em busca do tempo perdido
volume I
No Caminho de Swann
ao senhor gaston calmette
como um testemunho de profundo e afetuoso reconhecimento
— marcel proust
um amor de swann
III(d)
Tendo-se dispersado os fiéis, sentiu o doutor que a ocasião era propícia; enquanto a sra. Verdurin dizia uma última frase sobre a sonata de Vinteuil, ele, como um nadador principiante que se atira à água para aprender, mas escolhe um momento em que não haja muita gente a vê-lo, exclamou com brusca resolução:
ao senhor gaston calmette
como um testemunho de profundo e afetuoso reconhecimento
— marcel proust
um amor de swann
Tendo-se dispersado os fiéis, sentiu o doutor que a ocasião era propícia; enquanto a sra. Verdurin dizia uma última frase sobre a sonata de Vinteuil, ele, como um nadador principiante que se atira à água para aprender, mas escolhe um momento em que não haja muita gente a vê-lo, exclamou com brusca resolução:
— Então é o que se chama um músico di primo cartello!
Swann apenas se inteirou de que o recente aparecimento da sonata de Vinteuil
causava grande impressão numa escola de tendências muito avançadas, mas era
completamente desconhecida do grande público.
— É verdade que conheço alguém que se chama Vinteuil — disse Swann, pensando
no professor de piano das irmãs de minha avó.
— Talvez seja ele — exclamou a sra. Verdurin.
— Oh!, não — respondeu Swann, a rir. — Se o tivesse visto dois minutos, a
senhora não formularia a questão.
— Então formular a questão é resolvê-la? — disse o doutor.
— Mas poderia ser um parente — tornou Swann —, o que seria triste, mas enfim
um homem de gênio bem pode ser primo de um velho animal. Se assim fosse, confesso
que não fugiria a nenhum suplício para que o velho animal me apresentasse ao autor da
sonata: antes de tudo, o suplício de frequentar o velho animal, que deve ser atroz.[1]
O pintor sabia que Vinteuil estava naquele momento muito doente e que o dr.
Potain receava não poder salvá-lo.
— Como! — exclamou a sra. Verdurin. — Ainda há gente que manda chamar
Potain?[2]
— Ah!, senhora Verdurin — disse Cottard, num tom de afetada discrição —,
esquece-se de que fala de um de meus confrades, de um de meus mestres, deveria eu
dizer.
O pintor ouvira dizer que Vinteuil estava ameaçado de alienação mental. E
acrescentava que a gente o podia perceber em certas passagens da sua sonata. A Swann
não pareceu absurda a observação, mas perturbou-o muito; pois, como uma obra de
música pura não contém nenhuma dessas relações lógicas cuja alteração na linguagem
denuncia a loucura, a loucura reconhecida numa sonata lhe parecia algo de tão misterioso
como a loucura de uma cachorra, a loucura de um cavalo, que no entanto se observam
realmente.[3]
— Não me venha com os seus mestres! O senhor sabe dez vezes mais do que ele —
respondeu a sra. Verdurin ao dr. Cottard, no tom de uma pessoa que tem a coragem das
suas opiniões e enfrenta bravamente os que lhe são contrários.
— O senhor ao menos não mata os seus doentes!
— Mas, minha senhora, ele é da Academia — replicou o doutor com ar irônico. —
Se um doente prefere morrer por mão de um dos príncipes da ciência… É muito mais
chique poder dizer: “É Potain quem me está tratando”.
— Ah, é mais chique? — disse a sra. Verdurin. — Com que então agora há
chiquismo nas doenças? Eu não sabia… Como o senhor é divertido! — exclamou de
súbito, mergulhando o rosto nas mãos. — E eu tão tola que estava a discutir seriamente,
sem notar que engolira a pílula.
Quanto ao sr. Verdurin, achando um tanto cansativo pôr-se a rir por tão pouco,
limitou-se a tirar uma baforada do cachimbo, pensando com tristeza que jamais poderia
igualar-se à mulher no terreno da amabilidade.
— Sabe que o seu amigo nos agradou muito? — disse a sra. Verdurin a Odette no
momento em que esta se despedia. — É simples, encantador; se você sempre tiver de
nos apresentar amigos como esse, pode trazê-los à vontade.
O sr. Verdurin observou que no entanto Swann não havia apreciado a tia do
pianista.
