QUEM Manda, POR QUE Manda, COMO Manda
João Ubaldo Ribeiro Para meu amigo Glauber
Não importa o que lhe digam, quem manda é quem está levando
vantagem. É claro que, nisto, podem ser vistos vários níveis. Há muitas
pessoas, por exemplo, que se sentem “mandando”, mas na realidade este
mandar se resume à satisfação de um número restrito de desejos que elas,
por uma razão ou por outra, consideram satisfatório. O “mandar”, como
tudo mais, é relativo, mas o critério de levar vantagem, sob qualquer
sentido e em qualquer situação, é suficientemente elucidativo. Se, do
nosso ponto de vista, alguém leva vantagem sobre nós, mesmo que não
leve vantagem sobre outros, estará mandando. Quando esta vantagem é
evidente, na tomada de decisões de qualquer tipo, é que costumamos
visualizar o “poder”, mas na verdade basta que se esteja em melhor
situação do que nós (do nosso ponto de vista, pois, afinal, não temos
melhor critério) para se estar mandando.
Por exemplo, se alguém nos chama para limpar a fossa dele e esse
alguém também vive submetido a pressões e decisões alheias, esse
alguém pode alegar que, tanto quanto nós, ele também não manda.
Contudo, quem está limpando a fossa dele somos nós, e não ele a nossa.
Ele pode pagar para que façamos esse serviço em lugar dele, e nós
estamos na posição de ter que aceitar o serviço. Da mesma forma, tanto
uma mulher de boa posição econômica quanto a mulher que ela contrata
como babá de seu filho podem ter “os mesmos sofrimentos, a mesma
condição feminina discriminada, suportar a mesma tirania masculina, as
mesmas inquietações da maternidade etc. etc.” Não obstante, quem é
babá é uma, a patroa é outra. E é visível que, nesta relação, alguém leva
clara vantagem.
Isto não deve ser esquecido, da mesma forma que não devemos
esquecer de ver todas as coisas dentro da perspectiva do que de fato
acontece e não do que é dito. É comum que, ideologicamente, se
desenvolvam teses quanto à relatividade dos bens deste mundo, “as
cargas que temos que suportar” e assim por diante. Metaforicamente,
essas cargas talvez sejam as mesmas. Efetivamente, não são. Pois a
babá, além de ser mãe como a outra (e em piores condições, a começar
pelos cuidados pré-natais e pela pobreza do parto), ainda é subordinada
à outra. Não obstante, os argumentos que buscam provar o contrário são
frequentemente muito bem-sucedidos, e há empregadas domésticas que
se consideram irmãs feministas de suas patroas, embora estas não sejam
obrigadas a cuidar de fraldas sujas.
É preciso, pois, ter cuidado com as analogias excessivas.
Reconhecer que somos irmãos é sempre suspeito, quando esse
reconhecer envolve, de nossa parte, a aceitação de contingências duras e,
da outra parte, não envolve nada além de palavras. De fato, se somos
humildes de nascença e formação, nos sentimos melhor por não
podermos sentar à mesa com nossos patrões, porque “não gostamos
mesmo daqueles refinamentos de rico”. Os refinamentos podem não ser
bons em si, mas não devemos esquecer que não nos sentimos bem com
eles porque não fomos criados para isso, não porque tenhamos uma
incapacidade congênita para apreciar coisas refinadas. E, se achamos
que estamos melhor em nossa vida modesta e privada de tantas coisas
que os ricos consideram essenciais e sem as quais não podem viver,
devemos lembrar que, com isso, estamos tendo a opinião mais
conveniente para os que mandam, que conseguiram fazer nossa
cabeça com eficácia.
O valor do luxo, do supérfluo, do suntuário e mesmo do
conforto excessivo é de fato muito discutível, mas São Francisco de
Assis, exemplo clássico de abnegação e desapego aos bens materiais,
renunciou a tudo aquilo, numa opção consciente. O pobre e o
despossuído não renunciam, não agem em função de valores mais
altos voluntariamente escolhidos. Com eles não se trata de uma
renúncia, de uma abdicação — trata-se de um ato forçado que não
tem a dignidade, a liberdade e a força da abdicação. Dizer “estas
coisas não valem nada, muito melhor é a autenticidade” só tem
sentido quando podemos renunciar por nós mesmos a elas. Tanto
assim que os ricos não costumam renunciar riqueza, nem a “essas
coisas sem valor”. Ao pobre, portanto, é negada a dignidade de
renunciar. Ele é obrigado a mergulhar na pobreza de nascença e a se
convencer de que assim está melhor.
