Gabriel Garcia Márquez
(13.1)
para jomí garcía ascot
e maría luisa elío
OS ACONTECIMENTOS QUE haveriam de dar o golpe
de morte em Macondo começavam a se vislumbrar quando trouxeram para
casa o filho de Meme Buendía. A situação pública estava na época tão
incerta que ninguém tinha o espírito disposto para se ocupar de escândalos
particulares, de modo que Fernanda contou com um ambiente propício
para manter a criança escondida como se não houvesse existido nunca. Teve
que recebê-la porque as circunstâncias em que a trouxeram não tornavam
possível a recusa. Teve que suportá-la contra a vontade pelo resto da vida,
porque na hora da verdade faltou a coragem para cumprir a íntima
determinação de afogá-la na caixa-d’água do banheiro. Trancou-a na antiga
oficina do Coronel Aureliano Buendía. A Santa Sofía de la Piedad conseguiu
convencer de que o havia encontrado flutuando numa cestinha. Úrsula
haveria de morrer sem saber da sua origem. A pequena Amaranta Úrsula,
que entrou na oficina uma vez, quando Fernanda estava alimentando o
menino, também acreditou na versão da cestinha flutuante. Aureliano
Segundo, definitivamente distanciado da esposa pela forma irracional com
que esta conduzira a tragédia de Meme, não soube da existência do neto a
não ser três anos depois que o trouxeram para casa, quando o menino fugiu
do cativeiro por um descuido de Fernanda e apareceu na varanda por uma
fração de segundo, nu, com os cabelos emaranhados e com um
impressionante sexo de carúnculas de peru, como se não fosse uma criatura
humana e sim a definição enciclopédica de um antropófago. Fernanda não
contava com aquele mal passo do seu incorrigível destino. O menino foi
como a volta de uma vergonha que ela acreditava ter desterrado para
sempre de casa. Mal levaram Mauricio Babilonia com a espinha dorsal
fraturada, Fernanda já havia concebido até o detalhe mas ínfimo de um
plano destinado a eliminar qualquer vestígio do opróbrio. Sem consultar o
marido, fez no dia seguinte a sua bagagem, meteu numa maleta as três
mudas que a filha podia necessitar e foi buscá-la no quarto, meia hora antes
da chegada do trem.
Não deu nenhuma explicação. Meme, por outro lado, não a esperava
nem a queria. Não só ignorava para onde iam como também tanto fazia se a
tivessem levado para o matadouro. Não voltara a falar, nem o faria pelo resto
da vida, desde que ouvira o tiro no quintal e o simultâneo uivo de dor de
Mauricio Babilonia. Quando a mãe lhe ordenou sair do quarto, não se
penteou nem lavou o rosto, e subiu no trem como uma sonâmbula, sem
perceber sequer as borboletas que continuavam a acompanhá-la. Fernanda
nunca soube, nem se deu o trabalho de averiguar, se o seu silêncio pétreo era
uma determinação da vontade ou se tinha ficado muda pelo impacto da
tragédia. Meme mal se deu conta da viagem através da antiga região
encantada. Não viu as sombrias e intermináveis plantações de banana de
ambos os lados da linha. Não viu as casas brancas dos ianques, nem os seus
jardins áridos de poeira e calor, nem as mulheres de bermudas e blusas de
listras azuis que jogavam cartas nas varandas. Não viu os carros de boi
carregados de cachos nas trilhas empoeiradas. Não viu as donzelas que
pulavam como savelhos nos rios transparentes para deixar nos passageiros do
trem a amargura dos seios esplêndidos, nem os barracos aglomerados e
miseráveis dos trabalhadores onde voejavam as borboletas amarelas de
Mauricio Babilonia e em cujas portas havia crianças verdes e esquálidas
sentadas nos peniquinhos e mulheres grávidas que gritavam impropérios à
passagem do trem. Aquela visão fugaz, que para ela era uma festa quando
voltava do colégio, passou pelo coração de Meme sem aviválo. Não olhou pela
janela nem sequer quando acabou a umidade ardente das plantações e o
trem passou pela planície de amapolas onde ainda estava o esqueleto
carbonizado do galeão espanhol e saiu em seguida para o mesmo ar diáfano
e para o mesmo mar espumoso e sujo onde quase um século antes tinham
fracassado as ilusões de José Arcadio Buendía.
Às cinco da tarde, quando chegaram à estação final do pântano,
desceu do trem porque Fernanda o fez. Subiram num carrinho que parecia
um morcego enorme puxado por um cavalo asmático e atravessaram a
cidade desolada, em cujas ruas intermináveis e cortadas pelo salitre ressoava
um exercício de piano igual ao que escutara Fernanda nas sestas da
adolescência. Embarcaram num navio fluvial cuja roda de madeira fazia um
barulho de conflagração e cujas lâminas de ferro carcomidas pelo óxido
reverberaram como a boca de um forno. Meme se trancou no camarote.
