domingo, 29 de dezembro de 2024

Gabriel G Márquez - Cem Anos de Solidão (14.2) - Tinha tido a paciência

Cem Anos de SOLIDÃO


Gabriel Garcia Márquez


(14.2)
para jomí garcía ascot
e maría luisa elío


     Tinha tido a paciência de escutá-la um dia inteiro até surpreendê-la em erro. Fernanda não lhe deu confiança, mas baixou a voz. Nessa noite, durante o jantar, o exasperante zumbido da ladainha venceu o barulho da chuva. Aureliano Segundo comeu muito pouco, com a cabeça baixa, e se retirou cedo para o dormitório. No café do dia seguinte Fernanda estava trêmula, com jeito de ter dormido mal e parecia desafogada por completo dos seus rancores. Entretanto, quando o marido perguntou se não seria possível comer um ovo quente, ela não respondeu simplesmente que desde a semana anterior os ovos tinham acabado, mas elaborou uma violenta catilinária contra os homens que passavam o tempo adorando o próprio umbigo e de repente tinham o topete de pedir fígado de cotovia na mesa. Aureliano Segundo levou as crianças para ver a enciclopédia como sempre e Fernanda fingiu botar em ordem o quarto de Meme, só para que ele a ouvisse murmurar que, evidentemente, era preciso muita cara dura para dizer aos pobres inocentes que o Coronel Aureliano Buendía estava retratado na enciclopédia.
     De tarde, enquanto as crianças faziam a sesta, Aureliano Segundo se sentou na varanda e até lá Fernanda o perseguiu-o, provocando-o, atormentando-o, girando em volta dele com o seu implacável zumbido de mosca varejeira, dizendo que, é claro, até que não restassem mais do que pedras para comer, o seu marido se sentaria como um sultão da Pérsia a contemplar a chuva, porque não era mais que isso, um galo velho, um parasita que não servia para nada, mais frouxo que borla de cortina, acostumado a viver à custa das mulheres e convencido de que se casara com a esposa de Jonas, que tinha ficado tão tranquila com a história da baleia. Aureliano Segundo ouviu-a por mais de duas horas, impassível, como se fosse surdo. Não a interrompeu até a tarde estar bem avançada, quando não pôde mais suportar a ressonância de bumbo que lhe a tormentava a cabeça.

— Cale-se já, por favor — suplicou.