Não significa isto, evidentemente, que a situação ideal da vida é
a riqueza (principalmente à custa da pobreza alheia), nem que
tenhamos que colocar os valores materiais na frente de nossas
preocupações. O que devemos é procurar evitar que nos retirem
opções, que nos cerceiem a plena liberdade humana, que nos
impeçam a plena realização do nosso potencial, que nos impinjam
convicções que não tenhamos escolha senão aceitar. O que
consideramos uma sociedade justa pode variar muito. É, afinal, uma
questão profundamente ideológica. Mas nossa visão de uma
sociedade justa não pode ser imposta — sobretudo quando quem
procura impor-nos essa visão se encontra numa situação claramente
melhor que a nossa, mesmo que deseje nos convencer de que está
em situação igual ou pior. Nada impede que aceitemos determinados
valores, segundo nossa escolha. Mas temos que estar conscientes dessa
escolha, fazê-la de forma plenamente voluntária (e isto envolve conhecer
bem as opções possíveis) e não deixar que nos impinjam uma “verdade”
ideológica sob a capa de uma verdade incontestável.
Como vimos, o monopólio da coerção jaz nominalmente no Estado.
Por esta razão se ambiciona a conquista de posições dentro da estrutura
do Estado, pretende-se conquistar o “governo”: para usar, dentro das
limitações inevitáveis, o poder decisório e coercitivo do Estado com a
finalidade de satisfazer interesses, ou realizar aquilo que se considera
certo. É claro que, se é o Estado que detém a posição formal de poder, é
necessário que vejamos, como temos aprendido a ver, quem está “por
trás do Estado”, quem ele representa basicamente. Como dissemos acima,
quem manda é quem está levando vantagem. Não é difícil inferir a quem o
Estado serve: basta ver quem está mais bem servido dentro da sociedade. Quem está mais bem servido é quem está mandando, não
importa o que lhe expliquem em contrário. É óbvio que você já viu que
“explicar o contrário” faz parte do esquema de dominação. Quem se
beneficia mais é quem está mandando, qualquer que seja a razão para isso
e mesmo que quem esteja mandando não exerça posição alguma na
estrutura formal do Estado.
Na estrutura do Estado, devemos observar ainda o surgimento de
um fenômeno contemporâneo, que vem pondo em risco até mesmo a
representatividade popular nas democracias. Trata-se da diferença, cada
vez mais ampla, entre quem detém a autoridade para as decisões e quem
detém o conhecimento indispensável para tomá-las — ou quem, apenas,
como acontece muito, é tido como detentor daquele conhecimento.
Por exemplo, o presidente da República de um país presidencialista
contemporâneo não pode dominar nem uma fração mínima de todo o
conhecimento de que necessitaria para tomar decisões que vão desde
aspectos complexos da política econômica até questões de saúde pública
ou energia nuclear. Em conseqüência, ele é obrigado, cada vez mais, a
confiar nos assessores, consultores e técnicos. O resultado disso é que o
controle das decisões públicas cada vez mais foge dos funcionários
eleitos, cada vez mais perde a representatividade. Isto é, inclusive,
grandemente fomentado pela convicção quase religiosa de que só os
especialistas entendem realmente dos diversos assuntos, quando esta é
uma crença bastante discutível em vários níveis. Chegamos até a acreditar
que a ciência e a técnica, mesmo no campo social, são absolutamente
neutras, a-ideológicas. Mas isto não é verdade. Também as proposições
técnicas podem ser submetidas àquelas perguntinhas que vimos no
capítulo sobre ideologia. Também elas, muitas vezes, não passam de
colocações fortemente ideológicas, mascaradas sob a capa de uma
“verdade científica” e muito ciosa das prerrogativas que isso lhe dá.