Duas vezes por dia Fernanda deixava um prato de comida junto à cama e
duas vezes por dia o levava intacto, não porque Meme estivesse resolvida a
morrer de fome, mas porque o simples cheiro dos alimentos a enjoava, e o
seu estômago devolvia até água. Nem ela mesma sabia na época que a sua
fertilidade tinha enganado os vapores de mostarda, assim como Fernanda
não o soube até quase um ano depois, quando trouxeram o menino. No
camarote sufocante, transtornada pela vibração das paredes de ferro e pela
exalação insuportável do lodo revolvido pela roda da embarcação, Meme
perdeu a conta dos dias. Tinha passado já muito tempo quando viu a última
borboleta amarela sendo destroçada nas pás do ventilador e admitiu como
uma verdade irremediável que Mauricio Babilonia tinha morrido. Entre
tanto, não se deixou vencer pela resignação. Continuava pensando nele
durante a penosa travessia, a lombo de burro, do ermo alucinante onde
Aureliano Segundo se perdera quando procurava a mulher mais bela que
havia existido sobre a terra, e quando atravessaram a cordilheira pelas trilhas
de índio e entraram na cidade lúgubre em cujos despenhadeiros de pedra
ressoavam os bronzes funerários de trinta e duas igrejas. Nessa noite,
dormiram na abandonada mansão colonial, sobre as tábuas que Fernanda
pôs no chão de um aposento invadido pelo mato e cobertas com trapos de
cortinas que arrancaram das janelas e que se desfaziam a cada virada do
corpo. Meme soube onde estavam porque no espanto da insônia viu passar o
cavaleiro vestido de negro que numa distante véspera de Natal haviam
trazido para casa dentro de um cofre de chumbo. No dia seguinte, depois da
missa, Fernanda conduziu-a para um edifício sombrio que Meme
reconheceu imediatamente pelas evocações que sua mãe costumava fazer
do convento onde a tinham educado para rainha, e então compreendeu
que chegara ao fim da viagem. Enquanto Fernanda falava com alguém no
escritório contíguo, ela ficou num salão axadrezado com grandes óleos de
arcebispos coloniais, tremendo de frio porque ainda trazia um vestido de
etamine com florezinhas negras e os duros borzeguins inchados pelo gelo do
páramo. Estava de pé no centro do salão, pensando em Mauricio Babilonia
sob o jato amarelo dos vitrais, quando saiu do escritório uma noviça muito
bonita que trazia a sua maleta com as três mudas de roupa. Ao passar junto
de Meme estendeulhe a mão sem se deter.
— Vamos, Renata — disse.
Meme tomou-lhe a mão e se deixou levar. A última vez que Fernanda
a viu, tentando acertar o passo com a noviça, acabava de se fechar detrás
dela a grade de ferro da clausura. Ainda pensava em Mauricio Babilonia, no
seu cheiro de óleo e no seu âmbito de borboletas, e continuaria pensando
nele todos os dias de sua vida até a remota madrugada de outono em que
morreria de velhice, com o nome trocado e sem ter dito nunca uma só
palavra, num tenebroso hospital de Cracóvia. Fernanda regressou a
Macondo num trem protegido por guardas armados. Durante a viagem
percebeu a tensão dos passageiros, o aparato militar nos povoados da linha e
o ar rarefeito pela certeza de que alguma coisa de grave ia acontecer, mas
careceu de informação enquanto não chegou a Macondo e lhe contaram
que José Arcadio Segundo estava incitando à greve os trabalhadores da
companhia bananeira.
“Era só o que faltava”, resmungou Fernanda. “Um anarquista na
família.” A greve estourou duas semanas depois e não teve as consequências
dramáticas que se temiam. Os operários aspiravam a que não os obrigassem a
cortar e embarcar banana aos domingos, e o pedido pareceu tão justo que
até o Padre Antonio Isabel intercedeu em seu favor, porque o achou de
acordo com a Lei de Deus. O triunfo da ação, assim como de outras que se
promoveram nos meses seguintes, tirou do anonimato o descolorido José
Arcadio Segundo, de quem se costumava dizer que só tinha servido para
encher o povoado de putas francesas. Com a mesma decisão impulsiva com
que vendeu seus galos de briga para fundar uma empresa de navegação
desatinada, renunciou ao cargo de capataz de grupo da companhia
bananeira e tomou o partido dos trabalhadores. Muito em breve foi apontado
como agente de uma conspiração internacional contra a ordem pública.