— O homem sentiu-se um pouco desambientado — respondeu a sra. Verdurin. —
Não hás de querer que ele já tenha o tom da casa, como Cottard, que faz parte de nosso
clã há vários anos. A primeira vez não conta, é para pegar a embocadura. Odette,
combinamos com ele um encontro amanhã, no Châtelet.[4] E se você fosse buscá-lo
em casa?
— Não, ele não quer.
— Bem!, como queira… Contanto que ele não vá desertar no último momento!
Com grande surpresa da sra. Verdurin, Swann jamais desertou. Ia encontrá-los em
qualquer parte, às vezes nos restaurantes de arrabalde, ainda pouco frequentados, pois
não era época, e mais seguido no teatro, de que a sra. Verdurin gostava muito; e como
um dia dissera diante dele que, para os espetáculos de estreia, de gala, lhes seria muito
útil um passe livre para o seu carro e que muito lhes aborrecera não o terem no dia do
enterro de Gambetta,[5] Swann, que nunca falava das suas relações brilhantes, mas
apenas das mal cotadas, que julgaria pouco delicado ocultar e em cujo número adquirira
o hábito, no bairro de Saint-Germain, de incluir as relações com o mundo oficial,
respondeu:
— Vou tratar disso, prometo, tê-lo-ão a tempo para a reprise dos Danichef ;[6]
precisamente amanhã almoço com o chefe de polícia no palácio dos Campos Elísios.
— Como? Nos Campos Elísios?! — bradou o dr. Cottard.
— Sim, na residência do senhor Grévy[7] — respondeu Swann, um pouco
embaraçado com o efeito que sua frase causara.
E o pintor disse ao médico, à guisa de gracejo:
— Isso lhe dá muito seguido?
Geralmente, uma vez dadas as explicações, Cottard dizia: “Ah!, bem, bem, está
certo”, e não mais dava mostras de emoção. Mas, desta vez, as últimas palavras de
Swann, em vez de lhe trazerem o apaziguamento habitual, levaram ao cúmulo o seu
espanto de que um homem com quem ele estava jantando, que não tinha nem funções
oficiais nem distinções de nenhuma espécie, privasse com o chefe do Estado.
— Como, o senhor Grévy? Conhece o senhor Grévy? — disse ele a Swann com o
ar estúpido e incrédulo de um guarda municipal a quem um desconhecido pede para
falar com o presidente da República e que, compreendendo por essas palavras “o que
tem em mãos”, assegura ao pobre louco que será imediatamente recebido e o encaminha
à enfermaria especial da Detenção.
— Eu o conheço um pouco, temos amigos em comum (não ousou dizer que se
tratava do príncipe de Gales); de resto, ele convida com muita facilidade e asseguro-lhe
que esses almoços nada têm de divertido; são muito simples aliás, nunca há mais de oito
à mesa — respondeu Swann, que procurava atenuar o que as relações com o presidente
da República pudessem apresentar de demasiado ofuscante para o seu interlocutor.
E logo Cottard, baseando-se nas palavras de Swann, adotou a opinião a respeito dos
convites do sr. Grévy, de que eram coisa muito pouco procurada e que andava por aí
aos pontapés. Desde então, não mais se espantou de que Swann, bem como qualquer
outro, frequentasse os Campos Elísios, e até o lamentava um pouco por ir a almoços
que o próprio convidado confessava serem aborrecidos.
— Bem, bem, está certo — disse ele no tom de um guarda aduaneiro, suspeitoso
ainda há pouco, mas que, depois de ouvir as explicações, dá o seu visto e deixa-nos
passar sem abrir as nossas malas.
— Ah! Bem creio que não devam ser divertidos esses almoços, e o senhor tem
muita coragem em comparecer — disse a sra. Verdurin, a quem o presidente da
República se afigurava um “maçante” particularmente temível porque dispunha de
meios de sedução e de coação que, empregados em relação aos fiéis, seriam capazes de
fazê-los desertar. — Parece que ele é surdo como uma porta e que come com os dedos.
— Com efeito, o senhor não deve divertir-se muito por lá — disse o doutor, com
uma sombra de comiseração; e, lembrando-se do número de oito convivas: — São
almoços íntimos, não? — indagou vivamente, mais por zelo de linguista do que por
curiosidade de basbaque.
Mas o prestígio que tinha a seus olhos o presidente da República acabou triunfando
da humildade de Swann e da malemolência da sra. Verdurin, e a cada jantar Cottard
perguntava com interesse: “Veremos esta noite o senhor Swann? Ele tem relações
pessoais com o senhor Grévy. É mesmo o que se chama um gentleman, não?”. Chegou até
a oferecer-lhe um convite para a Exposição Odontológica.
