Gabriel Garcia Márquez
(13.2)
para jomí garcía ascot
e maría luisa elío
A grande greve estourou. Os cultivos ficaram pelo meio, a fruta
apodreceu no pé e os trens de cento e vinte vagões ficaram parados nos
desvios. Os operários ociosos atulhavam as aldeias. A Rua dos Turcos
reverberou num sábado de muitos dias e no salão de bilhar do Hotel de
Jacob foi preciso organizar turnos de vinte e quatro horas. Lá estava José
Arcadio Segundo, no dia em que se anunciou que o exército tinha sido
encarregado de restabelecer a ordem pública. Embora não fosse homem de
presságios, a notícia foi para ele como um anúncio de morte que tinha
esperado desde a manhã distante em que o Coronel Gerineldo Márquez lhe
permitira ver um fuzilamento. Entretanto, o mau agouro não alterou a sua
gravidade. Fez a jogada que tinha prevista e não errou a carambola. Pouco
depois, as descargas de bumbo, os latidos do clarim, os gritos e o tropel do
povo lhe indicaram que não só a partida de bilhar, mas também a calada e
solitária partida que jogava consigo mesmo desde a madrugada da execução,
tinham, por fim, terminado. Então, chegou até a rua e viu. Eram três
regimentos cuja marcha pautada por tambor de galés fazia a terra trepidar.
O seu resfolegar de dragão multicéfalo impregnou de um vapor fedorento a
claridade do meio-dia. Eram pequenos, maciços, brutos. Suavam com suor
de cavalo e tinham um cheiro de carne viva macerada pelo sol e a impavidez
taciturna e impenetrável dos homens do páramo. Embora demorassem mais
de uma hora a passar, davam a impressão de ser uns poucos pelotões
andando em círculo, porque todos eram idênticos, filhos da mesma mãe, e
todos suportavam com igual imbecilidade o peso das mochilas e dos cantis, e
a vergonha dos fuzis com as baionetas caladas, e a ferida da obediência cega
e o sentido da honra. Úrsula os ouviu passar do seu leito de trevas e levantou
a mão com os dedos cruzados. Santa Sofía de la Piedad existiu por um
instante, inclinada sobre a toalha bordada que acabava de passar a ferro, e
pensou em seu filho, José Arcadio Segundo, que viu passar, pela porta do
Hotel de Jacob, sem se perturbar, os últimos soldados. A lei marcial facultava
ao exército assumir funções de árbitro da controvérsia, mas não se fez
nenhuma tentativa de conciliação. Imediatamente após se exibirem em
Macondo, os soldados puseram de lado os fuzis, cortaram e embarcaram as
bananas e movimentaram os trens. Os trabalhadores, que até então se
haviam conformado com esperar, atiraram-se ao mato sem mais armas que
os seus facões de trabalho, e começaram a sabotar a sabotagem. Incendiaram
fazendas e armazéns, destruíram os trilhos para impedir o trânsito dos trens,
que começavam a abrir caminho a fogo de metralhadora, e cortaram os fios
do telégrafo e do telefone. Os canais de irrigação tingiram-se de sangue. O
Sr. Brown, que estava vivo no galinheiro eletrificado, foi tirado de Macondo
com a sua família e as de Outros compatriotas seus, e conduzido para
território seguro sob a proteção do exército. A situação ameaçava evoluir para
uma guerra civil desigual e sangrenta quando as autoridades fizeram um
apelo aos trabalhadores para que se concentrassem em Macondo. O apelo
anunciava que o chefe civil e militar da província chegaria na sexta-feira
seguinte, disposto a interceder no conflito.