Uma noite, no meio de uma semana obscurecida por boatos sombrios,
escapou por milagre de quatro tiros de revólver que lhe foram endereçados
por um desconhecido, quando saía de uma reunião secreta. Foi tão tensa a
atmosfera dos meses seguintes que até Úrsula a percebeu no seu refúgio de
trevas e teve a impressão de estar vivendo de novo os tempos incertos em
que seu filho Aureliano carregava no bolso as pílulas homeopáticas da
subversão. Tentou falar com José Arcadio Segundo para fazê-lo conhecer
esse precedente, mas Aureliano Segundo informou-a de que desde a noite
do atentado ignorava-se o seu paradeiro.
— Igual a Aureliano — exclamou Úrsula. — É como se o mundo
estivesse dando voltas.
Fernanda permaneceu imune à incerteza desses dias. Carecia de
contatos com o mundo exterior, desde a violenta discussão que teve com o
marido por ter determinado a sorte de Meme sem o seu consentimento.
Aureliano Segundo estava disposto a resgatar a filha, com a polícia se fosse
necessário, mas Fernanda fê-lo ver os papéis em que se provava que tinha
ingressado na clausura pela própria vontade. Realmente Meme os havia
assinado quando já estava do outro lado da grade de ferro e o fez com o
mesmo desdém com que se deixara conduzir. No fundo, Aureliano Segundo
não acreditou na legitimidade das provas, assim como nunca tinha
acreditado que Mauricio Babilonia tivesse entrado no quintal para roubar
galinhas, mas ambos os recursos serviram para tranquilizar a sua consciência
e pôde então voltar sem remorsos para a sombra de Petra Cotes, onde
reiniciou as farras ruidosas e as comilanças desenfreadas. Alheia à
inquietude do povoado, surda aos terríveis prognósticos de Úrsula, Fernanda
deu os últimos toques no seu plano consumado. Escreveu uma extensa carta
a seu filho José Arcadio, que já ia receber as primeiras ordens, e nela lhe
comunicou que sua irmã Renata tinha expirado na paz dó Senhor, em
consequência da febre amarela. Em seguida, deixou Amaranta Úrsula aos
cuidados de Santa Sofía de la Piedad e se dedicou a organizar a sua
correspondência com os médicos invisíveis, atrapalhada pelo caso de Meme.
A primeira coisa que fez foi marcar a data definitiva para a adiada
intervenção telepática. Mas os médicos invisíveis responderam que não era
prudente enquanto persistisse o estado de agitação social em Macondo. Ela
estava tão apressada e tão mal informada que explicou a eles em outra carta
que não havia tal estado de agitação e que tudo era fruto das loucuras de
um cunhado seu, que andava com a veneta sindical, como padecera em
outros tempos de brigas de galos e de navegação. Ainda não tinham entrado
em acordo, na calorenta quarta-feira em que bateu na porta de casa uma
freira anciã que trazia uma cestinha pendurada no braço. Ao abrir, Santa
Sofía de la Piedad pensou que fosse um presente e tentou tirar-lhe a
cestinha coberta com um primoroso guardanapo de renda. Mas a freira
impediu, porque tinha instruções para entregá-la pessoalmente, e na reserva
mais estrita, a D.Fernanda del Carpio de Buendía. Era o filho de Meme. O
antigo diretor espiritual de Fernanda lhe explicava numa carta que tinha
nascido dois meses antes e que se tinham permitido batizá-lo com o nome de
Aureliano, como o avô, porque a mãe não despregara os lábios para expressar
a sua vontade. Fernanda se sublevou intimamente contra aquela zombaria
do destino, mas teve forças para dissimular diante da freira.
— Diremos que o encontramos flutuando na cestinha -sorriu.
— Ninguém vai acreditar — disse a freira.
— Se acreditaram nas Sagradas Escrituras — replicou Fernanda —
não vejo por que não vão acreditar em mim.
A freira almoçou em casa, enquanto esperava o trem de volta e, de
acordo com a discrição que tinham exigido dela, não voltou a mencionar a
criança, mas Fernanda viu nela uma testemunha indesejável da sua
vergonha e lamentou que se houvesse banido o costume medieval de
enforcar o mensageiro de más notícias. Foi então que decidiu afogar a
criatura na caixa-d’água, logo que a freira fosse embora, mas o coração não
aguentou e preferiu esperar com paciência até que a infinita bondade de
Deus a libertasse do estorvo.