Quanto ao sr. Verdurin, notou o mau efeito que causara à mulher aquela descoberta
de que Swann tinha amizades poderosas a que jamais se referira.
Quando não se havia arranjado um divertimento fora, era em casa dos Verdurin que
Swann encontrava o pequeno grupo, mas só comparecia à noite e quase nunca aceitava
convite para jantar, apesar das instâncias de Odette.
— Eu poderia até jantar sozinha com você, se assim preferisse — dizia ela.
— E a senhora Verdurin?
— Oh!, seria muito simples. Bastava dizer-lhe que meu vestido não ficou pronto ou
que meu carro chegou atrasado. Sempre se dá um jeito.
— É muito gentil.
Mas Swann considerava que, se mostrasse a Odette (só consentindo em vê-la após o
jantar) que havia prazeres que preferia ao de estar com ela, tão cedo não se saciaria o
gosto que ela lhe dedicava. E, por outro lado, como preferia infinitamente à beleza de
Odette a de uma pequena operária fresca e rechonchuda como uma rosa, de quem se
enamorara, agradava-lhe mais passar o começo da noite com ela, estando certo de
encontrar-se em seguida com Odette. A pequena operária o esperava perto de sua casa,
numa esquina que Rémi, o cocheiro, já conhecia; sentava ao lado de Swann e ficava em
seus braços até o momento em que o carro parava diante da casa dos Verdurin. Ao
entrar, enquanto a sra. Verdurin, mostrando a Swann as rosas que este lhe enviara de
manhã, dizia-se zangada e lhe indicava um lugar perto de Odette, o pianista tocava para
os dois a pequena frase de Vinteuil, que era como o hino nacional do seu amor.
Começava tenuta dos trêmulos de violino, que era só o que se ouvia durante alguns
compassos, ocupando todo o primeiro plano; depois, de súbito, pareciam afastar-se e,
como nessas telas de Pieter de Hooch, cuja perspectiva é aprofundada pelo quadro
estreito de uma porta entreaberta ao longe, numa outra cor, no aveludado de uma luz
interposta, a pequena frase aparecia, dançante, pastoral, intercalada, episódica,
pertencente a um outro mundo. Passava em ondulações simples e imortais, distribuindo
aqui e ali os dons de sua graça, com o mesmo inefável sorriso; mas Swann julgava
distinguir-lhe agora um certo desencanto. Ela parecia conhecer a inconsistência dessa
felicidade cujo caminho entremostrava. Na sua graça leve havia algo de consumado,
como o desinteresse que se segue ao pesar. Mas pouco lhe importava, considerava-a
menos em si mesma — no que podia significar para um músico que ignorava a
existência dele e de Odette quando a compusera e para todos aqueles que a ouvissem nos
séculos vindouros — do que como um penhor e lembrança de seu amor, que até ao
pianista e aos Verdurin fazia pensar ao mesmo tempo em Odette e nele; e lhes servia de
traço de união; tanto assim que, cedendo a um capricho de Odette, renunciara a pedir a
um artista que lhe tocasse a sonata inteira, da qual continuou conhecendo apenas aquela
passagem. “Que necessidade tem do resto?”, dissera-lhe Odette. “Este é o nosso trecho.”
E sofrendo ao pensar, quando a frase passava tão próxima e ao mesmo tempo no
infinito, que, enquanto se dirigia a eles, não os conhecia, Swann quase lamentava que ela
tivesse um significado, uma beleza intrínseca e fixa, estranha aos dois, como, na joia que
damos ou mesmo na carta que recebemos da amada, censuramos à água da gema e às
palavras da linguagem não serem constituídas unicamente da essência de um amor fugaz
e de uma determinada criatura.
Sucedia-lhe às vezes demorar-se tanto com a jovem operária antes de ir aos
Verdurin que, apenas executada ao piano a pequena frase, apercebia-se de que estava
quase na hora de Odette recolher-se. Levava-a até a porta de seu apartamento, na rua La
Pérouse, atrás do Arco do Triunfo.[8] E era talvez por causa disso, para não lhe pedir
todos os favores, que Swann sacrificava o prazer (para ele menos necessário) de a ver
mais cedo, de chegar com Odette em casa dos Verdurin, ao exercício daquele direito que
ela lhe reconhecia, de partirem juntos, e ao qual ele dava mais valor, porque, graças a
isso, tinha a impressão de que ninguém a via, nem se metia entre os dois, nem a impedia
de estar ainda com ele, depois que a deixava.
