Aluísio Azevedo
XIX
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Daí a dias, com efeito, a estalagem metia-se em obras. À desordem do desentulho do incêndio
sucedia a do trabalho dos pedreiros; martelava-se ali de pela manhã até à noite, o que aliás não
impedia que as lavadeiras continuassem a bater roupa e as engomadeiras reunissem ao barulho das
ferramentas o choroso falsete das suas eternas cantigas.
Os que ficaram sem casa foram aboletados a trouxe-mouxe por todos os cantos, à espera dos novos
cômodos. Ninguém se mudou para o “Cabeça-de-Gato”.
As obras principiaram pelo lado esquerdo do cortiço, o lado do Miranda; os antigos moradores
tinham preferência e vantagens nos preços. Um dos italianos feridos morreu na Misericórdia e o
outro, também lá, continuava ainda em risco de vida. Bruno recolhera-se à Ordem de que era irmão,
e Leocádia, que não quis atender àquela carta escrita por Pombinha, resolveu-se a ir visitar o seu
homem no hospital. Que alegrão para o infeliz a volta da mulher, aquela mulher levada dos diabos,
mas de carne dura, a quem ele, apesar de tudo, queria muito. Com a visita reconciliaram-se,
chorando ambos, e Leocádia decidiu tornar para o “São Romão” e viver de novo com o marido.
Agora fazia-se muito séria e ameaçava com pancada a quem lhe propunha brejeirices.
Piedade, essa e que se levantou das febres completamente transformada. Não parecia a mesma
depois do abandono de Jerônimo; emagrecera em extremo, perdera as cores do rosto, ficara feia,
triste e resmungona; mas não se queixava, e ninguém lhe ouvia falar no nome do esposo.
Esses meses, durante as obras, foram uma época especial para a estalagem. O cortiço não dava ideia
do seu antigo caráter, tão acentuado e, no entanto, tão misto: aquilo agora parecia uma grande oficina
improvisada, um arsenal, em cujo fragor a gente só se entende por sinais. As lavadeiras fugiram para
o capinzal dos fundos, porque o pó da terra e da madeira sujava-lhes a roupa lavada. Mas, dentro de
pouco tempo, estava tudo pronto; e, com imenso pasmo, viram que a venda, a sebosa bodega, onde
João Romão se fez gente, ia também entrar em obras. O vendeiro resolvera aproveitar dela somente
algumas das paredes, que eram de um metro de largura, talhadas à portuguesa; abriria as portas em
arco, suspenderia o teto e levantaria um sobrado, mais alto que o do Miranda e, com toda a certeza,
mais vistoso. Prédio para meter o do outro no chinelo; quatro janelas de frente, oito de lado, com um
terraço ao fundo. O lugar em que ele dormia com Bertoleza, a cozinha e a casa de pasto seriam
abobadadas, formando, com a parte de taverna, um grande armazém, em que o seu comércio iria
fortalecer-se e alargar-se.
O Barão e o Botelho apareciam por lá quase todos os dias, ambos muito interessados pela
prosperidade do vizinho; examinavam os materiais escolhidos para a construção, batiam com a
biqueira do chapéu de sol no pinho de Riga destinado ao assoalho, e afetando-se bons entendedores,
tomavam na palma da mão e esfarelavam entre os dedos um punhado da terra e da cal com que os
operários faziam barro. Às vezes chegavam a ralhar com os trabalhadores, quando lhes parecia que
não iam bem no serviço! João Romão, agora sempre de paletó, engravatado, calças brancas, colete e
corrente de relógio, já não parava na venda, e só acompanhava as obras na folga das ocupações da
rua. Principiava a tomar tino no jogo da Bolsa; comia em hotéis caros e bebia cerveja em larga
camaradagem com capitalistas nos cafés do comércio.
E a crioula? Como havia de ser?
Era isto justamente o que, tanto o Barão como o Botelho, morriam por que lhe dissessem. Sim,
porque aquela boa casa que se estava fazendo, e os ricos móveis encomendados, e mais as pratas e as
porcelanas que haviam de vir, não seriam decerto para os beiços da negra velha! Conservá-la-ia
como criada? Impossível! Todo Botafogo sabia que eles até ai fizeram vida comum!
Todavia, tanto o Miranda, como o outro, não se animavam a abrir o bico a esse respeito com o
vizinho e contentavam-se em boquejar entre si misteriosamente, palpitando ambos por ver a saída
que o vendeiro acharia para semelhante situação.
