sábado, 21 de dezembro de 2024

Gabriel G Márquez - Cem Anos de Solidão (13.2) - A grande greve estourou

Cem Anos de SOLIDÃO

Gabriel Garcia Márquez


(13.2)
para jomí garcía ascot
e maría luisa elío


     A grande greve estourou. Os cultivos ficaram pelo meio, a fruta apodreceu no pé e os trens de cento e vinte vagões ficaram parados nos desvios. Os operários ociosos atulhavam as aldeias. A Rua dos Turcos reverberou num sábado de muitos dias e no salão de bilhar do Hotel de Jacob foi preciso organizar turnos de vinte e quatro horas. Lá estava José Arcadio Segundo, no dia em que se anunciou que o exército tinha sido encarregado de restabelecer a ordem pública. Embora não fosse homem de presságios, a notícia foi para ele como um anúncio de morte que tinha esperado desde a manhã distante em que o Coronel Gerineldo Márquez lhe permitira ver um fuzilamento. Entretanto, o mau agouro não alterou a sua gravidade. Fez a jogada que tinha prevista e não errou a carambola. Pouco depois, as descargas de bumbo, os latidos do clarim, os gritos e o tropel do povo lhe indicaram que não só a partida de bilhar, mas também a calada e solitária partida que jogava consigo mesmo desde a madrugada da execução, tinham, por fim, terminado. Então, chegou até a rua e viu. Eram três regimentos cuja marcha pautada por tambor de galés fazia a terra trepidar. O seu resfolegar de dragão multicéfalo impregnou de um vapor fedorento a claridade do meio-dia. Eram pequenos, maciços, brutos. Suavam com suor de cavalo e tinham um cheiro de carne viva macerada pelo sol e a impavidez taciturna e impenetrável dos homens do páramo. Embora demorassem mais de uma hora a passar, davam a impressão de ser uns poucos pelotões andando em círculo, porque todos eram idênticos, filhos da mesma mãe, e todos suportavam com igual imbecilidade o peso das mochilas e dos cantis, e a vergonha dos fuzis com as baionetas caladas, e a ferida da obediência cega e o sentido da honra. Úrsula os ouviu passar do seu leito de trevas e levantou a mão com os dedos cruzados. Santa Sofía de la Piedad existiu por um instante, inclinada sobre a toalha bordada que acabava de passar a ferro, e pensou em seu filho, José Arcadio Segundo, que viu passar, pela porta do Hotel de Jacob, sem se perturbar, os últimos soldados. A lei marcial facultava ao exército assumir funções de árbitro da controvérsia, mas não se fez nenhuma tentativa de conciliação. Imediatamente após se exibirem em Macondo, os soldados puseram de lado os fuzis, cortaram e embarcaram as bananas e movimentaram os trens. Os trabalhadores, que até então se haviam conformado com esperar, atiraram-se ao mato sem mais armas que os seus facões de trabalho, e começaram a sabotar a sabotagem. Incendiaram fazendas e armazéns, destruíram os trilhos para impedir o trânsito dos trens, que começavam a abrir caminho a fogo de metralhadora, e cortaram os fios do telégrafo e do telefone. Os canais de irrigação tingiram-se de sangue. O Sr. Brown, que estava vivo no galinheiro eletrificado, foi tirado de Macondo com a sua família e as de Outros compatriotas seus, e conduzido para território seguro sob a proteção do exército. A situação ameaçava evoluir para uma guerra civil desigual e sangrenta quando as autoridades fizeram um apelo aos trabalhadores para que se concentrassem em Macondo. O apelo anunciava que o chefe civil e militar da província chegaria na sexta-feira seguinte, disposto a interceder no conflito.
     José Arcadio Segundo estava entre a multidão que se concentrou na estação desde a manhã de sexta-feira. Tinha participado de uma reunião de dirigentes sindicais e tinha sido encarregado, junto com o Coronel Gavilán, de se confundir com a multidão e orientá-la segundo as circunstâncias. Não se sentia bem e moldava uma massa salitrosa no céu da boca desde que notou que o exército tinha colocado ninhos de metralhadoras em volta da praça e que a cidade cercada da companhia bananeira estava protegida por peças de artilharia. Até as doze, esperando um trem que não chegava, mais de três mil pessoas, entre trabalhadores, mulheres e crianças, tinham atulhado o espaço descoberto em frente da estação e se apertavam nas ruas adjacentes, que o exército fechara com filas de metralhadoras. Aquilo parecia, então, mais que uma recepção, uma feira jubilosa. Haviam transferido as barraquinhas de frituras e as tendas de bebidas da Rua dos Turcos e o povo suportava com muito boa vontade a amolação da espera e o sol abrasador. Um pouco antes das três, correu o boato de que o trem oficial não chegaria até o dia seguinte. A multidão cansada exalou um suspiro de desalento. Um tenente do exército subiu em seguida no teto da estação, onde havia quatro ninhos de metralhadoras apontadas contra a multidão, e deu um toque de silêncio. Ao lado de José Arcadio Segundo estava uma mulher descalça, muito gorda, com duas crianças de cerca de quatro e sete anos. Pegou o menor no colo e pediu a José Arcadio, sem reconhecê-lo, que levantasse o outro para que ouvisse melhor o que iam dizer. José Arcadio Segundo acavalou o menino na nuca. Muitos anos depois, esse menino haveria de continuar contando, sem que ninguém acreditasse, que tinha visto o tenente lendo com um megafone de vitrola o decreto Número 4 do Chefe Civil e Militar da província, assinado pelo General Carlos Cortes Vargas e pelo seu secretário, o Major Henrique García Isaza, e em três artigos de oitenta palavras classificava os grevistas de quadrilha de malfeitores e facultava ao exército o direito de matá-los a bala. Lido o decreto, no meio de uma ensurdecedora vaia protesto, um capitão substituiu o tenente no teto da estação e, com o megafone de vitrola, fez sinal de que queria falar. A multidão voltou a fazer silêncio.

