; mas põe a fé em Deus, mulher! e não te rales desse modo, que a
desgraça pode ser maior! O choro puxa muita coisa!
- Ai, o meu rico homem!
E o mugido lúgubre daquela pobre criatura abandonada antepunha à rude agitação do cortiço uma
nota lamentosa e tristonha de uma vaca chamando ao longe, perdida ao cair da noite num lugar
desconhecido e agreste. Mas o trabalho aquecia já de uma ponta à outra da estalagem; ria-se,
cantava-se, soltava-se a língua; o formigueiro assanhava-se com as compras para o almoço; os
mercadores entravam e saiam: a máquina de massas principiava a bufar. E Piedade, assentada à
soleira de sua porta, paciente e ululante como um cão que espera pelo dono, maldizia a hora em que
saíra da sua terra, e parecia disposta a morrer ali mesmo, naquele limiar de granito, onde ela, tantas
vezes, com a cabeça encostada ao ombro do seu homem, suspirava feliz, ouvindo gemer na guitarra
dele os queridos fados de além-mar.
E Jerônimo não aparecia.
Ela ergueu-se finalmente, foi lá fora ao capinzal, pôs-se a andar agitada, falando sozinha, a gesticular
forte. E nos seus movimentos de desespero, quando levantava para o céu os punhos fechados, dir-seia que não era contra o marido que se revoltava, mas sim contra aquela amaldiçoada luz alucinadora,
contra aquele sol crapuloso, que fazia ferver o sangue aos homens e metia-lhes no corpo luxúrias de
bode. Parecia rebelar-se contra aquela natureza alcoviteira, que lhe roubara o seu homem para dá-lo a
outra, porque a outra era gente do seu peito e ela não.
E maldizia soluçando a hora em que saíra da sua terra; essa boa terra cansada, velha como que
enferma; essa boa terra tranqüila, sem sobressaltos nem desvarios de juventude. Sim, lá os campos
eram frios e melancólicos, de um verde alourado e quieto, e não ardentes e esmeraldinos e afogados
em tanto sol e em tanto perfume como o deste inferno, onde em cada folha que se pisa há debaixo
um réptil venenoso, como em cada flor que desabotoa e em cada moscardo que adeja há um vírus de
lascívia. Lá, nos saudosos campos da sua terra, não se ouvia em noites de lua clara roncar a onça e o
maracajá, nem pela manhã, ao romper do dia, rilhava o bando truculento das queixadas; lá não
varava pelas florestas a anta feia e terrível, quebrando árvores; lá a surucujú não chocalhava a sua
campainha fúnebre, anunciando a morte, nem a coral esperava traidora o viajante descuidado para
lhe dar o bote certeiro e decisivo; lá o seu homem não seria anavalhado pelo ciúme de um capoeira;
lá Jerônimo seria ainda o mesmo esposo casto, silencioso e meigo; seria o mesmo lavrador triste e
contemplativo, como o gado que à tarde levanta para o céu de opala o seu olhar humilde,
compungido e bíblico.
Maldita a hora em que ela veio! Maldita! mil vezes maldita!
E tornando à casa, Piedade ainda mais se enraivecia, porque ali defronte, no número 9, a mulata
baiana, a dançadeira de chorado, a cobra assanhada, cantava alegremente, chegando de vez em
quando à janela para vir soprar fora a cinza da fornalha do seu ferro de engomar, olhando de
passagem para a direita e para a esquerda, a afetar indiferença pelo que não era de sua conta, e
desaparecendo logo, sem interromper a cantiga, muito embebida no seu serviço. Ah! essa não fez
comentários sobre o estranho procedimento de mestre Jerônimo, nem mesmo quis ouvir noticias
dele; pouco arredou o pé de dentro de casa e, nesse pouco que saiu, foi às pressas e sem dar trela a
ninguém.
Nada! que as penas e desgostos não punham a panela no fogo!