Maldita preta dos diabos! Era ela o único defeito, o senão de um homem tão importante e tão digno!
- Agora, não se passava um domingo sem que o amigo de Bertoleza fosse jantar à casa do Miranda.
Iam juntos ao teatro. João Romão dava o braço à Zulmira, e, procurando galanteá-la e mais ao resto
da família, desfazia-se em obséquios brutais e dispendiosos, com uma franqueza exagerada que não
olhava gastos. Se tinham de tomar alguma coisa, ele fazia vir logo três, quatro garrafas ao mesmo
tempo, pedindo sempre o triplo do necessário e acumulando compras inúteis de doces, flores e tudo
o que aparecia. Nos leilões das festas de arraial era tão feroz a sua febre de obsequiar a gente do
Miranda, que nunca voltava para casa sem um homem atrás, carregado com os mimos que o
vendeiro arrematava.
E Bertoleza bem que compreendia tudo isso e bem que estranhava a transformação do amigo. Ele
ultimamente mal se chegava para ela e, quando o fazia, era com tal repugnância, que antes não o
fizesse. A desgraçada muita vez sentia-lhe cheiro de outras mulheres, perfumes de cocotes
estrangeiras e chorava em segredo, sem animo de reclamar os seus direitos. Na sua obscura condição
de animal de trabalho, já não era amor o que a mísera desejava, era somente confiança no amparo da
sua velhice quando de todo lhe faltassem as forças para ganhar a vida. E contentava-se em suspirar
no meio de grandes silêncios durante o serviço de todo o dia, covarde e resignada, como seus pais
que a deixaram nascer e crescer no cativeiro. Escondia-se de todos, mesmo da gentalha do frege e da
estalagem, envergonhada de si própria, amaldiçoando-se por ser quem era, triste de sentir-se a
mancha negra, a indecorosa nódoa daquela prosperidade brilhante e clara.
E, no entanto, adorava o amigo; tinha por ele o fanatismo irracional das caboclas do Amazonas pelo
branco a que se escravizam, dessas que morrem de ciúmes, mas que também são capazes de matar-se
para poupar ao seu ídolo a vergonha do seu amor. O que custava aquele homem consentir que ela,
uma vez por outra, se chegasse para junto dele? Todo o dono, nos momentos de bom humor, afaga o
seu cão... Mas qual! o destino de Bertoleza fazia-se cada vez mais estrito e mais sombrio; pouco a
pouco deixara totalmente de ser a amante do vendeiro, para ficar sendo só uma sua escrava. Como
sempre, era a primeira a erguer-se e a ultima a deitar-se; de manhã escamando peixe, à noite
vendendo-o à porta, para descansar da trabalheira grossa das horas de sol; sempre sem domingo nem
dia santo, sem tempo para cuidar de si, feia, gasta, imunda, repugnante, com o coração eternamente
emprenhado de desgostos que nunca vinham à luz. Afinal, convencendo-se de que ela, sem ter ainda
morrido, já não vivia para ninguém, nem tampouco para si, desabou num fundo entorpecimento
apático, estagnado como um charco podre que causa nojo. Fizera-se áspera, desconfiada, sobrolho
carrancudo, uma linha dura de um canto ao outro da boca. E durante dias inteiros, sem interromper o
serviço, que ela fazia agora automaticamente, por um hábito de muitos anos, gesticulava e mexia
com os lábios, monologando sem pronunciar as palavras. Parecia indiferente a tudo, a tudo que a
cercava.
Não obstante, certo dia em que João Romão conversou muito com Botelho, as lágrimas saltaram dos
olhos da infeliz, e ela teve de abandonar a obrigação, porque o pranto e os soluços não lhe deixavam
fazer nada.
Botelho havia dito ao vendeiro:
- Faça o pedido! É ocasião.
- Hein?
- Pode pedir a mão da pequena. Está tudo pronto!
- O Barão dá-ma?
- Dá.
- Tem certeza disso?
- Ora! se não tivesse não lho diria deste modo!
- Ele prometeu?
- Falei-lhe; fiz-lhe o pedido em seu nome. Disse que estava autorizado por você. Fiz mal?
- Mal? Fez muito bem. Creio até que não é preciso mais nada!
- Não, se o Miranda não vier logo ao seu encontro é bom você lhe falar, compreende?