— Senhoras e senhores disse o capitão com uma baixa, lenta, um pouco cansada — têm cinco minutos para se retirar.

     A vaia e os gritos repetidos afogaram o toque de que anunciou o princípio do prazo. Ninguém se mexeu.

— Já passaram os cinco minutos — disse o capitão mesmo tom. — Mais um minuto e atiramos.

     José Arcadio Segundo, suando gelo, desceu o menino ombros e o entregou à mulher. “Esses cornos são capazes disparar”, murmurou ela. José Arcadio Segundo não teve tempo de falar, porque no mesmo instante reconheceu a voz rouca do Coronel Gavilán fazendo eco com um grito às palavras da mulher. Embriagado pela tensão, pela maravilhosa profundidade do silêncio e, além disso, convencido de que nada faria se mover aquela multidão pasmada pela fascinação da morte, José Arcadio Segundo se ergueu acima das cabeças que tinha pela frente, e, pela primeira vez em sua vida, levantou a voz. 

— Cornos! — gritou.— Podem levar de presente o minuto que falta. Ao fim do seu grito aconteceu uma coisa que não lhe produziu espanto, mas uma espécie de alucinação. O capitão deu a ordem de fogo e quatorze ninhos de metralhadoras responderam imediatamente. Mas tudo parecia uma farsa. Era como se as metralhadoras estivessem carregadas com fogos artifício, porque se escutava o seu resfolegante matraquear se viam as suas cusparadas incandescentes, mas não se percebia a mais leve reação, nem uma voz, nem sequer um suspiro entre a multidão compacta que parecia petrificada por uma invulnerabilidade instantânea. De repente, de um lado da estação, um grito de morte quebrou o encantamento: “Aaaai, minha mãe.” Uma força sísmica, uma respiração vulcânica, um rugido de cataclismo arrebentaram no centro da multidão com uma descomunal potência expansiva. José Arcadio Segundo mal teve tempo de levantar o menino, enquanto a mãe e o outro eram absorvidos pela multidão centrifugada pelo pânico.