Entretanto, ah! ah! ela estava bem preocupada. Apesar do alívio que lhe trouxera ao espírito a morte
do Firmo e a despeito do seu contentamento de passar por uma vez aos braços do cavouqueiro, um
sobressalto vago e opressivo esmagava-lhe o coração e matava-a de impaciência por atirar-se à
procura de noticias sobre as ocorrências da noite; tanto assim que, às onze horas, mel percebeu que
Piedade, depois de esperar em vão pelo marido, saia aflita em busca dele, disposta a ir ao hospital, à
polícia, ao necrotério, ao diabo, contanto que não voltasse sem algum esclarecimento, ela atirou logo
o trabalho para o canto, enfiou uma saia, cruzou o xale no ombro, e ganhou o mundo, também
disposta a não voltar sem saber tintim por tintim o que havia de novo.
Foi cada uma para seu lado e só voltaram à tarde, quase ao mesmo tempo, encontrando o cortiço
cheio já e assanhado com a noticia da morte do Firmo e do terrível efeito que esta causara no
“Cabeça-de-Gato”, onde o crime era atribuído aos Carapicus, contra os quais juravam-se extremas
vinganças de desafronta. Soprava de lá, rosnando, um hálito morno de cólera mal sofrida e sequiosa
que crescia com a aproximação da noite e parecia sacudir no ar, ameaçadoramente, a irrequieta
flâmula amarela.
O sol descambava para o ocaso, indefeso, e nu, tingindo o céu de uma vermelhidão pressaga e
sinistra.
Piedade entrou carrancuda na estalagem; não vinha triste, vinha enfurecida; soubera na rua a respeito
do marido mais do que esperava. Soubera em primeiro lugar que ele estava vivo, perfeitamente vivo,
pois fora visto aquele mesmo dia, mais de uma vez, no Garnisé e na Praia da Saudade, a vagar
macambúzio; soubera, por intermédio de um rondante amigo de Alexandre, que Jerônimo surgira de
manhãzinha do capinzal perto da pedreira de João Romão, o que fazia crer viesse ele naquele
momento de casa, saindo pelos fundos do cortiço; soubera ainda que o cavouqueiro fora à Ordem
buscar a sua caixa de roupa e que, na véspera, estivera a beber à farta na venda do Pepé, de súcia
com o Zé Carlos e com o Pataca, e que depois seguiram para os lados da praia, todos três mais ou
menos no gole. Sem a menor desconfiança do crime, a desgraçada ficou convencida de que o marido
não se recolhera aquela noite à casa, porque ficara em grossa pândega com os amigos e que, voltando
tarde e bêbedo, dera-lhe para meter-se com a mulata, que o aceitou logo. “Pudera! Pois se havia
muito a deslambida não queria outra coisa!...” Com esta convicção inchou-lhe de súbito por dentro
um novelo de ciúmes, e ela correu incontinenti para a estalagem, certa de que iria encontrar o homem
e despejaria contra ele aquela tremenda tempestade de ressentimentos e despeitos acumulados, que
ameaçavam sufocá-la se não rebentassem de vez. Atravessou o cortiço sem dar palavra a ninguém e
foi direito à casa; contava encontrá-la aberta e a sua decepção foi cruel ao vê-la fechada como a
deixara. Pediu a chave à Machona, que, ao entregá-la, inquiriu sobre Jerônimo e pespegou-lhe ao
mesmo tempo a noticia do assassinato de Firmo.
Com esta nova é que Piedade não contava. Ficou lívida; um pavoroso pressentimento varou-lhe o
espírito como um raio. Afastou-se logo, com medo de falar, e foi trêmula e ofegante que abriu a porta
e meteu-se no número 35.
Atirou-se a uma cadeira. Estava morta de cansaço; não tinha comido nada esse dia e não sentia fome;
a cabeça andava-lhe à roda, as pernas pareciam-lhe de chumbo.
“Seria ele?!”... interrogou a si própria.
