sábado, 21 de dezembro de 2024

Moby Dick: 22 - Feliz Natal

Moby Dick

Herman Melville


22 - FELIZ NATAL

     Por fim, perto do meio-dia, na debandada final dos armadores, e após o Pequod ter sido afastado do cais pelos rebocadores, e depois que a atenciosa Charity veio a bordo num bote cheio de presentes – uma touca de dormir para Stubb, o segundo imediato, seu cunhado, e uma Bíblia sobressalente para o comissário – os dois Capitães, Peleg e Bildad, saíram da cabine e, virando-se para o imediato, disseram:

“Bem, senhor Starbuck, tem certeza de que está tudo em ordem? O Capitão Ahab está pronto – acabo de falar com ele –, não precisa de mais nada da terra, não é? Bem, chame os homens, então. Reúna-os aqui na popa – malditos sejam!” 
“Não é necessário blasfemar, ainda que grande seja a pressa, Peleg”, disse Bildad, “mas agora vai, amigo Starbuck, e cumpre nossas ordens.”

     Como assim? Na hora da partida, o Capitão Peleg e o Capitão Bildad davam ordens como se juntos comandassem no mar assim como comandavam no porto. Do Capitão Ahab, nenhum sinal; mas diziam que estava na cabine. Mas parecia – essa era a ideia – que sua presença não era necessária para fazer flutuar o navio e levá-lo para o alto-mar. Na verdade, isso não era mesmo tarefa sua, mas do piloto; e como não estava totalmente recuperado – é o que diziam –, o Capitão Ahab ficou recolhido. Tudo isso parecia bastante natural; especialmente porque, na marinha mercante, vários capitães não aparecem no convés por um bom tempo depois de içada a âncora, permanecendo em suas cabines para a despedida festiva dos amigos de terra, antes que estes deixem o navio definitivamente nas mãos do piloto.
     Mas não havia tempo para pensar nisso, porque o Capitão Peleg estava a toda. Parecia que cabia a ele falar e dar a maior parte das ordens, e não a Bildad.

“Para a popa, seus filhos-da-mãe”, gritou para os marinheiros que se demoravam ao redor do mastro principal. “Senhor Starbuck, manda-os para a popa.” 
“Desmontai a tenda!” – foi a ordem seguinte. Como havia percebido antes, a tenda de osso de baleia só ficava armada no porto; e durante trinta anos a bordo do Pequod a ordem de desmontar a tenda era conhecida por ser a última antes de levantar a âncora. 
“Homens, ao cabrestante! Sangue e trovão! – saltai”, foi o próximo comando, e a tripulação correu para as alavancas. 

     Ora, quando um navio vai zarpar, o piloto ocupa, em geral, a parte dianteira do navio. E Bildad, que assim como Peleg era, entre outras coisas, um dos pilotos oficiais do porto – suspeitava-se de que ele próprio se fez piloto para economizar a taxa que todos os seus navios teriam que pagar no porto de Nantucket, pois nunca tinha pilotado qualquer outra embarcação –, bem, Bildad estava naquele momento participando ativamente, observando a âncora da proa, às vezes cantarolando uns salmos melancólicos para animar os homens no molinete, que bramiam uma espécie de estribilho sobre as garotas de Booble Alley, com verdadeira boa vontade. No entanto, nem três dias antes, Bildad tinha lhes dito que não permitia que cantassem músicas profanas a bordo do Pequod, especialmente quando estivessem zarpando; e sua irmã Charity havia colocado junto ao beliche de cada homem do mar um exemplar de uma seleta de Watts.
     Enquanto isso, o Capitão Peleg, supervisionando o outro lado do navio, praguejava e blasfemava de modo assustador. Quase pensei que iria afundar o navio antes que a âncora subisse; sem querer, pausei meu espeque e disse a Queequeg que fizesse o mesmo, pensando no perigo que corríamos ao fazer uma viagem que tinha como piloto tal demônio. Tentava me confortar com a ideia de que o piedoso Bildad pudesse nos salvar, apesar de sua cota de 777 avos; quando senti um violento pontapé no traseiro e, ao me virar, fiquei horrorizado com a aparição do Capitão Peleg, que naquele exato instante afastava sua perna de minhas imediações. Foi o meu primeiro pontapé.

