Cem Anos de SOLIDÃO
Gabriel Garcia Márquez
(14.1)
para jomí garcía ascot
e maría luisa elío
CHOVEU DURANTE QUATRO ANOS, onze meses e
dois dias. Houve épocas de chuvisco em que todo mundo pôs a sua roupa de
domingo e compôs uma cara de convalescente para festejar a estiagem, mas
logo se acostumaram a interpretar as pausas como anúncios de
recrudescimento. O céu desmoronou-se em tempestades de estrupício e o
Norte mandava furacões que destelhavam as casas, derrubavam as paredes e
arrancavam pela raiz os últimos talos das plantações. Como acontecera
durante a peste da insônia, que Úrsula dera para recordar naqueles dias, a
própria calamidade ia inspirando defesas contra o tédio. Aureliano Segundo
foi um dos que mais fizeram para não se deixar vencer pela ociosidade.
Tinha vindo em casa por algum assunto casual na noite em que o Sr. Brown
convocara a tormenta e Fernanda tratara de auxiliá-lo com um guarda-chuva meio desvaretado que encontrou num armário. “Não há necessidade”,
disse ele. “Fico aqui até estiar.” Não era, evidentemente, um compromisso
rígido, mas esteve a ponto de cumpri-lo ao pé da letra. Como a sua roupa
estava na casa de Petra Cotes, de três em três dias tirava a que vestia e
esperava de cuecas enquanto a lavavam. Para não se chatear, entregou-se à
tarefa de consertar as numerosas imperfeições da casa. Apertou dobradiças,
lubrificou fechaduras, parafusou aldrabas e nivelou ferrolhos. Durante vários
meses foi visto vagando com uma caixa de ferramentas que deveria ter sido
esquecida pelos ciganos na época de José Arcadio Buendía, e ninguém soube
se foi pela ginástica involuntária, pelo tédio invernal ou pela abstinência
obrigada que a pança foi desinchando pouco a pouco como um odre e a cara
de tartaruga beatífica ficou menos sanguínea e a papada menos
protuberante, até que ele todo acabou por ser menos paquidérmico e pôde
amarrar outra vez os cordões dos sapatos. Vendo-o colocar os trincos e
desmontar os relógios, Fernanda se perguntou se não estaria também caindo
no vício de fazer para desfazer, como o Coronel Aureliano Buendía com os
peixinhos de ouro, Amaranta com os botões e a mortalha, José Arcadio
Segundo com os pergaminhos e Úrsula com as lembranças. Mas não era
verdade. O ruim era que a chuva atrapalhava tudo e as máquinas mais
áridas brotavam em flores por entre as engrenagens se não fossem
lubrificadas de três em três dias, e se enferrujavam os fios dos brocados, e
nasciam algas de açafrão na roupa molhada. A atmosfera estava tão úmida
que os peixes poderiam entrar pelas portas e sair pelas janelas, navegando no
ar dos aposentos. Certa manhã Úrsula acordou sentindo que se acabava num
desmaio de placidez, e já tinha pedido que a levassem ao Padre Antonio
Isabel, ainda que fosse numa liteira, quando Santa Sofía de la Piedad
descobriu que ela tinha as costas empedradas de sanguessugas.
