sexta-feira, 20 de dezembro de 2024

Gabriel G Márquez - Cem Anos de Solidão (13.1) - Os acontecimentos

Cem Anos de SOLIDÃO

Gabriel Garcia Márquez


(13.1)
para jomí garcía ascot
e maría luisa elío


     OS ACONTECIMENTOS QUE haveriam de dar o golpe de morte em Macondo começavam a se vislumbrar quando trouxeram para casa o filho de Meme Buendía. A situação pública estava na época tão incerta que ninguém tinha o espírito disposto para se ocupar de escândalos particulares, de modo que Fernanda contou com um ambiente propício para manter a criança escondida como se não houvesse existido nunca. Teve que recebê-la porque as circunstâncias em que a trouxeram não tornavam possível a recusa. Teve que suportá-la contra a vontade pelo resto da vida, porque na hora da verdade faltou a coragem para cumprir a íntima determinação de afogá-la na caixa-d’água do banheiro. Trancou-a na antiga oficina do Coronel Aureliano Buendía. A Santa Sofía de la Piedad conseguiu convencer de que o havia encontrado flutuando numa cestinha. Úrsula haveria de morrer sem saber da sua origem. A pequena Amaranta Úrsula, que entrou na oficina uma vez, quando Fernanda estava alimentando o menino, também acreditou na versão da cestinha flutuante. Aureliano Segundo, definitivamente distanciado da esposa pela forma irracional com que esta conduzira a tragédia de Meme, não soube da existência do neto a não ser três anos depois que o trouxeram para casa, quando o menino fugiu do cativeiro por um descuido de Fernanda e apareceu na varanda por uma fração de segundo, nu, com os cabelos emaranhados e com um impressionante sexo de carúnculas de peru, como se não fosse uma criatura humana e sim a definição enciclopédica de um antropófago. Fernanda não contava com aquele mal passo do seu incorrigível destino. O menino foi como a volta de uma vergonha que ela acreditava ter desterrado para sempre de casa. Mal levaram Mauricio Babilonia com a espinha dorsal fraturada, Fernanda já havia concebido até o detalhe mas ínfimo de um plano destinado a eliminar qualquer vestígio do opróbrio. Sem consultar o marido, fez no dia seguinte a sua bagagem, meteu numa maleta as três mudas que a filha podia necessitar e foi buscá-la no quarto, meia hora antes da chegada do trem.

— Vamos, Renata — disse a ela.

