Cem Anos de SOLIDÃO
Gabriel Garcia Márquez
(14.2)
para jomí garcía ascot
e maría luisa elío
Tinha tido a paciência de escutá-la um dia inteiro até surpreendê-la
em erro. Fernanda não lhe deu confiança, mas baixou a voz. Nessa noite,
durante o jantar, o exasperante zumbido da ladainha venceu o barulho da
chuva. Aureliano Segundo comeu muito pouco, com a cabeça baixa, e se
retirou cedo para o dormitório. No café do dia seguinte Fernanda estava
trêmula, com jeito de ter dormido mal e parecia desafogada por completo
dos seus rancores. Entretanto, quando o marido perguntou se não seria
possível comer um ovo quente, ela não respondeu simplesmente que desde a
semana anterior os ovos tinham acabado, mas elaborou uma violenta
catilinária contra os homens que passavam o tempo adorando o próprio
umbigo e de repente tinham o topete de pedir fígado de cotovia na mesa.
Aureliano Segundo levou as crianças para ver a enciclopédia como sempre e
Fernanda fingiu botar em ordem o quarto de Meme, só para que ele a
ouvisse murmurar que, evidentemente, era preciso muita cara dura para
dizer aos pobres inocentes que o Coronel Aureliano Buendía estava retratado
na enciclopédia.
De tarde, enquanto as crianças faziam a sesta, Aureliano Segundo se
sentou na varanda e até lá Fernanda o perseguiu-o, provocando-o,
atormentando-o, girando em volta dele com o seu implacável zumbido de
mosca varejeira, dizendo que, é claro, até que não restassem mais do que
pedras para comer, o seu marido se sentaria como um sultão da Pérsia a
contemplar a chuva, porque não era mais que isso, um galo velho, um
parasita que não servia para nada, mais frouxo que borla de cortina,
acostumado a viver à custa das mulheres e convencido de que se casara com
a esposa de Jonas, que tinha ficado tão tranquila com a história da baleia.
Aureliano Segundo ouviu-a por mais de duas horas, impassível, como se fosse
surdo. Não a interrompeu até a tarde estar bem avançada, quando não pôde
mais suportar a ressonância de bumbo que lhe a tormentava a cabeça.
— Cale-se já, por favor — suplicou.
Fernanda, pelo contrário, subiu de tom. “Não tenho por que me
calar”, disse.
“Quem não quiser ouvir que vá embora.” Então, Aureliano Segundo
perdeu as estribeiras Endireitou-se sem pressa, como se só pensasse em
estirar a ossos, e com uma fúria perfeitamente regulada e metódica foi
agarrando um a um os vasos de begônias, de fetos, os pote de orégão e, um a
um, os foi espedaçando contra o chão. Fernanda se assustou, pois na
realidade não tivera até o momento uma consciência clara da tremenda
força interior da ladainha, mas já era tarde para qualquer tentativa de
retificação Embriagado pela torrente incontrolável de desabafo, Aureliano
Segundo quebrou o vidro da cristaleira, e uma por uma, sem se apressar, foi
tirando as peças da louça e as reduzindo a pó contra o chão. Sistemático,
sereno, com a mesma parcimônia com que tinha empapelado a casa de
dinheiro, foi quebrando, em seguida, contra as paredes, os cristais da
Boêmia, as jarras pintadas a mão, os quadros de donzelas em barcos
carregados de rosas, os espelhos de moldura dourada e tudo o que era
quebrável da sala à despensa, e terminou com o pote da cozinha, que se
arrebentou no centro do quintal numa explosão profunda. Em seguida lavou
as mãos, jogou na cabeça o encerado e antes da meia-noite voltou com umas
pelancas endurecidas de carne-seca, vários sacos de arroz e milho com
caruncho, e uns mirrados cachos de banana. A partir de então não voltaram
a faltar as coisas de comer.