Desprenderam-nas uma por uma, queimando-as com tições, antes que
acabassem de sangrá-la. Foi preciso abrir canais para escorrer a água da casa
e desimpedi-la de sapos e caracóis, para que pudesse secar o chão, tirar os
tijolos dos pés das camas e andar outra vez de sapatos. Entretido com as
múltiplas minúcias que reclamavam a sua atenção, Aureliano Segundo não
percebeu que estava ficando velho, até uma tarde em que se viu
contemplando de uma cadeira de balanço o entardecer prematuro e
pensando em Petra Cotes sem estremecer. Não teria tido nenhum
inconveniente em regressar para o amor insípido de Fernanda, cuja beleza
tinha repousado com a maturidade, mas a chuva o havia posto a salvo de
qualquer emergência passional e lhe infundira a serenidade esponjosa da
inapetência. Divertiu-se pensando nas coisas que teria podido fazer, em
outros tempos, com aquela chuva que já ia para um ano. Tinha sido um dos
primeiros a trazer folhas de zinco para Macondo, muito antes da companhia
bananeira pô-las em moda, só para forrar com elas o quarto de Petra Cotes e
gozar a impressão de intimidade profunda que lhe produzia, naquela época,
a crepitação da chuva. Mas até essas lembranças malucas da sua juventude
extravagante o deixavam impávido, como se na última farra tivesse esgotado
todas as suas quotas de libertinagem e só lhe tivesse restado o prêmio
maravilhoso de poder evocá-las sem amargura nem arrependimento. Poderse-ia imaginar que o dilúvio lhe tinha dado a oportunidade de se sentar para
pensar e que o movimento dos alicates e das latinhas de óleo lhe havia
despertado a saudade tardia de tantos trabalhos úteis que poderia ter feito e
não fez na vida, mas nem uma coisa nem outra era verdade, porque a
tentação de sedentarismo e domesticidade que o andava rondando não era
fruto da recuperação nem da expiação. Vinha de muito mais longe,
desenterrada pelo ancinho da chuva, dos tempos em que lia no quarto de
Melquíades as prodigiosas histórias dos tapetes voadores e das baleias que se
alimentavam de navios com tripulações. Foi por esses dias que, num
descuido de Fernanda, apareceu na varanda o pequeno Aureliano e o avô
conheceu o segredo da sua identidade. Cortou-lhe o cabelo, vestiu-o,
ensinou-lhe a perder o medo das pessoas, e muito em breve se viu que era
um legítimo Aureliano Buendia, com as maçãs do rosto altas, o olhar de
espanto e o ar solitário. Para Fernanda foi um descanso. Havia tempo que
tinha moderado a magnitude da sua soberba, mas não descobria como
remediá-la, porque quanto mais pensava nas soluções, menos racionais lhe
pareciam. Se soubesse que Aureliano Segundo ia encarar as coisas como
encarou, com uma boa complacência de avô, não teria feito tantas voltas
nem tantos adiamentos, mas desde o ano anterior que se teria libertado da
mortificação. Para Amaranta Úrsula, que já tinha mudado os dentes, o
sobrinho foi como um brinquedo fugidio que a consolou do tédio da chuva.
Aureliano Segundo se lembrou então da enciclopédia inglesa que ninguém
voltara a tocar no antigo quarto de Meme. Começou por mostrar as gravuras
às crianças, especialmente as de animais, e mais tarde os mapas e as
fotografias de países remotos e personagens célebres. Como não sabia inglês,
e como mal podia distinguir as cidades mais conhecidas e as personalidades
mais correntes, deu para inventar nomes e lendas para satisfazer a
curiosidade insaciável das crianças.
Fernanda acreditava mesmo que o marido estava esperando que
estiasse para voltar para a concubina. Nos primeiros meses de chuva temeu
que ele tentasse deslizar para o seu quarto e que ela tivesse que passar a
vergonha de lhe revelar. que estava incapacitada para a reconciliação desde
o nascimento de Amaranta Úrsula. Essa era a causa da sua ansiosa
correspondência com os médicos invisíveis, interrompida pelos frequentes
acidentes do correio. Durante os primeiros meses, quando se soube que os
trens descarrilhavam na tormenta, uma carta dos médicos invisíveis indicou-lhe que as suas se estavam perdendo. Mais tarde, quando se interromperam
os contatos com os seus correspondentes ignotos, pensou seriamente em
colocar a máscara de tigre que seu marido usara no carnaval sangrento para
se fazer examinar, sob nome falso, pelos médicos da companhia bananeira.