“É assim que se trabalha na marinha mercante?”, berrou. “Força, idiota; força até quebrar a espinha! Por que não fazeis força, todos vós? – Faz força, Quohog! Força, tu, de suíças vermelhas, força, barrete escocês; força, tu de calças verdes. Força, todos vós, nem que vos caiam os olhos!” Enquanto assim falava, movia-se ao redor do molinete, utilizando sua perna com bastante liberdade, enquanto Bildad, imperturbável, continuava a cantarolar os salmos. Pensei eu, o Capitão Peleg deve ter bebido algo hoje.

     Por fim a âncora foi levantada, as velas içadas, e partimos. Foi um Natal curto e frio; quando o breve dia do inverno setentrional se fundiu à noite, encontrávamo-nos em pleno oceano glacial, cujos borrifos nos cobriam de gelo, como se vestíssemos uma armadura lustrosa. A longa fila de dentes na amurada brilhava com o luar; e, como as presas brancas de marfim de um elefante enorme, compridos pingentes de gelo pendiam da proa.
     O esguio Bildad, como piloto, chefiou a primeira vigília, e, de vez em quando, enquanto a velha embarcação mergulhava nos mares verdes lançando gelo por toda parte, e o vento uivava, e as cordas vibravam, escutávamos suas notas constantes: 

“Bela campina além da inundação, 
Ali vestida em verde vicejante. 
Assim aos Judeus pareceu Canaã, 
Enquanto o Jordão lhes corria diante.”  

     Nunca essas belas palavras me pareceram mais belas do que naquela ocasião. Estavam cheias de esperança e deleite. Apesar da noite gélida de inverno no turbulento Atlântico, apesar de estar com os pés úmidos e o casaco ainda mais, parecia haver muitos portos aprazíveis à espera; e prados e clareiras tão eternamente viçosos, que a grama desabrochando na primavera, jamais trilhada, jamais maculada, assim permanecia até meados do verão.
     Por fim chegamos a uma distância tal que não mais precisávamos dos dois pilotos. O bravo barco a vela que nos seguia começou a emparelhar-se com o navio.
     Era curioso e não desagradável observar como Peleg e Bildad estavam comovidos naquele momento, o Capitão Bildad em especial. Estava relutante na partida; muito relutante na partida de um navio destinado a uma viagem tão longa e tão perigosa – para além dos dois Cabos turbulentos; um navio em que se encontravam investidos milhares de seus dólares, ganhos com muita dificuldade; um navio no qual um velho companheiro de bordo ia como capitão; um homem quase tão velho quanto ele, partindo mais uma vez ao encontro dos terrores da mandíbula impiedosa; relutante em dizer adeus a uma coisa tão carregada de interesses seus –, o pobre velho Bildad adiava o momento; andou pelo convés com passos ansiosos; correu para a cabine para se despedir de mais alguém; voltou ao convés e olhou a barlavento; olhou para imensas e intermináveis águas, que tinham como único limite os invisíveis Continentes Orientais; olhou para a terra; olhou para cima; olhou para a direita e para a esquerda; olhou para toda parte e parte nenhuma; por fim, enrolou mecanicamente um cabo em seu eixo, apertou agitado a mão forte de Peleg e, erguendo uma lanterna, por alguns instantes fixou heroicamente o olhar no outro como se dissesse, “Apesar de tudo, meu amigo Peleg, eu consigo suportar, sim, consigo”.
     Quanto a Peleg, parecia mais um filósofo; mas, com toda sua filosofia, havia uma lágrima brilhando em seu olho quando a lanterna se aproximou. Ele também correu bastante da cabine ao convés – ora uma palavra lá embaixo, ora uma palavra com Starbuck, o imediato.
     Mas, por fim, virou-se para o seu companheiro, com ar definitivo, – “Capitão Bildad! – vem, companheiro, temos que ir. Põe a verga para trás! Ó, de bordo! Aproxima-te para atracar, agora! Cuidado, cuidado! – Vamos Bildad, meu amigo – despede-te. Boa sorte, Starbuck – boa sorte, senhor Stubb – boa sorte, senhor Flask – adeus, e boa sorte a todos – daqui a três anos estarei esperando por vós com uma refeição quente na velha Nantucket. Viva! Vamos!”