     Não deu nenhuma explicação. Meme, por outro lado, não a esperava nem a queria. Não só ignorava para onde iam como também tanto fazia se a tivessem levado para o matadouro. Não voltara a falar, nem o faria pelo resto da vida, desde que ouvira o tiro no quintal e o simultâneo uivo de dor de Mauricio Babilonia. Quando a mãe lhe ordenou sair do quarto, não se penteou nem lavou o rosto, e subiu no trem como uma sonâmbula, sem perceber sequer as borboletas que continuavam a acompanhá-la. Fernanda nunca soube, nem se deu o trabalho de averiguar, se o seu silêncio pétreo era uma determinação da vontade ou se tinha ficado muda pelo impacto da tragédia. Meme mal se deu conta da viagem através da antiga região encantada. Não viu as sombrias e intermináveis plantações de banana de ambos os lados da linha. Não viu as casas brancas dos ianques, nem os seus jardins áridos de poeira e calor, nem as mulheres de bermudas e blusas de listras azuis que jogavam cartas nas varandas. Não viu os carros de boi carregados de cachos nas trilhas empoeiradas. Não viu as donzelas que pulavam como savelhos nos rios transparentes para deixar nos passageiros do trem a amargura dos seios esplêndidos, nem os barracos aglomerados e miseráveis dos trabalhadores onde voejavam as borboletas amarelas de Mauricio Babilonia e em cujas portas havia crianças verdes e esquálidas sentadas nos peniquinhos e mulheres grávidas que gritavam impropérios à passagem do trem. Aquela visão fugaz, que para ela era uma festa quando voltava do colégio, passou pelo coração de Meme sem aviválo. Não olhou pela janela nem sequer quando acabou a umidade ardente das plantações e o trem passou pela planície de amapolas onde ainda estava o esqueleto carbonizado do galeão espanhol e saiu em seguida para o mesmo ar diáfano e para o mesmo mar espumoso e sujo onde quase um século antes tinham fracassado as ilusões de José Arcadio Buendía.
     Às cinco da tarde, quando chegaram à estação final do pântano, desceu do trem porque Fernanda o fez. Subiram num carrinho que parecia um morcego enorme puxado por um cavalo asmático e atravessaram a cidade desolada, em cujas ruas intermináveis e cortadas pelo salitre ressoava um exercício de piano igual ao que escutara Fernanda nas sestas da adolescência. Embarcaram num navio fluvial cuja roda de madeira fazia um barulho de conflagração e cujas lâminas de ferro carcomidas pelo óxido reverberaram como a boca de um forno. Meme se trancou no camarote. Duas vezes por dia Fernanda deixava um prato de comida junto à cama e duas vezes por dia o levava intacto, não porque Meme estivesse resolvida a morrer de fome, mas porque o simples cheiro dos alimentos a enjoava, e o seu estômago devolvia até água. Nem ela mesma sabia na época que a sua fertilidade tinha enganado os vapores de mostarda, assim como Fernanda não o soube até quase um ano depois, quando trouxeram o menino. No camarote sufocante, transtornada pela vibração das paredes de ferro e pela exalação insuportável do lodo revolvido pela roda da embarcação, Meme perdeu a conta dos dias. Tinha passado já muito tempo quando viu a última borboleta amarela sendo destroçada nas pás do ventilador e admitiu como uma verdade irremediável que Mauricio Babilonia tinha morrido. Entre tanto, não se deixou vencer pela resignação. Continuava pensando nele durante a penosa travessia, a lombo de burro, do ermo alucinante onde Aureliano Segundo se perdera quando procurava a mulher mais bela que havia existido sobre a terra, e quando atravessaram a cordilheira pelas trilhas de índio e entraram na cidade lúgubre em cujos despenhadeiros de pedra ressoavam os bronzes funerários de trinta e duas igrejas. Nessa noite, dormiram na abandonada mansão colonial, sobre as tábuas que Fernanda pôs no chão de um aposento invadido pelo mato e cobertas com trapos de cortinas que arrancaram das janelas e que se desfaziam a cada virada do corpo. Meme soube onde estavam porque no espanto da insônia viu passar o cavaleiro vestido de negro que numa distante véspera de Natal haviam trazido para casa dentro de um cofre de chumbo. No dia seguinte, depois da missa, Fernanda conduziu-a para um edifício sombrio que Meme reconheceu imediatamente pelas evocações que sua mãe costumava fazer do convento onde a tinham educado para rainha, e então compreendeu que chegara ao fim da viagem. Enquanto Fernanda falava com alguém no escritório contíguo, ela ficou num salão axadrezado com grandes óleos de arcebispos coloniais, tremendo de frio porque ainda trazia um vestido de etamine com florezinhas negras e os duros borzeguins inchados pelo gelo do páramo. Estava de pé no centro do salão, pensando em Mauricio Babilonia sob o jato amarelo dos vitrais, quando saiu do escritório uma noviça muito bonita que trazia a sua maleta com as três mudas de roupa. Ao passar junto de Meme estendeulhe a mão sem se deter. 

— Vamos, Renata — disse.

     Meme tomou-lhe a mão e se deixou levar. A última vez que Fernanda a viu, tentando acertar o passo com a noviça, acabava de se fechar detrás dela a grade de ferro da clausura. Ainda pensava em Mauricio Babilonia, no seu cheiro de óleo e no seu âmbito de borboletas, e continuaria pensando nele todos os dias de sua vida até a remota madrugada de outono em que morreria de velhice, com o nome trocado e sem ter dito nunca uma só palavra, num tenebroso hospital de Cracóvia. Fernanda regressou a Macondo num trem protegido por guardas armados. Durante a viagem percebeu a tensão dos passageiros, o aparato militar nos povoados da linha e o ar rarefeito pela certeza de que alguma coisa de grave ia acontecer, mas careceu de informação enquanto não chegou a Macondo e lhe contaram que José Arcadio Segundo estava incitando à greve os trabalhadores da companhia bananeira.
     “Era só o que faltava”, resmungou Fernanda. “Um anarquista na família.” A greve estourou duas semanas depois e não teve as consequências dramáticas que se temiam. Os operários aspiravam a que não os obrigassem a cortar e embarcar banana aos domingos, e o pedido pareceu tão justo que até o Padre Antonio Isabel intercedeu em seu favor, porque o achou de acordo com a Lei de Deus. O triunfo da ação, assim como de outras que se promoveram nos meses seguintes, tirou do anonimato o descolorido José Arcadio Segundo, de quem se costumava dizer que só tinha servido para encher o povoado de putas francesas. Com a mesma decisão impulsiva com que vendeu seus galos de briga para fundar uma empresa de navegação desatinada, renunciou ao cargo de capataz de grupo da companhia bananeira e tomou o partido dos trabalhadores. Muito em breve foi apontado como agente de uma conspiração internacional contra a ordem pública. Uma noite, no meio de uma semana obscurecida por boatos sombrios, escapou por milagre de quatro tiros de revólver que lhe foram endereçados por um desconhecido, quando saía de uma reunião secreta. Foi tão tensa a atmosfera dos meses seguintes que até Úrsula a percebeu no seu refúgio de trevas e teve a impressão de estar vivendo de novo os tempos incertos em que seu filho Aureliano carregava no bolso as pílulas homeopáticas da subversão. Tentou falar com José Arcadio Segundo para fazê-lo conhecer esse precedente, mas Aureliano Segundo informou-a de que desde a noite do atentado ignorava-se o seu paradeiro.  