     Fernanda, pelo contrário, subiu de tom. “Não tenho por que me calar”, disse.
     “Quem não quiser ouvir que vá embora.” Então, Aureliano Segundo perdeu as estribeiras Endireitou-se sem pressa, como se só pensasse em estirar a ossos, e com uma fúria perfeitamente regulada e metódica foi agarrando um a um os vasos de begônias, de fetos, os pote de orégão e, um a um, os foi espedaçando contra o chão. Fernanda se assustou, pois na realidade não tivera até o momento uma consciência clara da tremenda força interior da ladainha, mas já era tarde para qualquer tentativa de retificação Embriagado pela torrente incontrolável de desabafo, Aureliano Segundo quebrou o vidro da cristaleira, e uma por uma, sem se apressar, foi tirando as peças da louça e as reduzindo a pó contra o chão. Sistemático, sereno, com a mesma parcimônia com que tinha empapelado a casa de dinheiro, foi quebrando, em seguida, contra as paredes, os cristais da Boêmia, as jarras pintadas a mão, os quadros de donzelas em barcos carregados de rosas, os espelhos de moldura dourada e tudo o que era quebrável da sala à despensa, e terminou com o pote da cozinha, que se arrebentou no centro do quintal numa explosão profunda. Em seguida lavou as mãos, jogou na cabeça o encerado e antes da meia-noite voltou com umas pelancas endurecidas de carne-seca, vários sacos de arroz e milho com caruncho, e uns mirrados cachos de banana. A partir de então não voltaram a faltar as coisas de comer.
     Amaranta Úrsula e o pequeno Aureliano haveriam de recordar o dilúvio como uma época feliz. Apesar do rigor de Fernanda, chapinhavam nos lagos do quintal, caçavam lagartos para esquartejar e brincavam de envenenar a sopa jogando pó de asa de borboleta durante os descuidos de Santa Sofía de la Piedad. Úrsula era o brinquedo mais divertido. Pensaram que fosse uma grande boneca decrépita que levavam e traziam para todos os cantos, fantasiada com trapos coloridos e com a cara pintada de fuligem e urucu, e uma vez quase lhe arrancaram os olhos com a tesoura de podar como faziam com os sapos. Nada lhes causava tanta excitação quanto os seus desvarios. Realmente, alguma coisa devia ter acontecido no seu cérebro no terceiro ano da chuva, porque pouco a pouco foi perdendo o sentido da realidade e confundia o tempo atual com épocas remotas da sua vida, a ponto de numa ocasião ter passado três dias chorando desconsoladamente a morte de Petronila Iguarán, sua bisavó, enterrada havia mais de um século. Afundou num estado de confusão tão disparatado que acreditava que o pequeno Aureliano era seu filho, o coronel, no tempo em que o levaram para conhecer o gelo, e que o José Arcadio que estava agora no seminário era o primogênito que tinha ido com os ciganos. Tanto falou da família que as crianças aprenderam a organizar visitas imaginárias para ela com seres que não apenas já tinham morrido há muito tempo, mas que tinham existido em épocas diferentes. Sentada na cama com o cabelo coberto de cinza e a cara tapada com um lenço vermelho, Úrsula era feliz no meio da parentela irreal que as crianças descreviam sem omissão de detalhes, como se a tivessem conhecido de verdade. Úrsula conversava com os seus antepassados sobre acontecimentos anteriores à sua própria existência, sentia prazer com as notícias que lhe davam e chorava com eles por mortos muito mais recentes que os próprios companheiros de tertúlia. As crianças não tardaram a perceber que no decorrer dessas visitas fantasmagóricas Úrsula fazia sempre uma pergunta destinada a esclarecer quem trouxera para casa durante a guerra um São José de gesso em tamanho natural para que o guardassem até passar a chuva. Foi assim que Aureliano Segundo se lembrou da fortuna enterrada em algum lugar que só Úrsula conhecia, mas foram inúteis as perguntas e as manobras astutas que lhe ocorreram, porque nos labirintos do desvario ela parecia conservar uma margem de lucidez para defender aquele segredo, que só haveria de revelar a quem demonstrasse ser o verdadeiro dono do ouro sepultado. Era tão hábil e tão rígida que quando Aureliano Segundo instruiu um dos seus companheiros de farra para que se fizesse passar pelo proprietário da fortuna, ela o enredou num interrogatório minucioso e cheio de armadilhas sutis. 
     Convencido de que Úrsula levaria o segredo para o túmulo, Aureliano Segundo contratou um grupo de escavadores com o pretexto de construir canais de escoamento no quintal e no jardim e ele mesmo sondou o solo com barras de ferro e com toda espécie de detectores de metais, sem encontrar nada que se parecesse com ouro em três meses de explorações exaustivas. Mais tarde recorreu a Pilar Ternera com a esperança de que as cartas vissem mais que os cavadores, mas ela começou por lhe explicar que seria inútil qualquer tentativa se não fosse Úrsula que cortasse o baralho. Por outro lado, confirmou a existência do tesouro, com a precisão de que eram sete mil duzentas e quatorze moedas, enterradas em três sacos de lona com fechos de cobre, dentro de um círculo de cento e vinte e dois metros de raio, tomando por centro a cama de Úrsula, mas advertiu-o de que ele não seria encontrado enquanto não acabasse de chover e os sóis de três junhos consecutivos não transformassem em pó os lamaçais. A profusão e a meticulosa vaguidão dos dados pareceram a Aureliano Segundo tão semelhantes às fábulas espíritas que insistiu na