“Que Deus vos abençoe e vos tenha em Sua Santa guarda, homens”, murmurou o velho Bildad, quase sem nenhuma coerência. “Espero que tenhais bom tempo para que o Capitão Ahab possa estar convosco em breve – um sol agradável é tudo o que ele precisa, e tereis bastante sol nessa viagem tropical. Cuidado com a pesca, marujos. Vós, arpoadores, não destruais os botes sem necessidade; uma boa tábua de cedro branco aumentou três por cento em um ano. Também não vos esqueçais das orações. Senhor Starbuck, lembra o tanoeiro de economizar as aduelas sobressalentes. Ah! As agulhas para as velas estão no armário verde! Não pesqueis baleias nos dias do Senhor; mas não desperdiceis uma boa oportunidade, pois seria rejeitar as dádivas celestes. Cuidado com o tonel de melado, senhor Stubb; achei que estava vazando um pouco. Se chegares às ilhas, senhor Flask, cuidado com a fornicação. Adeus, adeus! Não deixe o queijo muito tempo no porão, que se estraga, senhor Starbuck. Cuidado com a manteiga – custou vinte centavos cada libra, e cautela com…” 
“Vamos, vamos, Capitão Bildad; basta de falação – vamos embora!”, e com isto o Capitão Peleg o levou ao costado, e os dois desceram ao bote. 

     O navio e o bote tomaram rumos diferentes; a brisa noturna fria e úmida soprou entre eles; uma gaivota estridente sobrevoou; os dois cascos balançaram; demos três vivas tristes e cegamente mergulhamos, como o destino, no Atlântico deserto.

Moby Dick: 22 - Feliz Natal
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Moby Dick é um romance do escritor estadunidense Herman Melvillesobre um cachalote (grande animal marinho) de cor branca que foi perseguido, e mesmo ferido várias vezes por baleeiros, conseguiu se defender e destruí-los, nas aventuras narradas pelo marinheiro Ishmael junto com o Capitão Ahab e o primeiro imediato Starbuck a bordo do baleeiro Pequod. Originalmente foi publicado em três fascículos com o título "Moby-Dick, A Baleia" em Londres e em Nova York em 1851,
O livro foi revolucionário para a época, com descrições intrincadas e imaginativas do personagem-narrador, suas reflexões pessoais e grandes trechos de não-ficção, sobre variados assuntos, como baleias, métodos de caça a elas, arpões, a cor do animal, detalhes sobre as embarcações, funcionamentos e armazenamento de produtos extraídos das baleias.
O romance foi inspirado no naufrágio do navio Essex, comandado pelo capitão George Pollard, que perseguiu teimosamente uma baleia e ao tentar destruí-la, afundou. Outra fonte de inspiração foi o cachalote albino Mocha Dick, supostamente morta na década de 1830 ao largo da ilha chilena de Mocha, que se defendia dos navios que a perturbavam.
A obra foi inicialmente mal recebida pelos críticos, assim como pelo público por ser a visão unicamente destrutiva do ser humano contra os seres marinhos. O sabor da amarga aventura e o quanto o homem pode ser mortal por razões tolas como o instinto animal, sendo capaz de criar seus fantasmas justamente por sua pretensão e soberba, pode valer a leitura.


E você com o quê se identifica?

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