- Ou escrever.
- Também!
- E a menina?
- Respondo por ela. Você não tem continuado a receber as flores?
- Tenho.
- Pois então não deixe pelo seu lado de ir mandando também as suas e faça o que lhe disse. Atire-se,
seu João, atire-se enquanto o angu está quente!
Por outro lado, Jerônimo empregara-se na pedreira de São Diogo, onde trabalhava dantes, e morava
agora com a Rita numa estalagem da Cidade Nova.
Tiveram de fazer muita despesa para se instalarem; foi-lhes preciso comprar de novo todos os
arranjos de casa, porque do “São Romão” Jerônimo só levou dinheiro, dinheiro que ele já não sabia
poupar. Com o asseio da mulata a sua casinha ficou, todavia, que era um regalo; tinham cortinado na
cama, lençóis de linho, fronhas de renda, muita roupa branca, para mudar todos os dias, toalhas de
mesa, guardanapos; comiam em pratos de porcelana e usavam sabonetes finos. Plantaram à porta
uma trepadeira que subia para o telhado, abrindo pela manhã flores escarlates, de que as abelhas
gostavam muito; penduraram gaiolas de passarinho na sala de jantar; sortiram a despensa de tudo
que mais gostavam; compraram galinhas e marrecos e fizeram um banheiro só para eles, porque o da
estalagem repugnou à baiana que, nesse ponto, era muito escrupulosa.
A primeira parte da sua lua-de-mel foi uma cadeia de delicias continuas; tanto ele como ela, pouco
ou nada trabalharam; a vida dos dois resumira-se, quase que exclusivamente, nos oitos palmos de
colchão novo, que nunca chegava a esfriar de todo. Jamais a existência pareceu tão boa e corredia
para o português; aqueles primeiros dias fugiram-lhe como estrofes seguidas de uma deliciosa
canção de amor, apenas espacejada pelo estribilho dos beijos em dueto; foi um prazer prolongado e
amplo, bebido sem respirar, sem abrir os olhos, naquele colo carnudo e dourado da mulata, a que o
cavouqueiro se abandonara como um bêbedo que adormece abraçado a um garrafão inesgotável de
vinho gostoso.
Estava completamente mudado. Rita apagara-lhe a última réstia das recordações da pátria; secou, ao
calor dos seus lábios grossos e vermelhos, a derradeira lágrima de saudade, que o desterrado lançou
do coração com o extremo arpejo que a sua guitarra suspirou.
A guitarra! substituiu-a ela pelo violão baiano, e deu-lhe a ele uma rede, um cachimbo, e
embebedou-lhe os sonhos de amante prostrado com as suas cantigas do norte, tristes, deleitosas, em
que há caboclinhos curupiras, que no sertão vêm pitar à beira das estradas em noites de lua clara, e
querem que todo o viajante que vai passando lhes ceda fumo e cachaça, sem o que, ai deles! o
curupira transforma-os em bicho-do-mato. E deu-lhe do seu comer da Bahia, temperado com fogoso
azeite-de-dendê, cor de brasa; deu-lhe das suas muquecas escandescentes, de fazer chorar, e
habituou-lhe a carne ao cheiro sensual daquele seu corpo de cobra, lavado três vezes ao dia e três
vezes perfumado com ervas aromáticas.
O português abrasileirou-se para sempre; fez-se preguiçoso, amigo das extravagâncias e dos abusos,
luxurioso e ciumento; fora-se-lhe de vez o espírito da economia e da ordem; perdeu a esperança de
enriquecer, e deu-se todo, todo inteiro, à felicidade de possuir a mulata e ser possuído só por ela, só
ela, e mais ninguém.
A morte do Firmo não vinha nunca a toldar-lhes o gozo da vida; quer ele, quer a amiga, achavam a
coisa muito natural. “O facínora matara tanta gente; fizera tanta maldade; devia, pois, acabar como
acabou! Nada mais justo! Se não fosse Jerônimo, seria outro! Ele assim o quis- bem feito!”
