O Apanhador no Campo de Centeio
J.D. Salinger
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Depois que a tal de Sunny foi embora, me sentei numa cadeira e fumei uns dois cigarros. O dia estava começando a clarear. Puxa, eu estava nas últimas. Ninguém imagina como eu estava deprimido. Foi então que comecei a falar mais ou menos em voz alta com o Allie. Às vezes, quando estou muito deprimido, costumo fazer isso. Fico dizendo a ele para apanhar a bicicleta em casa e me encontrar em frente da casa do Bobby Fallon. O Bobby Fallon morava bem pertinho de nós no Maine - isto é, há muitos anos atrás. Um dia, Bobby e eu combinamos ir de bicicleta até o Lago Sedebego. Íamos levar um lanche e tudo, e nossas espingardinhas de ar comprimido - éramos garotos e estávamos pensando em dar uns tiros. Afinal o Allie ouviu nossa conversa e quis ir também, mas eu não deixei, dizendo que ele era muito criança. Por isso, hoje em dia, de vez em quando - quando estou muito deprimido - fico dizendo a ele: "Tá bem, vai em casa, apanha a bicicleta e me encontra em frente da casa do Bobby. Vai depressa". Não é que eu não costumasse levá-lo comigo quando ia a esses lugares. Eu levava. Mas naquele dia não deixei. Ele não ficou magoado por isso - nunca ficava magoado por coisa alguma - mas, mesmo assim, penso sempre nisso quando estou muito deprimido.
Afinal, tirei a roupa e me deitei. Na cama, me deu uma bruta vontade de rezar ou coisa parecida. Mas
não consegui. Não é sempre que consigo rezar quando tenho vontade. Em primeiro lugar, sou meio ateu.
Gosto de Jesus e tudo, mas não dou muita bola para a maioria das outras coisas da Bíblia. Os Apóstolos, por
exemplo. Pra falar a verdade, os Apóstolos são uns chatos. Depois que Jesus morreu e tudo eles trabalharam
direitinho, mas, enquanto Ele estava vivo, não serviam pra nada. Deixavam Ele na mão o tempo todo. Gosto
de todo mundo na Bíblia mais que dos Apóstolos. Pra dizer a verdade, o cara que eu mais gosto na Bíblia é
aquele maluco que morava nos túmulos e vivia se cortando com as pedras. Gosto dez vezes mais daquele
filho da mãe do que dos Apóstolos. Quando eu estudava no Colégio Whooton, discutia um bocado sobre isso
com um garoto chamado Arthur Childs, que morava no fim do corredor. O tal do Childs era Quaker e tudo, e
não largava a Bíblia. Era um bom menino e eu gostava dele, mas nunca chegamos a um acordo sobre uma
porção de troços da Bíblia, principalmente os Apóstolos. Ele cansou de repetir que, se eu não gostava dos
Apóstolos, então não gostava de Jesus nem nada. Se foram escolhidos por Jesus, a gente tinha que gostar
deles. Eu respondia que sabia que tinha sido Jesus quem tinha escolhido, mas que a escolha tinha sido feita
ao acaso, porque Ele não teve tempo de andar por aí analisando meio mundo. Eu não culpava Jesus nem
nada. Ele não tinha culpa de não ter tido tempo. Me lembro que um dia eu perguntei ao tal de Childs se ele
achava que Judas, o cara que traiu Jesus e tudo, tinha ido para o inferno depois que se suicidou. Childs
respondeu que não tinha nem dúvida. Aí é que discordei dele. Eu disse que era capaz de apostar um milhão
que Jesus não tinha mandado Judas para o inferno. Até hoje eu botava dinheiro, se tivesse um milhão. Acho
que qualquer um dos Apóstolos teria mandado ele para o inferno - e o mais depressa possível - mas aposto
qualquer coisa como Jesus não mandou. O tal de Childs disse que o problema comigo é que eu não ia à missa
nem nada. De certo modo, ele tinha razão. Não vou mesmo. Em primeiro lugar, meus pais são de religiões
diferentes e por isso nós lá em casa somos todos ateus. Pra falar a verdade, não suporto padre. Todos os que
conheci, nas escolas por onde andei, tinham essa voz de juízo final quando faziam os sermões. Juro por Deus
que detesto isso. Não sei por que diabo eles não falam com uma voz normal. E é por isso que soam tão
cretinos quando falam.