empresa, apesar de estarem em agosto e ser necessário esperar pelo menos três anos para satisfazer as condições do prognóstico. A primeira coisa que lhe causou assombro, embora ao mesmo tempo aumentasse a sua confusão, foi comprovar sue havia exatamente cento e vinte e dois metros da cama de Úrsula à cerca do quintal. Fernanda temeu que estivesse tão louco quanto o seu irmão gêmeo, quando o viu tomando as medidas, e pior ainda, quando ordenou ao grupo de escavadores que aprofundassem mais um metro os canais. Presa de um delírio exploratório comparável apenas ao do bisavô quando procurava a rota das invenções, Aureliano Segundo perdeu as últimas bolsas de gordura que lhe restavam e a antiga semelhança com o irmão gêmeo foi outra vez se acentuando, não só pelo escorreito do perfil, como também pelo ar distante e pela atitude ensimesmada. Não voltou a se ocupar das crianças. Comia a qualquer hora, enlameado dos pés à cabeça, e o fazia num canto da cozinha, mal respondendo às perguntas ocasionais de Santa Sofía de la Piedad. Vendo-o trabalhar daquela forma como nunca sonhara que pudesse fazê-lo, Fernanda pensou que a sua temeridade fosse diligência e que a sua cobiça fosse abnegação e que a sua teimosia fosse perseverança e sentiu o remorso nas entranhas, pela violência com que verberava a sua inércia. Mas Aureliano Segundo no momento não estava para reconciliações misericordiosas. Afundado até o pescoço num pantanal de ramagens mortas e flores apodrecidas, revolveu o direito e o avesso daquele solo do jardim depois de ter acabado com o quintal e verrumou tão profundamente os cimentos da galeria oriental da casa que certa noite acordaram aterrorizados pelo que parecia ser um cataclismo, tanto pelas trepidações quanto pelo pavoroso rangido subterrâneo, e eram três aposentos que estavam desmoronando e uma fenda de calafrio que se tinha aberto da varanda ao quarto de Fernanda. Aureliano Segundo nem por isso renunciou à exploração. Mesmo quando já se haviam extinguido as últimas esperanças e a única coisa que parecia ter algum sentido era a predição das cartas, reforçou os cimentos esburacados, consertou a fenda com argamassa e continuou escavando lado ocidental. Ainda estava ali na segunda semana de seguinte, quando a chuva começou a se apaziguar e as foram subindo e se viu que de um momento para o outro ia estiar. Assim foi. Numa sexta-feira, às duas da tarde, iluminou-se o mundo com um sol bobo, vermelho e áspero como poeira de tijolo e quase tão fresco como a água, e não voltou chover durante dez anos.
     Macondo estava em ruínas. Nas valas das ruas restavam móveis espedaçados, esqueletos de animais cobertos de vermelhos, últimas lembranças das hordas de imigrantes tinham fugido de Macondo tão atabalhoadamente como tinham chegado. As casas erguidas com tanta urgência durante a febre da banana tinham sido abandonadas. A companhia bananeira desmantelara as suas instalações. Da antiga cidade cercada só restavam os escombros. As casas de madeira, frescos terraços onde transcorriam as serenas tardes de jogo de cartas pareciam arrasados por uma antecipação do profético que anos depois haveria de apagar Macondo da face da terra. O único rastro humano que deixara aquele sopro voraz foi uma luva de Patricia Brown no automóvel sufocado pelos amores-perfeitos. A região encantada que José Arcadio Buendía explorara nos tempos da fundação e onde seguida prosperaram as plantações de banana era um lodaçal de raízes putrefatas, em cujo horizonte remoto se pôde ver durante vários anos a espuma silenciosa do mar. Aureliano Segundo padeceu de uma crise de angústia no primeiro domingo em que vestiu roupas secas e saiu para rever o povoado. Os sobreviventes da catástrofe, os mesmos que já viviam, antes que Macondo fosse sacudido pelo furacão da companhia bananeira, estavam sentados no meio da rua gozando primeiros sóis. Ainda conservavam na pele o verde de alga e o cheiro de cafua que lhes imprimira a chuva, mas no fundo dos seus corações pareciam satisfeitos por terem recuperado o povoado em que nasceram. A Rua dos Turcos era outra vez a de antes, a do tempo em que os árabes de pantufas e argolas nas orelhas, que percorriam o mundo trocando papagaios por bagatelas, encontraram em Macondo um bom refúgio para descansar da sua milenária condição de gente errante. Do outro lado da chuva, a mercadoria dos bazares estava caindo aos pedaços, os gêneros à mostra na porta estavam pintados de musgo, os balcões escavados pelo cupim e as paredes carcomidas pela umidade, mas os árabes da terceira geração estavam sentados no mesmo lugar e com a mesma atitude de seus pais e avós, taciturnos, impávidos, invulneráveis ao tempo e à desgraça, tão vivos ou tão mortos como tinham estado depois da peste da insônia e das trinta e duas guerras do Coronel Aureliano Buendía. Era tão assombrosa a sua força de vontade diante dos escombros das mesas de jogo, das barraquinhas de frituras, das tendinhas de tiro ao alvo e da travessa onde se interpretavam os sonhos e se adivinhava o futuro, que Aureliano Segundo perguntou-lhes com a sua informalidade habitual de que recursos misteriosos eles se tinham valido para não naufragar na tormenta, como diabo tinham feito para não se afogar, e um após o outro, de porta em porta, devolveram-lhe um sorriso ladino e um olhar sonhador, e todos lhe deram sem combinação prévia a mesma resposta.