Por esse tempo, Piedade de Jesus, sem se conformar com a ausência do marido, chorava o seu
abandono e ia também agora se transformando de dia para dia, vencida por um desmazelo de
chumbo, uma dura desesperança, a que nem as lágrimas bastavam para adoçar as agruras. A
principio, ainda a pobre de Cristo tentou resistir com coragem àquela viuvez pior que essa outra, em
que há, para elemento de resignação, a certeza de que a pessoa amada nunca mais terá olhos para
cobiçar mulheres, nem boca para pedir amores; mas depois começou a afundar sem resistência na
lama do seu desgosto, covardemente, sem forcas para iludir-se com uma esperança fátua,
abandonando-se ao abandono, desistindo dos seus princípios, do seu próprio caráter, sem se ter já
neste mundo na conta de alguma coisa e continuando a viver somente porque a vida era teimosa e
não queria deixá-la ir apodrecer lá embaixo, por uma vez. Deu para desleixar-se no serviço; as suas
freguesas de roupa começaram a reclamar; foi-lhe fugindo o trabalho pouco a pouco; fez-se madraça
e moleirona, precisando já empregar grande esforço para não bulir nas economias que Jerônimo lhe
deixara, porque isso devia ser para a filha, aquela pobrezita orfanada antes da morte dos pais.
Um dia, Piedade levantou-se queixando-se de dores de cabeça, zoada nos ouvidos e o estômago
embrulhado; aconselharam-lhe que tomasse um trago de parati. Ela aceitou o conselho e passou
melhor. No dia seguinte repetiu a dose; deu-se bem com a perturbação em que a punha o álcool,
esquecia-se um pouco durante algum tempo das amofinações da sua vida; e, gole a gole, habituara-se
a beber todos os dias o seu meio martelo de aguardente, para enganar os pesares.
Agora, que o marido já não estava ali para impedir que a filha pusesse os pés no cortiço, e agora que
Piedade precisava de consolo, a pequena ia passar os domingos com ela. Saíra uma criança forte e
bonita; puxara do pai o vigor físico e da mãe a expressão bondosa da fisionomia. Já tinha nove anos.
Eram esses agora os únicos bons momentos da pobre mulher, esses que ela passava ao lado da filha.
Os antigos moradores da estalagem principiavam a distinguir a menina com a mesma predileção com
que amavam Pombinha, porque em toda aquela gente havia uma necessidade moral de eleger para
mimoso da sua ternura um entezinho delicado e superior, a que eles privilegiavam respeitosamente,
como súditos a um príncipe. Crismaram-na logo com o cognome de “Senhorinha”.
Piedade, apesar do procedimento do marido, ainda no intimo se impressionava com a idéia de que
não devia contrariá-lo nas suas disposições de pai. “Mas que mal tinha que a pequena fosse ali? Era
uma esmola que fazia à mãe! Lá pelo risco de perder-se... Ora adeus, só se perdia quem mesmo já
nascera para a perdição! A outra não se conservara sã e pura? não achara noivo? não casara e não
vivia dignamente com o seu marido? Então?!” E Senhorinha continuou a ir à estalagem, a principio
nos domingos pela manhã, para voltar à tarde, depois já de véspera, nos sábados, para só tornar ao
colégio na segunda-feira.
Jerônimo ao saber disto, por intermédio da professora, revoltou-se no primeiro ímpeto, mas,
pensando bem no caso, achou que era justo deixar à mulher aquele consolo. “Coitada! devia viver
bem aborrecida da sorte!” Tinha ainda por ela um sentimento compassivo, em que a melhor parte
nascera com o remorso. “Era justo, era! que a pequena aos domingos e dias santos lhe fizesse
companhia!” E então, para ver a filha, tinha que ir ao colégio nos dias de semana. Quase sempre
levava-lhe presentes de doce, frutas, e perguntava-lhe se precisava de roupa ou de calçado. Mas, um
belo dia, apresentou-se tão ébrio, que a diretora lhe negou a entrada. Desde essa ocasião, Jerônimo
teve vergonha de lá voltar, e as suas visitas à filha tornaram-se muito raras.
Tempos depois, Senhorinha entregou à mãe uma conta de seis meses da pensão do colégio, com uma
carta em que a diretora negava-se a conservar a menina, no caso que não liquidassem prontamente a
divida. Piedade levou as mãos à cabeça: “Pois o homem já nem o ensino da pequena queria dar?!
Que lhe valesse Deus! onde iria ela fazer dinheiro para educar a filha?! “
Foi à procura do marido; já sabia onde ele morava. Jerônimo recusou-se, por vexame; mandou dizer
que não estava em casa. Ela insistiu; declarou que não arredaria dali sem lhe falar; disse em voz bem
alta que não ia lá por ele, mas pela filha, que estava arriscada a ser expulsa do colégio; ia para saber
que destino lhe havia de dar, porque agora a pequena estava muito taluda para ser enjeitada na roda!