Mas uma das tantas pessoas que passavam frequentemente pela casa
trazendo as notícias ingratas do dilúvio tinha dito a ela que a companhia
estava botando abaixo os seus ambulatórios para levá-los para as terras de
estiagem. Então perdeu a esperança. Resignou-se a aguardar que passasse a
chuva e o correio se normalizasse e, enquanto isso, aliviava as suas mazelas
secretas com recursos de inspiração, porque teria preferido morrer a pôr-se
nas mãos do único médico que restava em Macondo, o francês extravagante
que se alimentava com ervas de burro. Aproximara-se de Úrsula, confiada de
que ela conheceria algum paliativo para os seus quebrantos. Mas o tortuoso
costume de não chamar as coisas pelo próprio nome levou-a a colocar o
anterior no posterior e a substituir o parido pelo evacuado e a mudar
secreções por ardores para que tudo ficasse menos vergonhoso, de modo que
Úrsula concluiu razoavelmente que as perturbações não eram uterinas, mas
intestinais, e aconselhou-a a tomar em jejum uma dose de calomelano. Não
fosse por esse padecimento que nada teria tido de pudendo para alguém
que não estivesse doente também de pudicícia, e se não fosse a perda das
cartas, Fernanda não teria se importado com a chuva, porque afinal de
contas toda a sua vida tinha sido como se estivesse chovendo. Não modificou
os horários nem perdoou os ritos. Quando a mesa ainda estava suspensa
sobre tijolos e as cadeiras colocadas sobre tábuas para que os comensais não
molhassem os pés, ela continuava servindo com toalhas de linho e louça
chinesa, e acendendo os candelabros no jantar, porque achava que as
calamidades não podiam servir de pretexto para o relaxamento dos
costumes. Ninguém voltara a aparecer na rua. Se tivesse dependido de
Fernanda, não voltariam a fazê-lo jamais, não só desde que começara a
chover, mas desde muito antes, já que ela pensava que as portas tinham sido
inventadas para serem fechadas, e que a curiosidade pelo que acontecia na
rua era coisa de rameira. Entretanto, ela foi a primeira a aparecer quando
avisaram que estava passando o enterro do Coronel Gerineldo Márquez,
embora o que visse então pela janela entreaberta a deixasse em tal estado de
angústia que durante muito tempo ficou arrependida da sua debilidade.
Não se poderia imaginar um cortejo mais desolado. Tinham colocado
o ataúde num carro de boi sobre o qual construíram uma coberta de folhas
de bananeira, mas a pressão da chuva era tão intensa e as ruas estavam tão
enlameadas que a cada passo as rodas atolavam e a coberta ameaçava
desmoronar. Os jatos d’água triste que caíam sobre o ataúde ensopando a
bandeira que tinham colocado por cima e era na realidade a bandeira suja
de sangue e de pólvora, repudiada pelos veteranos mais dignos. Sobre o
ataúde tinham posto também o sabre com borlas de cobre e seda, o mesmo
que o Coronel Gerineldo Márquez pendurava no cabide da sala para entrar
desarmado no quarto de costura de Amaranta. Atrás do carro, alguns
descalços e todos com as calças arregaçadas na metade da perna,
chapinhando na lama, vinham os últimos sobreviventes da capitulação de
Neerlândia, trazendo numa das mãos um rijo bastão de madeira e na outra
coroa de flores de papel descolorido pela chuva. Aparecera como uma visão
irreal na rua que ainda trazia o nome Coronel Aureliano Buendía e todos
olharam a casa ao passar. dobraram a esquina da praça, onde tiveram que
pedir ajuda para movimentar o carro atolado. Úrsula se fizera levar até a
porta por Santa Sofía de la Piedad. Acompanhou com tanta atenção as
peripécias do enterro que ninguém duvidou de que o estava vendo,
sobretudo porque a sua levantada mão de arcanjo anunciador se
movimentava com os cabeceios carro.
— Adeus, Gerineldo, meu filho — gritou. — Cumprimente a minha
gente por mim e diga que nos veremos quando estiar.