José Arcadio Segundo estava entre a multidão que se concentrou na
estação desde a manhã de sexta-feira. Tinha participado de uma reunião de
dirigentes sindicais e tinha sido encarregado, junto com o Coronel Gavilán,
de se confundir com a multidão e orientá-la segundo as circunstâncias. Não
se sentia bem e moldava uma massa salitrosa no céu da boca desde que
notou que o exército tinha colocado ninhos de metralhadoras em volta da
praça e que a cidade cercada da companhia bananeira estava protegida por
peças de artilharia. Até as doze, esperando um trem que não chegava, mais
de três mil pessoas, entre trabalhadores, mulheres e crianças, tinham
atulhado o espaço descoberto em frente da estação e se apertavam nas ruas
adjacentes, que o exército fechara com filas de metralhadoras. Aquilo
parecia, então, mais que uma recepção, uma feira jubilosa. Haviam
transferido as barraquinhas de frituras e as tendas de bebidas da Rua dos
Turcos e o povo suportava com muito boa vontade a amolação da espera e o
sol abrasador. Um pouco antes das três, correu o boato de que o trem oficial
não chegaria até o dia seguinte. A multidão cansada exalou um suspiro de
desalento. Um tenente do exército subiu em seguida no teto da estação,
onde havia quatro ninhos de metralhadoras apontadas contra a multidão, e
deu um toque de silêncio. Ao lado de José Arcadio Segundo estava uma
mulher descalça, muito gorda, com duas crianças de cerca de quatro e sete
anos. Pegou o menor no colo e pediu a José Arcadio, sem reconhecê-lo, que
levantasse o outro para que ouvisse melhor o que iam dizer. José Arcadio
Segundo acavalou o menino na nuca. Muitos anos depois, esse menino
haveria de continuar contando, sem que ninguém acreditasse, que tinha
visto o tenente lendo com um megafone de vitrola o decreto Número 4 do
Chefe Civil e Militar da província, assinado pelo General Carlos Cortes Vargas
e pelo seu secretário, o Major Henrique García Isaza, e em três artigos de
oitenta palavras classificava os grevistas de quadrilha de malfeitores e
facultava ao exército o direito de matá-los a bala. Lido o decreto, no meio de
uma ensurdecedora vaia protesto, um capitão substituiu o tenente no teto
da estação e, com o megafone de vitrola, fez sinal de que queria falar. A
multidão voltou a fazer silêncio.
— Senhoras e senhores disse o capitão com uma baixa, lenta, um
pouco cansada — têm cinco minutos para se retirar.
A vaia e os gritos repetidos afogaram o toque de que anunciou o
princípio do prazo. Ninguém se mexeu.
— Já passaram os cinco minutos — disse o capitão mesmo tom. —
Mais um minuto e atiramos.
José Arcadio Segundo, suando gelo, desceu o menino ombros e o
entregou à mulher. “Esses cornos são capazes disparar”, murmurou ela. José
Arcadio Segundo não teve tempo de falar, porque no mesmo instante
reconheceu a voz rouca do Coronel Gavilán fazendo eco com um grito às
palavras da mulher. Embriagado pela tensão, pela maravilhosa
profundidade do silêncio e, além disso, convencido de que nada faria se
mover aquela multidão pasmada pela fascinação da morte, José Arcadio
Segundo se ergueu acima das cabeças que tinha pela frente, e, pela primeira
vez em sua vida, levantou a voz.
— Cornos! — gritou.— Podem levar de presente o minuto que falta.
Ao fim do seu grito aconteceu uma coisa que não lhe produziu espanto, mas
uma espécie de alucinação. O capitão deu a ordem de fogo e quatorze
ninhos de metralhadoras responderam imediatamente. Mas tudo parecia
uma farsa. Era como se as metralhadoras estivessem carregadas com fogos
artifício, porque se escutava o seu resfolegante matraquear se viam as suas
cusparadas incandescentes, mas não se percebia a mais leve reação, nem
uma voz, nem sequer um suspiro entre a multidão compacta que parecia
petrificada por uma invulnerabilidade instantânea. De repente, de um lado
da estação, um grito de morte quebrou o encantamento: “Aaaai, minha
mãe.” Uma força sísmica, uma respiração vulcânica, um rugido de
cataclismo arrebentaram no centro da multidão com uma descomunal
potência expansiva. José Arcadio Segundo mal teve tempo de levantar o
menino, enquanto a mãe e o outro eram absorvidos pela multidão
centrifugada pelo pânico.