     Muitos anos depois, o menino haveria de contar ainda, apesar de os vizinhos continuarem a encará-lo como um velho maluco, que José Arcadio Segundo o erguera por cima da sua cabeça e se deixara arrastar, quase no ar, como que flutuando no terror da multidão, para uma rua adjacente. A posição privilegiada do menino lhe permitiu ver que nesse momento a massa ululante começava a chegar na esquina e a fila de metralhadoras abriu fogo. Várias vozes gritaram ao mesmo tempo: 

— Atirem-se no chão! Atirem-se no chão! 

     Já os das primeiras linhas o tinham feito, varridos pelas rajadas da metralha. Os sobreviventes, em vez de se atirarem no chão, tentaram voltar à praça e o pânico deu uma rabanada de dragão, e os mandou numa onda compacta contra a outra onda compacta que se movimentava em sentido contrário, despedida pela outra rabanada de dragão da rua oposta, onde também as metralhadoras disparavam sem trégua. Estavam encurralados, girando num torvelinho gigantesco que pouco a pouco se reduzia ao seu epicentro, porque os seus bordos iam sendo sistematicamente recortados em círculo, como descascando uma cebola, pela tesoura insaciável e metódica da metralha. O menino viu uma mulher ajoelhada, com os braços em cruz, num espaço limpo, misteriosamente vedado aos disparos. Ali o colocou José Arcadio Segundo, no instante de cair com a cara banhada em sangue, antes que o tropel colossal arrasasse com o espaço vazio, com a mulher ajoelhada, com a luz do alto céu de seca e com o puto mundo onde Úrsula lguarán tinha vendido tantos animaizinhos de caramelo. Quando José Arcadio Segundo acordou, estava de peito para cima nas trevas. Percebeu que ia num trem interminável e silencioso, e que tinha o cabelo empastado pelo sangue seco e que lhe doíam todos os ossos. Sentiu um sono insuportável. Disposto a dormir muitas horas, a salvo do terror e do horror, acomodou-se do lado que lhe doía menos e só então descobriu que estava deitado sobre os mortos. Não havia um espaço livre no vagão, exceto o corredor central. Deviam ter passado várias horas do massacre, porque os cadáveres tinham a mesma temperatura do gesso no outono e a sua mesma consistência de espuma petrificada, e os que os tinham colocado no vagão tiveram tempo de arrumá-los na ordem e no sentido em que se transportavam os cachos de banana. Tentando fugir do pesadelo, José Arcadio Segundo arrastou-se de um vagão a outro, na direção em que avançava o trem, e, nos relâmpagos que surgiram por entre as esquadrias de madeira ao passar pelos povoados adormecidos, via os mortos homens, os mortos mulheres, os mortos crianças, que iam talvez ser atirados ao mar como as bananas refugadas. Só reconheceu uma mulher que vendia refrescos na praça e o Coronel Gavilán, que ainda trazia enrolado na mão o cinturão com a fivela. de prata mexicana com que tentara abrir caminho através do pânico. Quando chegou ao primeiro vagão deu um salto para a escuridão e ficou estendido na vala da estrada até que o trem acabou de passar. Era o mais comprido que já tinha visto, com quase duzentos vagões de carga e uma locomotiva em cada extremo e uma terceira no centro. Não tinha nenhuma luz, nem sequer os faróis vermelhos e verdes de disposição, e deslizava numa velocidade noturna e sigilosa. Em cima dos vagões se viam os vultos escuros dos soldados com as metralhadoras preparadas. 
     Depois da meia-noite caiu um aguaceiro torrencial. Jose Arcadio Segundo ignorava onde tinha saltado mas sabia que caminhando em sentido contrário ao do trem chegaria a Macondo. Ao fim de mais de três horas de marcha, ensopado até os ossos, com uma dor de cabeça terrível, divisou as primeiras casas à luz do amanhecer. Atraído pelo cheiro do café, entrou numa cozinha onde uma mulher com uma criança no colo estava inclinada sobre o fogão. 