— Igual a Aureliano — exclamou Úrsula. — É como se o mundo estivesse dando voltas.

     Fernanda permaneceu imune à incerteza desses dias. Carecia de contatos com o mundo exterior, desde a violenta discussão que teve com o marido por ter determinado a sorte de Meme sem o seu consentimento. Aureliano Segundo estava disposto a resgatar a filha, com a polícia se fosse necessário, mas Fernanda fê-lo ver os papéis em que se provava que tinha ingressado na clausura pela própria vontade. Realmente Meme os havia assinado quando já estava do outro lado da grade de ferro e o fez com o mesmo desdém com que se deixara conduzir. No fundo, Aureliano Segundo não acreditou na legitimidade das provas, assim como nunca tinha acreditado que Mauricio Babilonia tivesse entrado no quintal para roubar galinhas, mas ambos os recursos serviram para tranquilizar a sua consciência e pôde então voltar sem remorsos para a sombra de Petra Cotes, onde reiniciou as farras ruidosas e as comilanças desenfreadas. Alheia à inquietude do povoado, surda aos terríveis prognósticos de Úrsula, Fernanda deu os últimos toques no seu plano consumado. Escreveu uma extensa carta a seu filho José Arcadio, que já ia receber as primeiras ordens, e nela lhe comunicou que sua irmã Renata tinha expirado na paz dó Senhor, em consequência da febre amarela. Em seguida, deixou Amaranta Úrsula aos cuidados de Santa Sofía de la Piedad e se dedicou a organizar a sua correspondência com os médicos invisíveis, atrapalhada pelo caso de Meme. A primeira coisa que fez foi marcar a data definitiva para a adiada intervenção telepática. Mas os médicos invisíveis responderam que não era prudente enquanto persistisse o estado de agitação social em Macondo. Ela estava tão apressada e tão mal informada que explicou a eles em outra carta que não havia tal estado de agitação e que tudo era fruto das loucuras de um cunhado seu, que andava com a veneta sindical, como padecera em outros tempos de brigas de galos e de navegação. Ainda não tinham entrado em acordo, na calorenta quarta-feira em que bateu na porta de casa uma freira anciã que trazia uma cestinha pendurada no braço. Ao abrir, Santa Sofía de la Piedad pensou que fosse um presente e tentou tirar-lhe a cestinha coberta com um primoroso guardanapo de renda. Mas a freira impediu, porque tinha instruções para entregá-la pessoalmente, e na reserva mais estrita, a D.Fernanda del Carpio de Buendía. Era o filho de Meme. O antigo diretor espiritual de Fernanda lhe explicava numa carta que tinha nascido dois meses antes e que se tinham permitido batizá-lo com o nome de Aureliano, como o avô, porque a mãe não despregara os lábios para expressar a sua vontade. Fernanda se sublevou intimamente contra aquela zombaria do destino, mas teve forças para dissimular diante da freira. 

— Diremos que o encontramos flutuando na cestinha -sorriu.
— Ninguém vai acreditar — disse a freira. 
— Se acreditaram nas Sagradas Escrituras — replicou Fernanda — não vejo por que não vão acreditar em mim. 