E os raciocínios começaram a surdir-lhe em massa, ensarilhados, atropelando-lhe a razão. Não
conseguia coordená-los; entre todas uma idéia insubordinava-se com mais teima, a perturbar as
outras, ficando superior, como uma carta maior que o resto do baralho: “Se ele matou o Firmo,
dormiu na estalagem e não veio ter comigo, é porque então deixou-me de feita pela Rita!”
Tentou fugir a semelhante hipótese; repeliu-a indignada. Não! não era possível que o Jerônimo, seu
marido de tanto tempo, o pai de sua filha, um homem a quem ela nunca dera razão de queixa e a
quem sempre respeitara e quisera com o mesmo carinho e com a mesma dedicação, a abandonasse
de um momento para outro; e por quem?! por uma não sei que diga! um diabo de uma mulata
assanhada, que tão depressa era de Pedro como de Paulo! uma sirigaita, que vivia mais para a folia
do que para o trabalho! uma peste, que... Não! Qual! Era lá possível?! Mas então por que ele não
viera?... por que não vinha?... por que não dava noticias suas?... por que fora pela manhã à Ordem
buscar a caixa da roupa?...
O Roberto Papa-Defuntos dissera-lhe que o encontrara às duas da tarde ali perto, ao dobrar da Rua
Bambina, e que até pararam um instante para conversar. Com mais alguns passos chegado à casa!
Seria possível, santos do céu! que o seu homem estivesse disposto a nunca mais tornar para junto
dela?
Nisto entrou a outra, acompanhada por um pequeno descalço. Vinha satisfeita; estivera com
Jerônimo, jantaram juntos, numa casa de pasto; ficara tudo combinado; arranjara-se o ninho. Não se
mudaria logo para não dar que falar na estalagem, mas levaria alguma roupa e os objetos mais
indispensáveis e que não dessem na vista por ocasião do transporte. Voltaria no dia seguinte ao
cortiço, onde continuaria a trabalhar; à noite iria ter com o novo amante, e, no fim de uma semana -
zás! fazia-se a mudança completa, e adeus coração! - Por aqui é o caminho! O cavouqueiro, pelo seu
lado, mandaria uma carta a João Romão, despedindo-se do seu serviço, e outra à mulher, dizendo
com boas palavras que, por uma dessas fatalidades de que nenhuma criatura está livre, deixava de
viver em companhia dela, mas que lhe conservaria a mesma estima e continuaria a pagar o colégio
da filha; e, feito isto, pronto! entraria em vida nova, senhor da sua mulata, livres e sozinhos,
independentes, vivendo um para o outro, numa eterna embriaguez de gozos.
Mas, na ocasião em que a baiana, seguida pelo pequeno, passava defronte da porta de Piedade, esta
deu um salto da cadeira e gritou-lhe:
- Faz favor?
- Que é? resmungou Rita, parando sem voltar senão o rosto, e já a dizer no seu todo de impaciência
que não estava disposta a muita conversa.
- Diga-me uma coisa, inquiriu aquela; você muda-se?
A mulata não contava com semelhante pergunta, assim à queima-roupa; ficou calada sem achar o que
responder.
- Muda-se, não é verdade? insistiu a outra, fazendo-se vermelha.
- E o que tem você com isso? Mude-me ou não, não lhe tenho de dar satisfações! Meta-se com a sua
vida! Ora esta!
- Com a minha vida é que te meteste tu, cigana! exclamou a portuguesa, sem se conter e avançando
para a porta com ímpeto.
- Hein?! Repete, cutruca ordinária! berrou a mulata, dando um passo em frente.
- Pensas que já não sei de tudo? Maleficiaste-me o homem e agora carregas-me com ele! Que a má
coisa te saiba, cabra do inferno! Mas deixa estar que hás de amargar o que o diabo não quis! quem to
jura sou eu!
- Pula cá pra fora, perua choca, se és capaz!
Em torno de Rita já o povaréu se reunia alvoroçado; as lavadeiras deixaram logo as tinas e vinham,
com os braços nus, cheios de espuma de sabão, estacionar ali ao pé, formando roda, silenciosas, sem
nenhuma delas querer meter-se no barulho. Os homens riam e atiravam chufas às duas contendoras,
como sucedia sempre quando no cortiço qualquer mulher se disputava com outra.