Assim costumava ela regressar no carro de Swann; uma noite, depois de apear e
quando ele se despedia, Odette colheu precipitadamente no jardinzinho fronteiro à casa
um último crisântemo e lho deu antes que ele partisse. Swann manteve-o apertado contra
os lábios durante a volta, e quando, passados alguns dias, a flor murchou, guardou-a
preciosamente na secretária.
Mas nunca entrava em casa dela. Duas vezes apenas, à tarde, fora participar da
operação, capital para Odette, de “tomar chá”. O isolamento e o vazio daquelas curtas
ruas (constituídas quase todas de pequenas casas contíguas, cuja monotonia era de súbito
interrompida por algum sinistro pardieiro, testemunho histórico e sórdido remanescente
dos tempos em que aqueles quarteirões ainda eram mal-afamados), a neve que quedava
no jardim e nas árvores, o desordenado da estação, a proximidade da natureza davam
um não sei quê de mais misterioso ao calor e às flores que ele encontrara ao entrar.
Deixando à esquerda, no térreo de nível superior ao da calçada, o quarto de dormir,
cujos fundos davam para uma ruazinha paralela, uma escada reta subia para o salão e
para o pequeno salão, entre paredes pintadas de cor sombria e de onde pendiam panos
orientais, fios de rosários turcos e uma grande lanterna japonesa suspensa a um cordel
de seda, mas que, para não privar os visitantes dos últimos confortos da civilização, era
iluminada a gás. Eram as duas peças precedidas de um estreito vestíbulo, cuja parede,
quadriculada com uma grade de jardim, mas pintada a ouro, se apresentava marginada
em todo o seu compartimento por uma caixa retangular onde floria, como numa estufa,
uma fila desses grandes crisântemos ainda raros naquela época, mas ainda muito longe
dos que os horticultores conseguiram obter mais tarde. Irritava a Swann a moda dos
crisântemos que lavrava desde o ano passado, mas desta vez sentira prazer ao ver a
penumbra da peça zebrada de rosa, laranja e branco pelos raios olorosos daqueles astros
efêmeros que se acendem nos dias cinzentos. Odette recebera-o de chambre cor-de-rosa,
com o colo e os braços descobertos. Fizera-o sentar perto dela num dos inúmeros e
misteriosos retiros arranjados nos desvãos da sala, protegidos por imensas palmas em
vasos chineses, ou por biombos a que estavam pendurados retratos, laços de fita e
leques. “Você assim não está a gosto”, disse-lhe ela, “espere que já vou acomodá-lo”, e,
com o risinho vaidoso que teria por alguma invenção particular, instalara atrás da cabeça
de Swann e sob seus pés almofadões de seda do Japão, que ela amassava como se fosse
pródiga daquelas riquezas e descuidadosa do seu valor. Mas quando o criado foi
trazendo sucessivamente as numerosas lâmpadas que, encerradas quase todas em globos
chineses, ardiam isoladas ou aos pares, todas em móveis diferentes, como em altares e
que, no crepúsculo já quase noturno daquele fim de tarde hibernal, faziam reviver um
outro poente mais durável, mais róseo e mais humano — talvez fazendo parar na rua
algum enamorado, a sonhar com o mistério daquela presença que ao mesmo tempo
delatava e ocultava as vidraças acesas —, ela vigiava severamente de esguelha o homem,
para ver se ele as colocava no lugar consagrado. Imaginava que, se pusessem uma única
lâmpada em lugar impróprio, ficaria prejudicado o efeito de conjunto do salão e que o
seu retrato, colocado num cavalete oblíquo forrado de pelúcia, não receberia boa luz.