O novo Aureliano tinha completado um ano quando a tensão pública
estourou sem nenhum aviso. José Arcadio Segundo e outros dirigentes
sindicais que tinham permanecido até então na clandestinidade
apareceram intempestivamente num fim de semana e promoveram
manifestações nos povoados da zona bananeira. A polícia se conformou com
manter a ordem, apenas. Mas na noite de segunda-feira, os dirigentes foram
tirados das suas casas e mandados com grilhões de cinco quilos nos pés para
a prisão da capital da província. Entre eles levaram José Arcadio Segundo e
Lorenzo Gavilán, um coronel da revolução mexicana, exilado em Macondo,
que dizia ter sido testemunha do heroísmo do seu compadre Artemio Cruz.
Entretanto, em menos de três meses já estavam em liberdade, porque o
Governo e a companhia bananeira não conseguiram entrar em acordo sobre
quem deveria alimentá-los na prisão. A revolta dos trabalhadores se baseava
desta vez na insalubridade das vivendas, na farsa dos serviços médicos e na
iniquidade das condições de trabalho. Afirmavam, além disso, que não eram
pagos com dinheiro de verdade, e sim com vales que só serviam para
comprar presunto de Virgínia nos, armazéns da companhia. José Arcadio
Segundo foi preso porque revelou que o sistema dos vales era um recurso da
companhia para financiar os seus navios fruteiros que, se não fosse pelo
comércio dos armazéns, teriam que voltar vazios de Nova Orleans até os
portos de embarque da banana. As outras acusações eram do domínio
público. Os médicos da companhia não examinavam os doentes; apenas os
punham em fila indiana diante dos ambulatórios, e uma enfermeira lhes
colocava na língua uma pílula da cor da pedra-lipes — tivessem
impaludismo, blenorragia ou prisão de ventre. Era uma terapêutica tão
generalizada que as crianças entravam na fila várias vezes e, em vez de
engolir as pílulas, levavam-nas para casa, para marcar com elas os números
cantados no jogo de víspora. Os operários da companhia estavam
amontoados em barracos miseráveis. Os engenheiros, em vez de construir
latrinas, traziam para os acampamentos, no Natal, um reservado portátil
para cada cinquenta pessoas e faziam demonstrações públicas de como
utilizá-los para que durassem mais. Os decrépitos advogados vestidos de
negro, que em outros tempos tinham assediado o Coronel Aureliano Buendía
e que agora eram procuradores da companhia bananeira, desvirtuavam a
função com arbitrariedades que pareciam passes de mágica. Quando os
trabalhadores redigiram uma lista de pedidos unânime, muito tempo se
passou sem que pudessem notificar oficialmente a companhia bananeira.
Imediatamente após ter conhecido a resolução, o Sr. Brown enganchou no
trem o seu suntuoso vagão de vidro e desapareceu de Macondo junto com os
representantes mais conhecidos da sua empresa. Entretanto, vários
operários encontraram um deles no sábado seguinte num bordel e o fizeram
assinar uma cópia do ofício de reivindicações quando estava nu com a
mulher que se prestou a levá-lo para a armadilha. Os enlutados advogados
demonstraram em juízo que aquele homem não tinha nada que ver com a
companhia e, para que ninguém pusesse em dúvida os seus argumentos,
fizeram-no prender como vigarista. Mais tarde, o Sr. Brown foi surpreendido
viajando incógnito num vagão de terceira classe e lhe fizeram assinar outra
cópia da lista de reivindicações. No dia seguinte, compareceu diante dos
juízes com o cabelo pintado de preto e falando um castelhano fluente. Os
advogados demonstraram que não era o Sr. Jack Brown, superintendente da
companhia bananeira e nascido em Prattville, Alabama, mas um inofensivo
vendedor de plantas medicinais, nascido em Macondo e ali mesmo batizado
com o nome de Dagoberto Fonseca. Pouco depois, diante de uma nova
tentativa dos trabalhadores, os advogados exibiram em lugares públicos o
atestado de óbito do Sr. Brown, autenticado por cônsules e chanceleres, e no
qual se dava fé de que no último nove de junho ele tinha sido atropelado em
Chicago por um carro de bombeiros. Cansados daquele delírio hermenêutico,
os trabalhadores repudiaram as autoridades de Macondo e subiram com as
suas queixas aos tribunais supremos. Foi lá que os ilusionistas do direito
demonstraram que as reclamações careciam de toda validade, simplesmente
porque a companhia bananeira não tinha, nem tinha tido nunca nem teria
jamais, trabalhadores a seu serviço, mas sim que os recrutava ocasionalmente
e em caráter temporário. De modo que se dissolveu a patranha do presunto
de Virgínia, das pílulas milagrosas e dos reservados natalinos, e se estabeleceu
por sentença do tribunal, e se proclamou em decretos solenes, a inexistência
dos trabalhadores.
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Cem Anos de Solidão (13.1) - Os acontecimentos
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