Daí o fenômeno da tecnocracia, do governo dos técnicos e dos
especialistas, dos que sabem o que é melhor para todos. Na realidade, se
a complexidade da ciência e da tecnologia contemporâneas nos coloca
muito na dependência desses especialistas, essa dependência não é, nem
pode ser, total e absoluta. A ciência e a tecnologia não são algo acima do
homem, mas algo do homem. Não são infalíveis; são, muitas vezes e de
várias formas, francamente ideológicas e, no momento em que assumem
potencialidade política, são do interesse e da responsabilidade de todos a
que vão afetar. Por esta razão, o controle da informação e a utilização da
ciência e da tecnologia em lugar de serem entregues sem restrições aos
especialistas, hão de ser postos sob a supervisão da sociedade —
supervisão, evidentemente, adequada à liberdade de investigação
científica. Quando a ciência passa a ter significado e aplicação políticos, ela
interessa a todos, não importa quanto os detentores da “verdade”
estrilem.
Para encerrar, devemos observar que as formas pelas quais somos
mandados e as formas pelas quais as ideologias dominantes nos são
impostas não se resumem, como podemos pensar, à propaganda, pelo
menos no sentido estrito da palavra. Na verdade, grande parte dos
condicionantes e determinantes de nossa conduta está em tudo: na
linguagem, nos hábitos, na tradição, nas formas de convívio social, na
escola, nas aspirações que aprendemos a desenvolver como se fossem
realmente nossas.
A dominação mais forte e mais difícil de vencer (até mesmo porque é
comum que não a queiramos vencer) é a que se faz pela cabeça. Quando a
nossa cabeça não tem autonomia, quando, mesmo que não notemos,
pensam por nós, aí estamos dominados, seja pelo esquema interno a
nosso próprio país, seja por economias e culturas que o colonizam, seja
por ambos — como geralmente é o caso. A resistência contra essa
dominação, quando ela realmente nos toma conta da cabeça, é muito
difícil, inclusive porque pensamos que somos nós que estamos a decidir,
em vez de um esquema pré-fabricado que internalizamos. Isto se
percebe bem em situações simples, como quando concluímos que a
“realização” plena de um jovem praticando o esporte da moda não é
realização plena coisa nenhuma, mas a consequência prevista de um
processo de marketing em que ele foi colhido. Quando, entretanto, esse
processo é mais fundo, a ponto de o confundirmos com nossa própria
identidade, nossa maneira de ser — aí a luta é mais difícil, e só pela
consciência política e pela produção cultural livre e autônoma
conseguiremos, coletivamente, vencer.
1 “Eu sou um verdadeiro escravo”, queixa-se o homem de
negócios, chegando ao trabalho cedo e encontrando a faxineira.
“Eu também”, responde a faxineira. Comente.
2 Tente catalogar quem, na sua opinião, manda na sociedade
brasileira.
3 “Acima de tudo, somos mulheres”, diz a patroa rica à
empregada. Se fosse você a empregada, concordaria?
4 “O homem mais feliz é o que não tem camisa.” Comente.
5 Você acha que o Brasil está ficando cada vez mais uma
tecnocracia? Achando ou não, você acha isso bom?
6 Na sua opinião, a televisão é apenas um divertimento ou
também faz a cabeça? Ou principalmente faz a cabeça?
continua na página 132...
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Leia também:
João Ubaldo Ribeiro - Política: Quem manda, como manda
João Ubaldo Ribeiro (1941-2014) foi romancista, cronista, jornalista, tradutor e professor brasileiro. Membro da Academia Brasileira de Letras ocupou a cadeira n.º 34. Em 2008 recebeu o Prêmio Camões. Foi um grande disseminador da cultura brasileira, sobretudo a baiana. Entre suas obras que fizeram grande sucesso encontram-se "Sargento Getúlio", "Viva o Povo Brasileiro" e "O Sorriso do Lagarto".
João Ubaldo Ribeiro nasceu na ilha de Itaparica, na Bahia, no dia 23 de janeiro de 1941, na casa de seus avós. Era filho dos advogados Manuel Ribeiro e de Maria Filipa Osório Pimentel.
João Ubaldo foi criado até os 11 anos, em Sergipe, onde seu pai trabalhava como professor e político. Fez seus primeiros estudos em Aracaju, no Instituto Ipiranga.
Em 1951 ingressou no Colégio Estadual Atheneu Sergipense. Em 1955 mudou-se para Salvador, e ingressou no Colégio da Bahia. Estudou francês e latim.
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© 1998 by João Ubaldo Ribeiro
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R369p
Ribeiro, João Ubaldo 3 ed. Política; quem manda, por que manda, como manda / João Ubaldo Ribeiro. — 3.ed.rev. por Lucia Hippolito. — Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998.
Apêndice
1. Ciência política. I. Título
CDD 320
CDU 32
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