Jerônimo apareceu afinal, com um ar triste de vicioso envergonhado que não tem animo de deixar o
vicio. A mulher, ao vê-lo, perdeu logo toda a energia com que chegara e comoveu-se tanto, que as
lágrimas lhe saltaram dos olhos às primeiras palavras que lhe dirigiu. E ele abaixou os seus e fez-se
lívido defronte daquela figura avelhantada, de peles vazias, de cabelos sujos e encanecidos. Não lhe
parecia a mesma! Como estava mudada! E tratou-a com brandura, quase a pedir-lhe perdão, a voz
muito espremida no aperto da garganta.
- Minha pobre velha... balbuciou, pousando-lhe a mão larga na cabeça.
E os dois emudeceram um defronte do outro, arquejantes. Piedade sentiu ânsias de atirar-se-lhe nos
braços, possuída de imprevista ternura com aquele simples afago do seu homem. Um súbito raio de
esperança iluminou-a toda por dentro, dissolvendo de relance os negrumes acumulados ultimamente
no seu coração. Contava não ouvir ali senão palavras duras e ásperas, ser talvez repelida
grosseiramente, insultada pela outra e coberta de ridículo pelos novos companheiros do marido; mas,
ao encontrá-lo também triste e desgostoso, sua alma prostrou-se reconhecida; e, assim que Jerônimo,
cujas lágrimas corriam já silenciosamente, deixou que a sua mão fosse descendo da cabeça ao ombro
e depois à cintura da esposa, ela desabou, escondendo o rosto contra o peito dele, numa explosão de
soluços que lhe faziam vibrar o corpo inteiro.
Por algum tempo choraram ambos abraçados.
- Consola-te! que queres tu?... São desgraças!... disse o cavouqueiro afinal, limpando os olhos. Foi
como se eu te tivesse morrido... mas podes ficar certa de que te estimo e nunca te quis mal!... Volta
para casa; eu irei pagar o colégio de nossa filhinha e hei de olhar por ti. Vai, e pede a Deus Nosso
Senhor que me perdoe os desgostos que te tenho eu dado!
E acompanhou-a até o portão da estalagem.
Ela, sem poder pronunciar palavra, saiu cabisbaixa, a enxugar os olhos no xale de lã, sacudida ainda
de vez em quando por um soluço retardado.
Entretanto, Jerônimo não mandou saldar a conta do colégio, no dia seguinte, nem no outro, nem
durante todo o resto do mês; e ele, coitado! bem que se mortificou por isso; mas onde ia buscar
dinheiro naquela ocasião? o seu trabalho mal lhe dava agora para viver junto com a mulata; estava já
alcançado nos seus ordenados e devia ao padeiro e ao homem da venda. Rita era desperdiçada e
amiga de gastar à larga; não podia passar sem uns tantos regalos de barriga e gostava de fazer
presentes. Ele, receoso de contrariá-la e quebrar o ovo da sua paz, até ai tão completo com respeito à
baiana, subordinava-se calado e afetando até satisfação; no intimo, porém, o infeliz sofria deveras. A
lembrança constante da filha e da mulher apoquentava-o com pontas de remorso, que dia a dia
alastravam na sua consciência, à proporção que esta ia acordando daquela cegueira. O desgraçado
sentia e compreendia perfeitamente todo o mal da sua conduta; mas só a ideia de separar-se da
amante punha-lhe logo o sangue doido e apagava-se-lhe de novo a luz dos raciocínios. “Não! não!!
tudo que quisessem, menos isso!”
E então, para fugir àquela voz irrefutável, que estava sempre a serrazinar dentro dele, bebia em
camaradagem com os companheiros e habituara-se, dentro em pouco, à embriaguez. Quando
Piedade, quinze dias depois da sua primeira visita, tornou lá, um domingo, acompanhada pela filha,
encontrou-o bêbedo, numa roda de amigos.
Jerônimo recebeu-as com grande escarcéu de alegria. Fê-las entrar. Beijou a pequena repetidas vezes
e suspendeu-a pela cintura, soltando exclamações de entusiasmo.
Com um milhão de raios! que linda estava a sua morgadinha!
Obrigou-as logo a tomar alguma coisa e foi chamar a mulata; queria que as duas mulheres fizessem
as pazes no mesmo instante. Era questão decidida!