Muitos anos depois, o menino haveria de contar ainda, apesar de os
vizinhos continuarem a encará-lo como um velho maluco, que José Arcadio
Segundo o erguera por cima da sua cabeça e se deixara arrastar, quase no ar,
como que flutuando no terror da multidão, para uma rua adjacente. A
posição privilegiada do menino lhe permitiu ver que nesse momento a massa
ululante começava a chegar na esquina e a fila de metralhadoras abriu fogo.
Várias vozes gritaram ao mesmo tempo:
— Atirem-se no chão! Atirem-se no chão!
Já os das primeiras linhas o tinham feito, varridos pelas rajadas da
metralha. Os sobreviventes, em vez de se atirarem no chão, tentaram voltar à
praça e o pânico deu uma rabanada de dragão, e os mandou numa onda
compacta contra a outra onda compacta que se movimentava em sentido
contrário, despedida pela outra rabanada de dragão da rua oposta, onde
também as metralhadoras disparavam sem trégua. Estavam encurralados,
girando num torvelinho gigantesco que pouco a pouco se reduzia ao seu
epicentro, porque os seus bordos iam sendo sistematicamente recortados em
círculo, como descascando uma cebola, pela tesoura insaciável e metódica
da metralha. O menino viu uma mulher ajoelhada, com os braços em cruz,
num espaço limpo, misteriosamente vedado aos disparos. Ali o colocou José
Arcadio Segundo, no instante de cair com a cara banhada em sangue, antes
que o tropel colossal arrasasse com o espaço vazio, com a mulher ajoelhada,
com a luz do alto céu de seca e com o puto mundo onde Úrsula lguarán
tinha vendido tantos animaizinhos de caramelo. Quando José Arcadio
Segundo acordou, estava de peito para cima nas trevas. Percebeu que ia
num trem interminável e silencioso, e que tinha o cabelo empastado pelo
sangue seco e que lhe doíam todos os ossos. Sentiu um sono insuportável.
Disposto a dormir muitas horas, a salvo do terror e do horror, acomodou-se
do lado que lhe doía menos e só então descobriu que estava deitado sobre os
mortos. Não havia um espaço livre no vagão, exceto o corredor central.
Deviam ter passado várias horas do massacre, porque os cadáveres tinham a
mesma temperatura do gesso no outono e a sua mesma consistência de
espuma petrificada, e os que os tinham colocado no vagão tiveram tempo de
arrumá-los na ordem e no sentido em que se transportavam os cachos de
banana. Tentando fugir do pesadelo, José Arcadio Segundo arrastou-se de
um vagão a outro, na direção em que avançava o trem, e, nos relâmpagos
que surgiram por entre as esquadrias de madeira ao passar pelos povoados
adormecidos, via os mortos homens, os mortos mulheres, os mortos crianças,
que iam talvez ser atirados ao mar como as bananas refugadas. Só
reconheceu uma mulher que vendia refrescos na praça e o Coronel Gavilán,
que ainda trazia enrolado na mão o cinturão com a fivela. de prata mexicana
com que tentara abrir caminho através do pânico. Quando chegou ao
primeiro vagão deu um salto para a escuridão e ficou estendido na vala da
estrada até que o trem acabou de passar. Era o mais comprido que já tinha
visto, com quase duzentos vagões de carga e uma locomotiva em cada
extremo e uma terceira no centro. Não tinha nenhuma luz, nem sequer os
faróis vermelhos e verdes de disposição, e deslizava numa velocidade
noturna e sigilosa. Em cima dos vagões se viam os vultos escuros dos soldados
com as metralhadoras preparadas.
Depois da meia-noite caiu um aguaceiro torrencial. Jose Arcadio
Segundo ignorava onde tinha saltado mas sabia que caminhando em sentido
contrário ao do trem chegaria a Macondo. Ao fim de mais de três horas de
marcha, ensopado até os ossos, com uma dor de cabeça terrível, divisou as
primeiras casas à luz do amanhecer. Atraído pelo cheiro do café, entrou
numa cozinha onde uma mulher com uma criança no colo estava inclinada
sobre o fogão.