Aureliano Segundo ajudou-a a voltar para a cama e com a mesma
informalidade com que a tratava sempre perguntou o significado da sua
despedida.
— É verdade — disse ela. — Só estou esperando a chuva passar para
morrer.
O estado das ruas alarmou Aureliano Segundo. Tardia mente
preocupado com a sorte dos seus animais, jogou na cabeça um pedaço de
oleado e foi à casa de Petra Cotes. Encontrou-a no quintal, com água pela
cintura, tentando desencalhar o cadáver de um cavalo. Aureliano Segundo
ajudou-a com uma tranca e o enorme corpo tumefacto fez uma volta de
sino e foi arrastado pela torrente de barro líquido. Desde que começara a
chuva Petra Cotes não tinha feito outra senão desentulhar o quintal dos
animais mortos. Nas primeiras semanas mandara recados a Aureliano
Segundo para que tomasse providências urgentes e ele respondera que não
havia pressa, que a situação não era alarmante, que já se pensaria em alguma
coisa quando estiasse. Mandara-lhe dizer que os estábulos estavam se
inundando, que o gado fugia para as terras altas onde não havia o que comer
e que estava à mercê das onças e da peste.
“Não há nada a fazer”, respondera-lhe Aureliano Segundo. “Nascerão
outros quando estiar.” Petra Cotes os tinha visto morrer às pencas e mal
pudera livrar os que ficavam atolados. Viu com uma impotência surda como
o dilúvio fora exterminando sem misericórdia uma fortuna que em certa
época era tida como a maior e mais sólida de Macondo e da qual não restava
nada a não ser o mau cheiro. Quando Aureliano Segundo decidiu ir ver o
que estava acontecendo, só encontrou o cadáver do cavalo e uma mula
esquálida entre os escombros da cavalariça. Petra Cotes o viu chegar sem
surpresa, sem alegria nem ressentimento, e mal se permitiu um sorriso
irônico.
— Em boa hora! — disse.
Estava envelhecida, um feixe de ossos, e seus lanceolados olhos de
animal carnívoro tinham ficado tristes e mansos de tanto olhar a chuva.
Aureliano Segundo ficou mais de três meses na sua casa, não porque no
momento se sentisse melhor ali do que na de sua família, mas porque
precisou de todo esse tempo para tomar a decisão de jogar à cabeça outra
vez o pedaço de oleado. “Não há pressa”, disse, como tinha dito na outra
casa. “Vamos ver se estia nas próximas horas.” No decorrer da primeira
semana foi se acostumando com os desgastes que o tempo e a chuva tinham
feito na saúde da concubina, e pouco a pouco a foi vendo como era antes,
lembrando-se das suas exaltações jubilosas e da fecundidade de delírio que o
seu amor provocava nos animais e, em parte por amor e em parte por
interesse, certa noite da segunda semana, despertou-a com carícias
prementes. Petra Cotes não reagiu. “Durma tranquilo”, murmurou. “A época
não está mais para essas coisas.” Aureliano Segundo viu-se a si mesmo nos
espelhos do teto, viu a espinha dorsal de Petra Cotes como uma fileira de
carretéis enfiados numa meada de nervos murchos e compreendeu que ela
tinha razão, não por causa da época, mas por causa deles mesmos, que já
não estavam mais para essas coisas.