Houve uma cena de constrangimentos, quando a portuguesa se viu defronte da baiana.
- Vamos! vamos! Abracem-se! Acabem com isso por uma vez! bradava Jerônimo, a empurrá-las uma
contra a outra. Não quero aqui caras fechadas!
As duas trocaram um aperto de mão, sem se fitarem. Piedade estava escarlate de vergonha.
- Ora muito bem! acrescentou o cavouqueiro. Agora para a coisa ser completa, hão de jantar
conosco!
A portuguesa opôs-se, resmungando desculpas, que o cavouqueiro não aceitou.
- Não as deixo sair! É boa! Pois hei de deixar ir minha filha sem matar as saudades?
Piedade assentou-se a um canto, impaciente pela ocasião de entender-se com o marido sobre o
negócio do colégio. Rita, volúvel como toda a mestiça, não guardava rancores, e, pois, desfez-se em
obséquios com a família do amigo. As outras visitas saíram antes do jantar.
Puseram-se à mesa às quatro horas e principiaram a comer com boa disposição, carregando no
virgem logo desde a sopa. Senhorinha destacava-se do grupo; na sua timidez de menina de colégio
parecia, entre aquela gente, triste e assustada ao mesmo tempo. O pai acabrunhava-a com as suas
solicitudes brutais e com as suas perguntas sobre os estudos. À exceção dela, todos os outros
estavam, antes da sobremesa, mais ou menos chumbados pelo vinho. Jerônimo, esse estava de todo.
Piedade, instigada por ele, esvaziara frequentes vezes o seu copo e, ao fim do jantar, dera para
queixar-se amargamente da vida; foi então que ela, já com azedume na voz, falou na divida do
colégio e nas ameaças da diretora.
- Ora, filha! disse-lhe o cavouqueiro. Agora estás tu também para com essa mastigação! Deixa as
tristezas para outra vez! Não nos amargures o jantar!
- Triste sorte a minha!
- Ai, ai! que temos lamúria!
- Como não me hei de queixar, se tudo me corre mal?!
- Sim! Pois se é para isso que aqui vens, melhor será não tornares cá!... resmungou Jerônimo,
franzindo o sobrolho. Que diabo! com choradeiras nada se endireita! Tenho eu culpa de que sejas
infeliz?... Também o sou e não me queixo de Deus!
Piedade abriu a soluçar.
- Aí temos! berrou o marido, erguendo-se e dando urna punhada forte sobre a mesa. E aturem-na! Por
mais que um homem se não queira zangar, há de estourar por força! Ora bolas!
Senhorinha correu para junto do pai, procurando contê-lo.
- Sebo! berrou ele, desviando-a. Sempre a mesma coisa! Pois não estou disposto a aturar isto! Arre!
- Eu não vim cá por passeio!... prosseguiu Piedade entre lágrimas!. Vim cá para saber da conta do
colégio!...
- Pague-a você, que tem lá o dinheiro que lhe deixei! Eu é que não tenho nenhum!
- Ah! então com que não pagas?!
- Não! Com um milhão de raios!
- É que és muito pior do que eu supunha!
- Sim, hein?! Pois então deixe-me cá com toda a minha ruindade e despache o beco! Despache-o,
antes que eu faça alguma asneira!
- Minha pobre filha! Quem olhará por ela, Senhor dos Aflitos?!
- A pequena já não precisa de colégio! deixe-a cá comigo, que nada lhe faltará!
- Separar-me de minha filha? a única pessoa que me resta?!
- Ó mulher! você não está separada dela a semana inteira?... Pois a pequena, em vez de ficar no
colégio, fica aqui, e aos domingos irá vê-la. Ora aí tem!
- Eu quero antes ficar com minha mãe!... balbuciou a menina, abraçando-se a Piedade.
- Ah! também tu, ingrata, já me fazes guerra?! Pois vão com todos os diabos! e não me tornem cá
para me ferver o sangue, que já tenho de sobra com que arreliar-me!
- Vamos daqui! gritou a portuguesa, travando da filha pelo braço. Maldita a hora em que vim cá!
E as duas, mãe e filha, desapareceram; enquanto Jerônimo, passeando de um para outro lado,
monologava, furioso sob a fermentação do vinho.