Assim, seguia febrilmente com o olhar os movimentos daquele homem grosseiro e
repreendeu-o asperamente por ter ele passado muito perto de duas jardineiras e que ela
própria se encarregava de limpar por medo que as quebrassem e que foi examinar em
seguida para ver se o criado não lhes causara algum dano. Todos os seus bibelôs
chineses, achava-os Odette de formas “divertidas”, bem como as orquídeas e as catleias,
principalmente, que eram, com os crisântemos, as suas flores prediletas, porque tinham
o grande mérito de não se assemelharem a flores, mas parecerem de seda ou de
cetim.[9] “Esta parece que foi recortada do forro de meu mantô”, disse a Swann,
mostrando-lhe a orquídea, com um quê de estima por aquela flor tão chique, aquela
irmã elegante e imprevista que a natureza lhe dava, tão longe dela na escala dos seres e no
entanto refinada, mais digna que muitas mulheres de que lhe desse um lugar em seu
salão. Mostrando-lhe aqui umas quimeras de línguas de fogo pintadas numa porcelana
ou bordadas numa tela, ali as corolas de um ramo de orquídeas, além um dromedário de
prata esmaltada com olhos incrustados de rubis que vizinhava na lareira com um sapo de
jade, ela ora afetava recear a maldade dos monstros ou zombar do seu grotesco, ora
corar da indecência das flores ou sentir um desejo irresistível de beijar o dromedário e o
sapo, a quem chamava de “queridos”. E essas afetações contrastavam com a sinceridade
de algumas das suas devoções, principalmente a que dedicava a Nossa Senhora de
Laghet, que a curara em Nice de uma doença mortal;[10] trazia sempre consigo a sua
imagem numa medalhinha de ouro à qual atribuía um poder sem limites. Odette
preparou para Swann o “seu” chá e indagou: “Limão ou creme?”, e como ele
respondesse “creme”, disse-lhe a rir: “Uma nuvem, hem!”. E como ele o tivesse achado
bom: “Bem vê você que eu conheço os seus gostos”. Aquele chá, com efeito, parecera a
Swann, como a ela, algo de muito precioso; e tal necessidade tem o amor de encontrar
uma justificação, uma garantia de durabilidade, em prazeres que, sem ele, não o seriam, e
que com ele acabam, que, depois que a deixou às sete horas para ir preparar-se, durante
todo o trajeto do cupê, não podendo conter a alegria que lhe proporcionara aquela tarde,
ia Swann repetindo consigo: “Que agradável seria ter assim uma criaturinha em cuja casa
se pudesse encontrar essa coisa tão rara, um bom chá”. Uma hora depois recebeu um
bilhete de Odette, e logo reconheceu aquela caligrafia graúda em que uma afetação de
rigidez britânica impunha aparências de disciplina a caracteres informes que talvez
significassem, para olhos menos parciais, desordem de pensamento, insuficiência de
educação, falta de franqueza e de vontade. Swann esquecera a cigarreira em casa de
Odette. “Foi pena você não ter esquecido também o seu coração, pois isso eu não
devolveria.”
continua na página 151...
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Leia também:
Volume 1
No Caminho de Swann (III - um amor de swann, Tendo-se dispersado os fiéis - d)
Volume 2
Volume 3
Volume 4
Volume 5
Volume 6
Volume 7
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[1] Swann se recusa a vincular a grandeza da obra à mediocridade da pessoa que
conhecera. Proust defendia ardentemente essa separação, e o projeto de escrita que deu
origem ao livro criticava justamente aquele que pretendia ler a obra pelo autor, o crítico
Sainte-Beuve. [n. e.]
[2] A pergunta indignada remete à “condição indispensável” para tomar parte na
“igrejinha” dos Verdurin, apresentada no primeiro parágrafo deste capítulo. Pierre
Potain, diferentemente do jovem dr. Cottard, já era médico e membro da Academia de
Medicina desde 1882. [n. e.]
[3] Swann, na verdade, teme entrar em contato com o conteúdo de dor que a sonata
contém. Por isso, preferirá associá-la à doçura do início de seu amor por Odette. [n. e.]
[4] Teatro enorme, com 3 mil lugares, o Châtelet apresentava concertos aos
domingos. Dentre as peças de grande sucesso que ali foram encenadas conta-se também
Cendrillon, citada mais adiante pela sra. Cottard. [n. e.]
[5] Ocorrido no dia 6 de janeiro de 1883. [n. e.]
[6] Peça de grande sucesso, escrita por Alexandre Dumas Filho e Pierre de CorvinKroukowski. A referência à reprise da peça e ao enterro de Gambetta situam, embora de
maneira confusa, esse trecho do romance entre 1883 e 1884. [n. e.]
[7] Jules Grévy, presidente da França entre 1879 e 1885. Reeleito, renunciaria em
1887. [n. e.]
[8] Situada nos novos bairros residenciais, loteados por Haussmann, a residência de
Odette se opõe ao cais de Orléans, que, situado na ilha Saint-Louis, não era ainda um
lugar “elegante”. [n. e.]
[9] As “catleias” são orquídeas obtidas no final do século XIX pelo inglês William
Cattley. À mesma época, expande-se a moda dos crisântemos na França. [n. e.]
[10] Laghet é lugar de peregrinação perto de Nice, cuja referência serve para aludir ao
passado um tanto misterioso de Odette nessa última cidade. [n. e.]
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