— Nadando.

     Petra Cotes era talvez o único nativo que tinha coração de árabe. Tinha visto os últimos destroços dos seus estábulos e cavalariças arrastados pela tormenta, mas conseguira manter a casa de pé. No último ano, mandara recados prementes a Aureliano Segundo e este lhe respondera que ignorava quando voltaria à sua casa, mas que em todo caso levaria um caixote de moedas de ouro para revestir o quarto. Então ela escavou o coração procurando a força que lhe permitisse sobreviver à desgraça e encontrou uma raiva reflexiva e justa, com a qual jurou restaurar a fortuna desbaratada pelo amante e acabada de extinguir pelo dilúvio. Foi uma decisão tão inquebrantável que Aureliano Segundo voltou à sua casa oito meses depois do último recado e a encontrou verde, desgrenhada, com as faces cavadas e a pele escarchada pela sarna, mas escrevendo números em pedacinhos de papel, para fazer uma rifa. Aureliano Segundo ficou atônito, e estava tão esquálido e tão grave que Petra Cotes achou que quem voltava a procurá-la não era o amante de toda a sua vida, mas seu irmão gêmeo.

— Você está louca — disse ele. — A menos que esteja pensando em rifar os ossos.

     Então ela disse que desse um pulo no quarto e Aureliano Segundo viu a mula. Estava com a pele colada aos ossos, como a dona, mas tão viva e decidida quanto ela. Petra alimentara-a com a sua raiva, e quando não teve mais capim nem milho, nem raízes, abrigou-a no próprio quarto e lhe deu de comer os lençóis de percal, os tapetes persas, as colchas de pelúcia, as cortinas de veludo e o dossel bordado com de ouro e borlas de seda da cama episcopal.  

continua página 205...
Cem Anos de Solidão (14.2) - Tinha tido a paciência
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[1] No original: legítimo perjudicador. Explicação do autor à tradutora: “Quando um homem possui uma mulher sem consentimento (é possível?), diz-se que a perjudicou. Fernanda quer dizer que Aureliano Segundo a perjudicou, mas com todo o direito, porque era seu esposo legal: seu legitimo prejudicador.”

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