Rita não se metera na contenda, nem se mostrara a favor de nenhuma das partes. “O homem, se
quisesse voltar para junto da mulher, que voltasse! Ela não o prenderia, porque amor não era
obrigado!”
Depois de falar só por muito espaço, o cavouqueiro atirou-se a uma cadeira, despejou sombrio dois
dedos de laranjinha num copo e bebeu-os de um trago.
- Arre! Assim também não!
A mulata então aproximou-se dele, por detrás; segurou-lhe a cabeça entre as mãos e beijou-o na
boca, arredando com os lábios a espessura dos bigodes.
Jerônimo voltou-se para a amante, tomou-a pelos quadris e assentou-a em cheio sobre as suas coxas.
- Não te rales, meu bem! disse ela, afagando-lhe os cabelos. Já passou!
- Tens razão! besta fui eu em deixá-la pôr pé cá dentro de casa!
E abraçaram-se com ímpeto, como se o breve tempo roubado pelas visitas fosse uma interrupção nos
seus amores.
Lá fora, junto ao portão da estalagem, Piedade, com o rosto escondido no ombro da filha, esperava
que as lágrimas cedessem um pouco, para as duas seguirem o seu destino de enxotadas.
Continua página 113...
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Leia também:
O Cortiço - XIX: o seu destino de enxotadas
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Aluísio Azevedo (Aluísio Tancredo Gonçalves de Azevedo), caricaturista, jornalista, romancista e diplomata, nasceu em São Luís, MA, em 14 de abril de 1857, e faleceu em Buenos Aires, Argentina, em 21 de janeiro de 1913.
Era filho do vice-cônsul português David Gonçalves de Azevedo e de D. Emília Amália Pinto de Magalhães e irmão mais moço do comediógrafo Artur Azevedo. Sua mãe havia casado, aos 17 anos, com um comerciante português. O temperamento brutal do marido determinou o fim do casamento. Emília refugiou-se em casa de amigos, até conhecer o vice-cônsul de Portugal, o jovem viúvo David. Os dois passaram a viver juntos, sem contraírem segundas núpcias, o que à época foi considerado um escândalo na sociedade maranhense.
Da infância à adolescência, Aluísio estudou em São Luís e trabalhou como caixeiro e guarda-livros. Desde cedo revelou grande interesse pelo desenho e pela pintura, o que certamente o auxiliou na aquisição da técnica que empregará mais tarde ao caracterizar os personagens de seus romances. Em 1876, embarcou para o Rio de Janeiro, onde já se encontrava o irmão mais velho, Artur. Matriculou-se na Imperial Academia de Belas Artes, hoje Escola Nacional de Belas Artes. Para manter-se fazia caricaturas para os jornais da época, como O Fígaro, O Mequetrefe, Zig-Zag e A Semana Ilustrada. A partir desses “bonecos”, que conservava sobre a mesa de trabalho, escrevia cenas de romances.
A morte do pai, em 1878, obrigou-o a voltar a São Luís, para tomar conta da família. Ali começou a carreira de escritor, com a publicação, em 1879, do romance Uma lágrima de mulher, típico dramalhão romântico. Ajuda a lançar e colabora com o jornal anticlerical O Pensador, que defendia a abolição da escravatura, enquanto os padres mostravam-se contrários a ela. Em 1881, Aluísio lança O mulato, romance que causou escândalo entre a sociedade maranhense pela crua linguagem naturalista e pelo assunto tratado: o preconceito racial. O romance teve grande sucesso, foi bem recebido na Corte como exemplo de Naturalismo, e Aluísio pôde retornar para o Rio de Janeiro, embarcando em 7 de setembro de 1881, decidido a ganhar a vida como escritor.
Quase todos os jornais da época tinham folhetins, e foi num deles que Aluísio passou a publicar seus romances. A princípio, eram obras menores, escritas apenas para garantir a sua sobrevivência. Depois, surgiu nova preocupação no universo de Aluísio: a observação e análise dos agrupamentos humanos, a degradação das casas de pensão e sua exploração pelo imigrante, principalmente o português. Dessa preocupação resultariam duas de suas melhores obras: Casa de pensão (1884) e O cortiço (1890). De 1882 a 1895 escreveu sem interrupção romances, contos e crônicas, além de peças de teatro em colaboração com Artur de Azevedo e Emílio Rouède.