De qualquer maneira, não consegui rezar droga nenhuma. Era só começar e me lembrava logo da tal
Sunny me chamando de bobalhão. Acabei sentando na cama e fumando mais um cigarro. Estava com um
gosto horrível. Acho que já tinha fumado uns dois maços desde que havia saído do Pencey.
Eu ainda estava sentado ali na cama, fumando, quando de repente alguém bateu na porta. Fiquei
torcendo para que as pancadas não fossem na minha porta, mas sabia muito bem que eram. Não sei como é
que eu sabia, mas o fato é que eu sabia. E também sabia quem era. Sou meio vidente.
- Quem é? - perguntei. Eu estava meio apavorado. Sou um bocado medroso para esse tipo de negócio.
Ninguém respondeu. Bateram de novo, com mais força. Acabei me levantando, só de pijama, e abri a
porta. Nem precisei acender a luz, porque já era dia. Dei de cara com a Sunny e o Maurice, o cafetão do
elevador.
- Quê que há? Quê que vocês querem? - perguntei com uma voz que não era lá das mais firmes.
- Pouca coisa - o tal de Maurice disse. - Só cinco dólares.
Maurice era o único a falar. A tal de Sunny só ficava lá em pé, de boca aberta e tudo.
- Já paguei. Dei cinco dólares a ela. Pode perguntar.
Puxa, como minha voz estava tremendo.
- São dez, chefe. Dez por uma bimbada e quinze até meio-dia. Eu te avisei.
- Não foi isso que você disse. Você disse cinco dólares por uma bimbada. Quinze até o meio-dia está
certo, mas ouvi perfeitamente...
- Abre aí, chefe.
- Pra quê? - perguntei.
Puxa, meu coração batia tanto que por pouco não me derrubava no chão. Queria, pelo menos, estar
vestido. É horrível a gente estar só de pijama quando acontece um troço desses.
- Vamos logo, chefe - Maurice disse. Aí me deu um empurrão, com aquela mão nojenta. Quase caí
sentado. O filho da puta era forte pra burro. Quando dei por mim, os dois já estavam dentro do quarto.
Pareciam até os donos daquela droga. Ela sentou no peitoril da janela. O Maurice sentou na poltrona e
afrouxou o colarinho do uniforme de ascensorista. Puxa, como eu estava nervoso.
- Pronto, chefe, vai passando a nota. Tenho que voltar pro trabalho.
- Já disse mais de dez vezes. Não devo um centavo a ninguém. Já dei cinco a ela...
- Como é... Chega de conversa. Vai passando a nota.
- Por que é que eu tenho que te dar mais cinco dólares? - falei, com uma voz de cana rachada. - Você
está querendo me tapear.
O tal do Maurice desabotoou a túnica, do primeiro ao último botão. A única coisa que ele tinha embaixo
era um colarinho falso, sem camisa nem nada, e uma barrigona cabeluda.
- Ninguém tá querendo te tapear. Vai passando a nota, chefe.
- Não.
Quando disse isso, o Maurice se levantou da cadeira e começou a andar na minha direção e tudo.
Parecia que ele estava muito, muito cansado, ou então muito, muito chateado. Puxa, que medão. Me lembro
que eu estava de braços cruzados. Acho que não teria sido tão ruim se eu não estivesse só com a droga do
pijama.
- Vai passando a nota, chefe.
Ele veio direto para onde eu estava. Não sabia dizer outra coisa. Era só: "Vai passando a nota, chefe".
Era um imbecil total.
- Não.
- Chefe, você assim vai me obrigar a engrossar um pouco. Não queria fazer isso, mas tou vendo que não
tem outro jeito. Você deve cinco dólares à gente.
- Não te devo nada. Se você me bater, vou fazer um barulhão danado. Vou acordar o hotel inteiro. Até
a polícia e tudo.
Minha voz tremia feito uma filha da mãe.
- Então começa. Pode se esgoelar à vontade. Ótimo - ele falou. - Quer que seus velhos fiquem sabendo
que você passou a noite com uma puta? Um garoto da alta sociedade, como você?
Ele era um bocado vivo, lá à moda dele. Era mesmo.
- Me deixa em paz. Se você tivesse dito dez ainda vá lá. Mas ouvi perfeitamente...
- Como é, vai dar ou não vai?
Me imprensou contra a porta. Estava praticamente em cima de mim, com aquela barrigona imunda e
cabeluda e tudo.
- Me deixa em paz. Dá o fora do meu quarto - respondi. Eu continuava de braços cruzados e tudo.
Puxa, como eu era trouxa.
Aí a Sunny falou pela primeira vez:
- Ô, Maurice, quer que eu apanhe a carteira dele? Está ali bem em cima daquele troço.