     A freira almoçou em casa, enquanto esperava o trem de volta e, de acordo com a discrição que tinham exigido dela, não voltou a mencionar a criança, mas Fernanda viu nela uma testemunha indesejável da sua vergonha e lamentou que se houvesse banido o costume medieval de enforcar o mensageiro de más notícias. Foi então que decidiu afogar a criatura na caixa-d’água, logo que a freira fosse embora, mas o coração não aguentou e preferiu esperar com paciência até que a infinita bondade de Deus a libertasse do estorvo.
     O novo Aureliano tinha completado um ano quando a tensão pública estourou sem nenhum aviso. José Arcadio Segundo e outros dirigentes sindicais que tinham permanecido até então na clandestinidade apareceram intempestivamente num fim de semana e promoveram manifestações nos povoados da zona bananeira. A polícia se conformou com manter a ordem, apenas. Mas na noite de segunda-feira, os dirigentes foram tirados das suas casas e mandados com grilhões de cinco quilos nos pés para a prisão da capital da província. Entre eles levaram José Arcadio Segundo e Lorenzo Gavilán, um coronel da revolução mexicana, exilado em Macondo, que dizia ter sido testemunha do heroísmo do seu compadre Artemio Cruz. Entretanto, em menos de três meses já estavam em liberdade, porque o Governo e a companhia bananeira não conseguiram entrar em acordo sobre quem deveria alimentá-los na prisão. A revolta dos trabalhadores se baseava desta vez na insalubridade das vivendas, na farsa dos serviços médicos e na iniquidade das condições de trabalho. Afirmavam, além disso, que não eram pagos com dinheiro de verdade, e sim com vales que só serviam para comprar presunto de Virgínia nos, armazéns da companhia. José Arcadio Segundo foi preso porque revelou que o sistema dos vales era um recurso da companhia para financiar os seus navios fruteiros que, se não fosse pelo comércio dos armazéns, teriam que voltar vazios de Nova Orleans até os portos de embarque da banana. As outras acusações eram do domínio público. Os médicos da companhia não examinavam os doentes; apenas os punham em fila indiana diante dos ambulatórios, e uma enfermeira lhes colocava na língua uma pílula da cor da pedra-lipes — tivessem impaludismo, blenorragia ou prisão de ventre. Era uma terapêutica tão generalizada que as crianças entravam na fila várias vezes e, em vez de engolir as pílulas, levavam-nas para casa, para marcar com elas os números cantados no jogo de víspora. Os operários da companhia estavam amontoados em barracos miseráveis. Os engenheiros, em vez de construir latrinas, traziam para os acampamentos, no Natal, um reservado portátil para cada cinquenta pessoas e faziam demonstrações públicas de como utilizá-los para que durassem mais. Os decrépitos advogados vestidos de negro, que em outros tempos tinham assediado o Coronel Aureliano Buendía e que agora eram procuradores da companhia bananeira, desvirtuavam a função com arbitrariedades que pareciam passes de mágica. Quando os trabalhadores redigiram uma lista de pedidos unânime, muito tempo se passou sem que pudessem notificar oficialmente a companhia bananeira. Imediatamente após ter conhecido a resolução, o Sr. Brown enganchou no trem o seu suntuoso vagão de vidro e desapareceu de Macondo junto com os representantes mais conhecidos da sua empresa. Entretanto, vários operários encontraram um deles no sábado seguinte num bordel e o fizeram assinar uma cópia do ofício de reivindicações quando estava nu com a mulher que se prestou a levá-lo para a armadilha. Os enlutados advogados demonstraram em juízo que aquele homem não tinha nada que ver com a companhia e, para que ninguém pusesse em dúvida os seus argumentos, fizeram-no prender como vigarista. Mais tarde, o Sr. Brown foi surpreendido viajando incógnito num vagão de terceira classe e lhe fizeram assinar outra cópia da lista de reivindicações. No dia seguinte, compareceu diante dos juízes com o cabelo pintado de preto e falando um castelhano fluente. Os advogados demonstraram que não era o Sr. Jack Brown, superintendente da companhia bananeira e nascido em Prattville, Alabama, mas um inofensivo vendedor de plantas medicinais, nascido em Macondo e ali mesmo batizado com o nome de Dagoberto Fonseca. Pouco depois, diante de uma nova tentativa dos trabalhadores, os advogados exibiram em lugares públicos o atestado de óbito do Sr. Brown, autenticado por cônsules e chanceleres, e no qual se dava fé de que no último nove de junho ele tinha sido atropelado em Chicago por um carro de bombeiros. Cansados daquele delírio hermenêutico, os trabalhadores repudiaram as autoridades de Macondo e subiram com as suas queixas aos tribunais supremos. Foi lá que os ilusionistas do direito demonstraram que as reclamações careciam de toda validade, simplesmente porque a companhia bananeira não tinha, nem tinha tido nunca nem teria jamais, trabalhadores a seu serviço, mas sim que os recrutava ocasionalmente e em caráter temporário. De modo que se dissolveu a patranha do presunto de Virgínia, das pílulas milagrosas e dos reservados natalinos, e se estabeleceu por sentença do tribunal, e se proclamou em decretos solenes, a inexistência dos trabalhadores.

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