Aureliano Segundo voltou para casa com os seus baús, convencido de
que não apenas Úrsula, mas todos os habitantes de Macondo estavam
esperando que estiasse para morrer. Tinha-os visto ao passar, sentados nas
salas com o olhar absorto e os braços cruzados, sentindo transcorrer um
tempo inteiriço, um tempo sem desbravar, porque era inútil dividi-lo em
meses e anos, e os dias em horas, já que não se podia fazer nada além de
contemplar a chuva. As crianças receberam com alvoroço Aureliano
Segundo, que voltou a tocar para elas o acordeão asmático. Mas o concerto
não lhes chamou tanto a atenção quanto as sessões enciclopédicas, de modo
que voltaram novamente a se reunir no quarto de Meme, onde a imaginação
de Aureliano Segundo transformou o dirigível num elefante voador que
procurava um lugar para dormir entre as nuvens. Em certa ocasião
encontrou um homem a cavalo que apesar de suas vestes exóticas
conservava certo ar familiar e depois de muito examiná-lo chegou à
conclusão de que era um retrato do Coronel Aureliano Buendía. Mostrou-o a
Fernanda e também ela admitiu a semelhança do ginete não só com o
coronel, mas com todos os membros da família, embora na verdade fosse um
guerreiro tártaro. Assim foi passando o tempo, entre o colosso de Rodes e os
encantadores de serpentes, até que a esposa lhe anunciou que não restavam
mais do que seis quilos de carne-seca e um saco de arroz na despensa.
— E o que você quer que eu faça? — perguntou ele.
— Não sei — respondeu Fernanda. — Isso é problema de homem.
— Bem — disse Aureliano Segundo — alguma coisa será feita quando
estiar.
Continuou mais interessado na enciclopédia do que no problema
doméstico, mesmo quando teve que se conformar com uma pelanca e um
pouco de arroz no almoço. “Agora é impossível fazer qualquer coisa”, dizia.
“Não pode chover a vida inteira.” E quanto mais folga dava às urgências da
despensa, mas intensa se ia fazendo a indignação de Fernanda, até que os
seus protestos eventuais, as suas queixas pouco frequentes transbordaram
numa torrente incontida, desatada, que começou certa manhã como o
monótono bordão de uma guitarra e que à medida que avançava o dia foi
subindo de tom, cada vez mais rico, mais esplêndido. Aureliano Segundo não
tomou consciência da ladainha até o dia seguinte depois do café quando se
sentiu aturdido por um zumbido que já estava mais fluido e mais alto que o
barulho da chuva e era Fernanda que passeava pela casa inteira se
lamentando de que a tivessem educado como uma rainha para acabar de
criada numa casa de loucos, com um marido vagabundo, idólatra, libertino,
que ficava de papo para o ar esperando que chovesse pão do céu, enquanto
ela destroncava os rins tentando manter à tona um lar preso com alfinetes,
onde tinha tanto que fazer, tanto que aguentar e corrigir, desde que
amanhecia o Senhor até a hora de dormir, que já chegava na cama com os
olhos vidrados, e no entanto nunca ninguém lhe dera um bom dia,
Fernanda, como passou a noite, Fernanda? nem lhe perguntara, mesmo que
fosse só por delicadeza, por que estava tão pálida nem por que se levantava
com essas olheiras roxas, apesar de ela não esperar, é claro, que aquilo saísse
do resto de uma família que afinal de contas sempre a considerara como um
estorvo, como o pegador de panelas, como uma bruxinha de pano
pendurada na parede, e que sempre andavam tresvariando contra ela pelos
cantos, chamando-a de santarrona, chamando-a de fariseia, chamando-a de
velhaca, e até Amaranta, que Deus tenha, havia dito a viva voz que ela era
das que confundiam o reto com as têmporas, bendito seja Deus que palavras,
e ela aguentara tudo com resignação pelas intenções do Santo Pai, mas não
pudera suportar mais quando o malvado do José Arcadio Segundo disse que
a perdição da família tinha sido abrir as portas para uma franguinha,
imaginem, uma franguinha mandona, valha-me Deus, uma franguinha filha
de má saliva, da mesma índole dos frangotes que o Governo tinha mandado
para matar os trabalhadores, veja você, e se referia nada mais nada menos do
que a ela, a afilhada do Duque de Alba, uma dama de tanta classe que