- Quero, apanha duma vez.
- Êi, deixa a minha carteira aí!
- Pronto, já peguei - Sunny disse. Ela acenou para mim com os cinco dólares. - Tá vendo? Tou tirando
só os cinco que você me deve. Não sou nenhuma vigarista.
De repente, comecei a chorar. Dava tudo para não ter chorado, mas chorei.
- Não, vocês não são vigaristas, não - eu disse. - Só estão roubando cinco...
- Cala a boca - o tal do Maurice disse, me dando um empurrão.
- Deixa esse cara aí e vambora, anda - a Sunny disse. - Anda, vambora. Já tamos com a grana que ele
deve. Vem, vambora, anda.
- Tou indo - disse o tal do Maurice. Mas não foi.
- Tou falando sério, Maurice, anda. Deixa ele pra lá.
- Nem tou tocando nele - disse o Maurice, inocente como um anjinho. Foi aí que ele me deu um
peteleco com toda a força no meu pijama. Não vou dizer onde foi, mas o peteleco doeu pra chuchu. Eu aí
chamei ele de imbecil.
- Quê que você disse? - ele perguntou, com a mão atrás da orelha, como se fosse surdo. - Que que é? O
que é que eu sou?
Eu ainda estava mais ou menos chorando. Continuava nervoso e com raiva.
- Você é um idiota - falei. - Você é um vigarista dum imbecil nojento e não dou dois anos para ver você
aí pela rua, igual a esses vagabundos raquíticos que atracam a gente pra pedir dinheiro prum café. Você vai
andar com um paletó imundo, todo sujo de catarro, e vai ser um...
Aí ele me acertou. Nem tentei sair do caminho, ou me esquivar, nem nada. Só senti aquele murro
tremendo no estômago.
Mas não desmaiei nem nada, porque me lembro que ainda estava no chão quando vi os dois saírem e
fecharem a porta. Aí fiquei deitado uma porção de tempo, mais ou menos como aconteceu da outra vez com
o Stradlater. Só que dessa vez pensei que ia morrer mesmo. No duro. Pensei que estivesse me afogando ou
coisa parecida. O caso é que eu mal podia respirar. Quando afinal levantei, tive que ir até o banheiro todo
dobrado, apertando a barriga e tudo.
Mas eu sou doido. Verdade. Juro por Deus. Na metade do caminho para o banheiro, comecei a fingir
que estava com uma bala no bucho. O tal de Maurice tinha me chumbado. Por isso eu estava indo para o
banheiro tomar uma bruta talagada de uísque ou coisa parecida, para acalmar os nervos e me ajudar a entrar
mesmo em ação. Me imaginei saindo da porcaria do banheiro de terno e tudo, com minha pistola no bolso e
cambaleando um pouco. Aí, em vez de usar o elevador, eu descia pela escada, me agarrando no corrimão e
tudo, enquanto um filete de sangue escorria pelo canto da minha boca. Ia descer alguns andares - apertando a
barriga, sangue pingando por todo lado - e aí chamava o elevador. Assim que o tal do Maurice abrisse a
porta, dava de cara comigo, de pistola na mão, e ia começar a gritar, com aquela voz esganiçada de quem está
apavorado, me pedindo para deixar ele em paz. Mas eu chumbava ele assim mesmo. Seis tiros bem no meio
daquela barrigona cabeluda. Aí eu jogava a pistola no poço do elevador - depois de apagar as impressões
digitais e tudo. Aí me arrastava escada acima até o quarto e chamava a Jane para vir fazer um curativo na
minha barriga. Fiquei imaginando a Jane botando um cigarro aceso na minha boca e segurando para eu
tragar, enquanto o sangue continuava a correr e tudo.
A culpa é da droga dos filmes de bandido. Por mais que a gente evite, acaba influenciado. Fora de
brincadeira.
Fiquei no banheiro quase uma hora, tomando banho e tudo. Depois voltei para a cama. Levei muito
tempo para dormir, não estava nem cansado, mas acabei pegando no sono. A vontade que tive foi de me
matar: tive vontade de me atirar pela janela. Provavelmente teria pulado mesmo, se tivesse a certeza de que
alguém ia me cobrir assim que eu me esborrachasse no chão. Não queria é que um bando de imbecis curiosos
ficassem me olhando quando eu estivesse todo ensanguentado.
continua na página 44...
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O Apanhador no Campo de Centeio - 14: Depois que a tal de Sunny foi embora
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