- Isca! Isca! gritavam eles.
Ao desafio da mulata, Piedade saltara ao pátio, armada com um dos seus tamancos. Uma pedrada
recebeu-a em caminho, rachando-lhe a pele do queixo, ao que ela respondeu desfechando contra a
adversária uma formidável pancada na cabeça.
E pegaram-se logo a unhas e dentes.
Por algum tempo lutaram de pé, engalfinhadas, no meio de grande algazarra dos circunstantes. João
Romão acudiu e quis separá-las; todos protestaram. A família do Miranda assomou à janela, tomando
ainda o café de depois do jantar, indiferente, já habituada àquelas cenas. Dois partidos todavia se
formavam em torno das lutadoras; quase todos os brasileiros eram pela Rita e quase todos os
portugueses pela outra. Discutia-se com febre a superioridade de cada qual delas; rebentavam gritos
de entusiasmo a cada mossa que qualquer das duas recebia; e estas, sem se desunharem, tinham já
arranhões e mordeduras por todo o busto.
Quando menos se esperava, ouviu-se um baque pesado e viu-se Piedade de bruços no chão e a Rita
por cima, escarranchada sobre as suas largas ancas, a socar-lhe o cachaço de murros contínuos,
desgrenhada, rota, ofegante, os cabelos caldos sobre a cara, gritando vitoriosa, com a boca correndo
sangue:
- Toma pro teu tabaco! Toma, galinha podre! Toma, pra não te meteres comigo! Toma! Toma, baiacu
da praia!
Os portugueses precipitaram-se para tirar Piedade de debaixo da mulata. Os brasileiros opuseram-se
ferozmente.
- Não pode!
- Enche!
- Não deixa!
- Não tira!
- Entra! Entra!
E as palavras “galego” e “cabra” cruzaram-se de todos os pontos, como bofetadas. Houve um vavau
rápido e surdo, e logo em seguida um formidável rolo, um rolo a valer, não mais de duas mulheres,
mas de uns quarenta e tantos homens de pulso, rebentou como um terremoto. As cercas e os jiraus
desapareceram do chão e estilhaçaram-se no ar, estalando em descarga; ao passo que numa berraria
infernal, num fecha-fecha de formigueiro em guerra, aquela onda viva ia arrastando o que topava no
caminho; barracas e tinas, baldes, regadores e caixões de planta, tudo rolava entre aquela centena de
pernas confundidas e doidas. Das janelas do Miranda apitava-se com fúria; da rua, em todo o
quarteirão, novos apitos respondiam; dos fundos do cortiço e pela frente surgia povo e mais povo. O
pátio estava quase cheio; ninguém mais se entendia; todos davam e todos apanhavam; mulheres e
crianças berravam. João Romão, clamando furioso, sentia-se impotente para conter semelhantes
demônios. “Fazer rolo aquela hora, que imprudência!” Não conseguiu fechar as portas da venda, nem
o portão da estalagem; guardou às pressas na burra o que havia em dinheiro na gaveta, e, armando-se
com uma tranca de ferro, pôs-se de sentinela às prateleiras, disposto a abrir o casco ao primeiro que
se animasse a saltar-lhe o balcão. Bertoleza, lá dentro na cozinha, aprontava uma grande chaleira de
água quente, para defender com ela a propriedade do seu homem. E o rolo a ferver lá fora, cada vez
mais inflamado com um terrível sopro de rivalidade nacional. Ouviam-se, num clamor de pragas e
gemidos, vivas a Portugal e vivas ao Brasil. De vez em quando, o povaréu, que continuava a crescer,
afastava-se em massa, rugindo de medo, mas tornava logo, como a onda no refluxo dos mares. A
polícia apareceu e não se achou com ânimo de entrar, antes de vir um reforço de praças, que um
permanente fora buscar a galope.
E o rolo fervia.