— Bom dia — disse exausto. — Sou José Arcadio Segundo Buendía.
Pronunciou o nome completo, letra por letra, para se convencer de que
estava vivo. Fez bem porque a mulher tinha pensado que era uma
assombração, ao ver na porta a figura esquálida, sombria, com a cabeça e a
roupa sujas de sangue e tocada pela solenidade da morte. Conhecia-o.
Trouxe uma manta para que se cobrisse enquanto secava a roupa no fogão,
esquentou água para que lavasse a ferida, que era apenas um arranhão na
pele, e lhe deu uma fralda limpa para que vendasse a cabeça. Em seguida,
serviu-lhe uma xícara de café, sem açúcar como lhe haviam dito que
tomavam os Buendía, e estendeu a roupa perto do fogo.
José Arcadio Segundo não falou enquanto não terminou de tomar o
café.
— Deviam ser uns três mil — murmurou.
— O quê?
— Os mortos — esclareceu ele. — Deviam ser todos os que estavam na
estação. A mulher mediu-o com um olhar de pena. “Aqui não houve mortos”,
disse.
“Desde a época do seu tio, o coronel, que não acontece nada em
Macondo.” Em três cozinhas onde se deteve José Arcadio Segundo antes de
chegar em casa lhe disseram a mesma coisa: “Não houve mortos.” Passou
pela praça da estação e viu as mesas de frituras amontoadas uma em cima
da outra e tampouco ali encontrou algum rastro do massacre. As ruas
estavam desertas sob a chuva tenaz e as casas fechadas, sem vestígios de
vida interior. O único sinal humano era o primeiro toque para a missa. Bateu
na porta da casa do Coronel Gavilán. Uma mulher grávida, que tinha visto
muitas vezes, fechou-lhe a porta na cara. “Foi-se embora”, disse assustada.
“Voltou para a terra dele.” A entrada principal do galinheiro entelado estava
vigiada, como sempre, por dois guardas locais que pareciam de pedra sob a
chuva, com capas e capacetes de impermeável. Na sua ruazinha marginal,
os negros antilhanos cantavam em coro os salmos de sábado. José Arcadio
Segundo pulou a cerca do quintal e entrou em casa pela cozinha. Santa
Sofía de la Piedad mal levantou a voz. “Que Fernanda não te veja”, disse.
“Agora mesmo estava se levantando.” Como se cumprisse um pacto implícito,
levou o filho para o quarto dos penicos, arrumou-lhe o arrebentado catre de
Melquíades e às duas da tarde, enquanto Fernanda fazia a sesta, passou-lhe
pela janela um prato de comida.
Aureliano Segundo dormira em casa porque a chuva o surpreendera
ali e, às três da tarde, ainda continuava esperando que estiasse. Informado
em segredo por Santa Sofía de la Piedad, a essa hora visitou o irmão no
quarto de Melquíades. Tampouco ele acreditou na versão do massacre nem
no pesadelo do trem carregado de mortos que viajava para o mar. Na noite
anterior tinham lido uma comunicação nacional extraordinária, para
informar que os operários tinham obedecido à ordem de evacuar a estação e
se dirigiram para as suas casas em caravanas pacíficas. A comunicação
informava também que os dirigentes sindicais, com um elevado espírito
patriótico, tinham reduzido as suas reivindicações a dois pontos: reforma
dos serviços médicos e construção de latrinas nas vivendas. Informou-se
mais tarde que, quando as autoridades militares obtiveram o acordo dos
trabalhadores, apressaram-se em comunicá-lo ao Sr. Brown e que este não só
tinha aceito as novas condições como também oferecera pagar três dias de
festas públicas para celebrar o fim do conflito. Só que quando os militares lhe
perguntaram para que data se podia anunciar a assinatura do acordo, ele
olhou pela janela do céu listrado de relâmpagos e fez um profundo gesto de
incerteza:
— Quando estiar — disse. — Enquanto durar a chuva suspendemos
todas as atividades.
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Cem Anos de Solidão (13.2) - A grande greve estourou
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