deixava as esposas dos presidentes no chinelo, uma fidalga de sangue como
ela que tinha o direito de assinar onze sobrenomes peninsulares e que era o
único mortal desse povoado de bastardos que não se sentia atrapalhado
diante de dezesseis talheres, para que logo o adúltero do seu marido dissesse
morrendo de rir que tantas colheres e garfos, e tantas facas e colherinhas,
não eram coisa de cristão, mas de centopeia, e a única que podia dizer de
olhos fechados quando se servia o vinho branco, e de que lado, em que taça,
e quando se servia o vinho tinto, e de que lado, e em que taça, e não como a
rústica da Amaranta, que em paz descanse, que pensava que o vinho branco
se servia de dia e o vinho tinto de noite, e a única em todo o litoral que podia
se vangloriar de não se ter aliviado a não ser em penicos de ouro, para que
em seguida o Coronel Aureliano Buendía, que em paz descanse, tivesse o
atrevimento de perguntar com os seus maus bofes de maçom a troco de que
tinha merecido esse privilégio, por acaso ela não cagava merda, e sim
orquídeas?, imaginem, com essas palavras, e para que Renata, sua própria
filha, que por indiscrição tinha visto o seu número dois no quarto,
respondesse que realmente o penico era de muito ouro e de muita heráldica,
mas o que tinha dentro era pura merda, merda física, e pior ainda que as
outras, porque era merda de gente metida a besta, imaginem, a sua própria
filha, de modo que nunca tivera ilusões com o resto da família, mas de
qualquer maneira tinha o direito de esperar um pouco mais de consideração
da parte do marido, já que bem ou mal era o seu cônjuge de sacramento, o
seu autor, o seu legítimo prejudicador
{1}
, que se encarregara por livre e
espontânea vontade da grave responsabilidade de tirá-la do solar paterno,
onde nunca se privara de nada nem sofrera por nada, onde tecia coroas
fúnebres por pura diversão, já que seu padrinho tinha mandado uma carta
com a sua assinatura e o selo do seu anel impresso no lacre, só para dizer que
as mãos da afilhada não tinham sido feitas para os trabalhos deste mundo
que não fossem tocar clavicórdio e, entretanto, o insensato do marido a tirara
de casa, com todas admoestações e advertências, e a trouxera para aquela
caldeira do inferno onde não se podia respirar de tanto calor, e antes de que
ela acabasse de guardar as suas abstinências de Pentecostes, já tinha ido
embora com os seus baús migratórios e o seu acordeão de perdulário para
gozar em adultério com uma desgraçada de quem bastava olhar as nádegas,
bem, já estava dito, de quem bastava olhar as nádegas de potranca para
adivinhar que era uma, que era uma, exatamente o contrário dela, que era
uma dama no palácio ou na pocilga, na mesa ou na cama, uma dama de
nascença, temente a Deus, obediente às suas leis e submissa aos seus
desígnios, e com quem não podia fazer, é claro, as nojeiras e vagabundagens
que fazia com a outra, que é claro que se prestava a tudo, como as matronas
francesas, e pior ainda, pensando bem, porque estas pelo menos tinham a
honradez de colocar uma luz vermelha na porta, semelhantes porcarias,
imaginem, só faltava essa, com a filha única e bem-amada de D. Renata
Argote e D. Fernando del Carpio, e sobretudo deste, é claro, um santo varão,
um cristão dos grandes, Cavaleiro da Ordem do Santo Sepulcro, desses que
recebem diretamente de Deus o privilégio de se conservarem intactos na
cova, com a pele esticada como cetim de noiva e os olhos vivos e diáfanos
como as esmeraldas.
— Isto é que não é verdade — interrompeu-a Aureliano Segundo —
quando o trouxeram já estava fedendo.
continua página 200...
___________________
Cem Anos de Solidão (14.1) - Choveu durante quatro anos
___________________
______________
[1] No original: legítimo perjudicador. Explicação do autor à tradutora:
“Quando um homem possui uma mulher sem consentimento (é possível?),
diz-se que a perjudicou. Fernanda quer dizer que Aureliano Segundo a
perjudicou, mas com todo o direito, porque era seu esposo legal: seu legitimo
prejudicador.”
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