Mas, no melhor da lata, ouvia-se na rua um coro de vozes que se aproximavam das bandas do
“Cabeça-de-Gato”. Era o canto de guerra dos capoeiras do outro cortiço, que vinham dar batalha aos
Carapicus, pra vingar com sangue a morte de Firmo, seu chefe de malta.
Continua página 102...
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Leia também:
O Cortiço - XVI: Piedade de Jesus ainda esperava pelo marido
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Aluísio Azevedo (Aluísio Tancredo Gonçalves de Azevedo), caricaturista, jornalista, romancista e diplomata, nasceu em São Luís, MA, em 14 de abril de 1857, e faleceu em Buenos Aires, Argentina, em 21 de janeiro de 1913.
Era filho do vice-cônsul português David Gonçalves de Azevedo e de D. Emília Amália Pinto de Magalhães e irmão mais moço do comediógrafo Artur Azevedo. Sua mãe havia casado, aos 17 anos, com um comerciante português. O temperamento brutal do marido determinou o fim do casamento. Emília refugiou-se em casa de amigos, até conhecer o vice-cônsul de Portugal, o jovem viúvo David. Os dois passaram a viver juntos, sem contraírem segundas núpcias, o que à época foi considerado um escândalo na sociedade maranhense.
Da infância à adolescência, Aluísio estudou em São Luís e trabalhou como caixeiro e guarda-livros. Desde cedo revelou grande interesse pelo desenho e pela pintura, o que certamente o auxiliou na aquisição da técnica que empregará mais tarde ao caracterizar os personagens de seus romances. Em 1876, embarcou para o Rio de Janeiro, onde já se encontrava o irmão mais velho, Artur. Matriculou-se na Imperial Academia de Belas Artes, hoje Escola Nacional de Belas Artes. Para manter-se fazia caricaturas para os jornais da época, como O Fígaro, O Mequetrefe, Zig-Zag e A Semana Ilustrada. A partir desses “bonecos”, que conservava sobre a mesa de trabalho, escrevia cenas de romances.
A morte do pai, em 1878, obrigou-o a voltar a São Luís, para tomar conta da família. Ali começou a carreira de escritor, com a publicação, em 1879, do romance Uma lágrima de mulher, típico dramalhão romântico. Ajuda a lançar e colabora com o jornal anticlerical O Pensador, que defendia a abolição da escravatura, enquanto os padres mostravam-se contrários a ela. Em 1881, Aluísio lança O mulato, romance que causou escândalo entre a sociedade maranhense pela crua linguagem naturalista e pelo assunto tratado: o preconceito racial. O romance teve grande sucesso, foi bem recebido na Corte como exemplo de Naturalismo, e Aluísio pôde retornar para o Rio de Janeiro, embarcando em 7 de setembro de 1881, decidido a ganhar a vida como escritor.
Quase todos os jornais da época tinham folhetins, e foi num deles que Aluísio passou a publicar seus romances. A princípio, eram obras menores, escritas apenas para garantir a sua sobrevivência. Depois, surgiu nova preocupação no universo de Aluísio: a observação e análise dos agrupamentos humanos, a degradação das casas de pensão e sua exploração pelo imigrante, principalmente o português. Dessa preocupação resultariam duas de suas melhores obras: Casa de pensão (1884) e O cortiço (1890). De 1882 a 1895 escreveu sem interrupção romances, contos e crônicas, além de peças de teatro em colaboração com Artur de Azevedo e Emílio Rouède.
Em 1895 ingressou na diplomacia, momento em que praticamente cessa sua atividade literária. O primeiro posto foi em Vigo, na Espanha. Depois serviu no Japão, na Argentina, na Inglaterra e na Itália. Passara a viver em companhia de D. Pastora Luquez, de nacionalidade argentina, junto com os dois filhos, Pastor e Zulema, por ele adotados. Em 1910, foi nomeado cônsul de 1ª. classe, sendo removido para Assunção. Buenos Aires foi seu último posto. Ali faleceu, aos 56 anos. Foi enterrado naquela cidade. Seis anos depois, por uma iniciativa de Coelho Neto, a urna funerária de Aluísio Azevedo chegou a São Luís, onde o escritor foi sepultado.