Em 1895 ingressou na diplomacia, momento em que praticamente cessa sua atividade literária. O primeiro posto foi em Vigo, na Espanha. Depois serviu no Japão, na Argentina, na Inglaterra e na Itália. Passara a viver em companhia de D. Pastora Luquez, de nacionalidade argentina, junto com os dois filhos, Pastor e Zulema, por ele adotados. Em 1910, foi nomeado cônsul de 1ª. classe, sendo removido para Assunção. Buenos Aires foi seu último posto. Ali faleceu, aos 56 anos. Foi enterrado naquela cidade. Seis anos depois, por uma iniciativa de Coelho Neto, a urna funerária de Aluísio Azevedo chegou a São Luís, onde o escritor foi sepultado.
Aluísio Azevedo (Aluísio Tancredo Gonçalves de Azevedo), caricaturista, jornalista, romancista e diplomata, nasceu em São Luís, MA, em 14 de abril de 1857, e faleceu em Buenos Aires, Argentina, em 21 de janeiro de 1913.
Era filho do vice-cônsul português David Gonçalves de Azevedo e de D. Emília Amália Pinto de Magalhães e irmão mais moço do comediógrafo Artur Azevedo. Sua mãe havia casado, aos 17 anos, com um comerciante português. O temperamento brutal do marido determinou o fim do casamento. Emília refugiou-se em casa de amigos, até conhecer o vice-cônsul de Portugal, o jovem viúvo David. Os dois passaram a viver juntos, sem contraírem segundas núpcias, o que à época foi considerado um escândalo na sociedade maranhense.
Da infância à adolescência, Aluísio estudou em São Luís e trabalhou como caixeiro e guarda-livros. Desde cedo revelou grande interesse pelo desenho e pela pintura, o que certamente o auxiliou na aquisição da técnica que empregará mais tarde ao caracterizar os personagens de seus romances. Em 1876, embarcou para o Rio de Janeiro, onde já se encontrava o irmão mais velho, Artur. Matriculou-se na Imperial Academia de Belas Artes, hoje Escola Nacional de Belas Artes. Para manter-se fazia caricaturas para os jornais da época, como O Fígaro, O Mequetrefe, Zig-Zag e A Semana Ilustrada. A partir desses “bonecos”, que conservava sobre a mesa de trabalho, escrevia cenas de romances.
A morte do pai, em 1878, obrigou-o a voltar a São Luís, para tomar conta da família. Ali começou a carreira de escritor, com a publicação, em 1879, do romance Uma lágrima de mulher, típico dramalhão romântico. Ajuda a lançar e colabora com o jornal anticlerical O Pensador, que defendia a abolição da escravatura, enquanto os padres mostravam-se contrários a ela. Em 1881, Aluísio lança O mulato, romance que causou escândalo entre a sociedade maranhense pela crua linguagem naturalista e pelo assunto tratado: o preconceito racial. O romance teve grande sucesso, foi bem recebido na Corte como exemplo de Naturalismo, e Aluísio pôde retornar para o Rio de Janeiro, embarcando em 7 de setembro de 1881, decidido a ganhar a vida como escritor.
Quase todos os jornais da época tinham folhetins, e foi num deles que Aluísio passou a publicar seus romances. A princípio, eram obras menores, escritas apenas para garantir a sua sobrevivência. Depois, surgiu nova preocupação no universo de Aluísio: a observação e análise dos agrupamentos humanos, a degradação das casas de pensão e sua exploração pelo imigrante, principalmente o português. Dessa preocupação resultariam duas de suas melhores obras: Casa de pensão (1884) e O cortiço (1890). De 1882 a 1895 escreveu sem interrupção romances, contos e crônicas, além de peças de teatro em colaboração com Artur de Azevedo e Emílio Rouède.
Em 1895 ingressou na diplomacia, momento em que praticamente cessa sua atividade literária. O primeiro posto foi em Vigo, na Espanha. Depois serviu no Japão, na Argentina, na Inglaterra e na Itália. Passara a viver em companhia de D. Pastora Luquez, de nacionalidade argentina, junto com os dois filhos, Pastor e Zulema, por ele adotados. Em 1910, foi nomeado cônsul de 1ª. classe, sendo removido para Assunção. Buenos Aires foi seu último posto. Ali faleceu, aos 56 anos. Foi enterrado naquela cidade. Seis anos depois, por uma iniciativa de Coelho Neto, a urna funerária de Aluísio Azevedo chegou a São Luís, onde o escritor foi sepultado.
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