— Bom dia — disse exausto. — Sou José Arcadio Segundo Buendía. Pronunciou o nome completo, letra por letra, para se convencer de que estava vivo. Fez bem porque a mulher tinha pensado que era uma assombração, ao ver na porta a figura esquálida, sombria, com a cabeça e a roupa sujas de sangue e tocada pela solenidade da morte. Conhecia-o. Trouxe uma manta para que se cobrisse enquanto secava a roupa no fogão, esquentou água para que lavasse a ferida, que era apenas um arranhão na pele, e lhe deu uma fralda limpa para que vendasse a cabeça. Em seguida, serviu-lhe uma xícara de café, sem açúcar como lhe haviam dito que tomavam os Buendía, e estendeu a roupa perto do fogo.

     José Arcadio Segundo não falou enquanto não terminou de tomar o café.

— Deviam ser uns três mil — murmurou. 
— O quê? 
— Os mortos — esclareceu ele. — Deviam ser todos os que estavam na estação. A mulher mediu-o com um olhar de pena. “Aqui não houve mortos”, disse.  

     “Desde a época do seu tio, o coronel, que não acontece nada em Macondo.” Em três cozinhas onde se deteve José Arcadio Segundo antes de chegar em casa lhe disseram a mesma coisa: “Não houve mortos.” Passou pela praça da estação e viu as mesas de frituras amontoadas uma em cima da outra e tampouco ali encontrou algum rastro do massacre. As ruas estavam desertas sob a chuva tenaz e as casas fechadas, sem vestígios de vida interior. O único sinal humano era o primeiro toque para a missa. Bateu na porta da casa do Coronel Gavilán. Uma mulher grávida, que tinha visto muitas vezes, fechou-lhe a porta na cara. “Foi-se embora”, disse assustada. “Voltou para a terra dele.” A entrada principal do galinheiro entelado estava vigiada, como sempre, por dois guardas locais que pareciam de pedra sob a chuva, com capas e capacetes de impermeável. Na sua ruazinha marginal, os negros antilhanos cantavam em coro os salmos de sábado. José Arcadio Segundo pulou a cerca do quintal e entrou em casa pela cozinha. Santa Sofía de la Piedad mal levantou a voz. “Que Fernanda não te veja”, disse. “Agora mesmo estava se levantando.” Como se cumprisse um pacto implícito, levou o filho para o quarto dos penicos, arrumou-lhe o arrebentado catre de Melquíades e às duas da tarde, enquanto Fernanda fazia a sesta, passou-lhe pela janela um prato de comida.
     Aureliano Segundo dormira em casa porque a chuva o surpreendera ali e, às três da tarde, ainda continuava esperando que estiasse. Informado em segredo por Santa Sofía de la Piedad, a essa hora visitou o irmão no quarto de Melquíades. Tampouco ele acreditou na versão do massacre nem no pesadelo do trem carregado de mortos que viajava para o mar. Na noite anterior tinham lido uma comunicação nacional extraordinária, para informar que os operários tinham obedecido à ordem de evacuar a estação e se dirigiram para as suas casas em caravanas pacíficas. A comunicação informava também que os dirigentes sindicais, com um elevado espírito patriótico, tinham reduzido as suas reivindicações a dois pontos: reforma dos serviços médicos e construção de latrinas nas vivendas. Informou-se mais tarde que, quando as autoridades militares obtiveram o acordo dos trabalhadores, apressaram-se em comunicá-lo ao Sr. Brown e que este não só tinha aceito as novas condições como também oferecera pagar três dias de festas públicas para celebrar o fim do conflito. Só que quando os militares lhe perguntaram para que data se podia anunciar a assinatura do acordo, ele olhou pela janela do céu listrado de relâmpagos e fez um profundo gesto de incerteza:

— Quando estiar — disse. — Enquanto durar a chuva suspendemos todas as atividades.

Cem Anos de Solidão (13.2) - A grande greve estourou

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