Aluísio Azevedo (Aluísio Tancredo Gonçalves de Azevedo), caricaturista, jornalista, romancista e diplomata, nasceu em São Luís, MA, em 14 de abril de 1857, e faleceu em Buenos Aires, Argentina, em 21 de janeiro de 1913.
Era filho do vice-cônsul português David Gonçalves de Azevedo e de D. Emília Amália Pinto de Magalhães e irmão mais moço do comediógrafo Artur Azevedo. Sua mãe havia casado, aos 17 anos, com um comerciante português. O temperamento brutal do marido determinou o fim do casamento. Emília refugiou-se em casa de amigos, até conhecer o vice-cônsul de Portugal, o jovem viúvo David. Os dois passaram a viver juntos, sem contraírem segundas núpcias, o que à época foi considerado um escândalo na sociedade maranhense.
Da infância à adolescência, Aluísio estudou em São Luís e trabalhou como caixeiro e guarda-livros. Desde cedo revelou grande interesse pelo desenho e pela pintura, o que certamente o auxiliou na aquisição da técnica que empregará mais tarde ao caracterizar os personagens de seus romances. Em 1876, embarcou para o Rio de Janeiro, onde já se encontrava o irmão mais velho, Artur. Matriculou-se na Imperial Academia de Belas Artes, hoje Escola Nacional de Belas Artes. Para manter-se fazia caricaturas para os jornais da época, como O Fígaro, O Mequetrefe, Zig-Zag e A Semana Ilustrada. A partir desses “bonecos”, que conservava sobre a mesa de trabalho, escrevia cenas de romances.
A morte do pai, em 1878, obrigou-o a voltar a São Luís, para tomar conta da família. Ali começou a carreira de escritor, com a publicação, em 1879, do romance Uma lágrima de mulher, típico dramalhão romântico. Ajuda a lançar e colabora com o jornal anticlerical O Pensador, que defendia a abolição da escravatura, enquanto os padres mostravam-se contrários a ela. Em 1881, Aluísio lança O mulato, romance que causou escândalo entre a sociedade maranhense pela crua linguagem naturalista e pelo assunto tratado: o preconceito racial. O romance teve grande sucesso, foi bem recebido na Corte como exemplo de Naturalismo, e Aluísio pôde retornar para o Rio de Janeiro, embarcando em 7 de setembro de 1881, decidido a ganhar a vida como escritor.
Quase todos os jornais da época tinham folhetins, e foi num deles que Aluísio passou a publicar seus romances. A princípio, eram obras menores, escritas apenas para garantir a sua sobrevivência. Depois, surgiu nova preocupação no universo de Aluísio: a observação e análise dos agrupamentos humanos, a degradação das casas de pensão e sua exploração pelo imigrante, principalmente o português. Dessa preocupação resultariam duas de suas melhores obras: Casa de pensão (1884) e O cortiço (1890). De 1882 a 1895 escreveu sem interrupção romances, contos e crônicas, além de peças de teatro em colaboração com Artur de Azevedo e Emílio Rouède.
Em 1895 ingressou na diplomacia, momento em que praticamente cessa sua atividade literária. O primeiro posto foi em Vigo, na Espanha. Depois serviu no Japão, na Argentina, na Inglaterra e na Itália. Passara a viver em companhia de D. Pastora Luquez, de nacionalidade argentina, junto com os dois filhos, Pastor e Zulema, por ele adotados. Em 1910, foi nomeado cônsul de 1ª. classe, sendo removido para Assunção. Buenos Aires foi seu último posto. Ali faleceu, aos 56 anos. Foi enterrado naquela cidade. Seis anos depois, por uma iniciativa de Coelho Neto, a urna funerária de Aluísio Azevedo chegou a São Luís, onde o escritor foi sepultado.
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