Amaranta Úrsula e o pequeno Aureliano haveriam de recordar o
dilúvio como uma época feliz. Apesar do rigor de Fernanda, chapinhavam
nos lagos do quintal, caçavam lagartos para esquartejar e brincavam de
envenenar a sopa jogando pó de asa de borboleta durante os descuidos de
Santa Sofía de la Piedad. Úrsula era o brinquedo mais divertido. Pensaram
que fosse uma grande boneca decrépita que levavam e traziam para todos os
cantos, fantasiada com trapos coloridos e com a cara pintada de fuligem e
urucu, e uma vez quase lhe arrancaram os olhos com a tesoura de podar
como faziam com os sapos. Nada lhes causava tanta excitação quanto os seus
desvarios. Realmente, alguma coisa devia ter acontecido no seu cérebro no
terceiro ano da chuva, porque pouco a pouco foi perdendo o sentido da
realidade e confundia o tempo atual com épocas remotas da sua vida, a
ponto de numa ocasião ter passado três dias chorando desconsoladamente a
morte de Petronila Iguarán, sua bisavó, enterrada havia mais de um século.
Afundou num estado de confusão tão disparatado que acreditava que o
pequeno Aureliano era seu filho, o coronel, no tempo em que o levaram para
conhecer o gelo, e que o José Arcadio que estava agora no seminário era o
primogênito que tinha ido com os ciganos. Tanto falou da família que as
crianças aprenderam a organizar visitas imaginárias para ela com seres que
não apenas já tinham morrido há muito tempo, mas que tinham existido em
épocas diferentes. Sentada na cama com o cabelo coberto de cinza e a cara
tapada com um lenço vermelho, Úrsula era feliz no meio da parentela irreal
que as crianças descreviam sem omissão de detalhes, como se a tivessem
conhecido de verdade. Úrsula conversava com os seus antepassados sobre
acontecimentos anteriores à sua própria existência, sentia prazer com as
notícias que lhe davam e chorava com eles por mortos muito mais recentes
que os próprios companheiros de tertúlia. As crianças não tardaram a
perceber que no decorrer dessas visitas fantasmagóricas Úrsula fazia sempre
uma pergunta destinada a esclarecer quem trouxera para casa durante a
guerra um São José de gesso em tamanho natural para que o guardassem até
passar a chuva. Foi assim que Aureliano Segundo se lembrou da fortuna
enterrada em algum lugar que só Úrsula conhecia, mas foram inúteis as
perguntas e as manobras astutas que lhe ocorreram, porque nos labirintos do
desvario ela parecia conservar uma margem de lucidez para defender
aquele segredo, que só haveria de revelar a quem demonstrasse ser o
verdadeiro dono do ouro sepultado. Era tão hábil e tão rígida que quando
Aureliano Segundo instruiu um dos seus companheiros de farra para que se
fizesse passar pelo proprietário da fortuna, ela o enredou num interrogatório
minucioso e cheio de armadilhas sutis.
Convencido de que Úrsula levaria o segredo para o túmulo, Aureliano
Segundo contratou um grupo de escavadores com o pretexto de construir
canais de escoamento no quintal e no jardim e ele mesmo sondou o solo com
barras de ferro e com toda espécie de detectores de metais, sem encontrar
nada que se parecesse com ouro em três meses de explorações exaustivas.
Mais tarde recorreu a Pilar Ternera com a esperança de que as cartas vissem
mais que os cavadores, mas ela começou por lhe explicar que seria inútil
qualquer tentativa se não fosse Úrsula que cortasse o baralho. Por outro lado,
confirmou a existência do tesouro, com a precisão de que eram sete mil
duzentas e quatorze moedas, enterradas em três sacos de lona com fechos
de cobre, dentro de um círculo de cento e vinte e dois metros de raio,
tomando por centro a cama de Úrsula, mas advertiu-o de que ele não seria
encontrado enquanto não acabasse de chover e os sóis de três junhos
consecutivos não transformassem em pó os lamaçais. A profusão e a
meticulosa vaguidão dos dados pareceram a Aureliano Segundo tão
semelhantes às fábulas espíritas que insistiu na empresa, apesar de estarem
em agosto e ser necessário esperar pelo menos três anos para satisfazer as
condições do prognóstico. A primeira coisa que lhe causou assombro, embora
ao mesmo tempo aumentasse a sua confusão, foi comprovar sue havia
exatamente cento e vinte e dois metros da cama de Úrsula à cerca do
quintal. Fernanda temeu que estivesse tão louco quanto o seu irmão gêmeo,
quando o viu tomando as medidas, e pior ainda, quando ordenou ao grupo
de escavadores que aprofundassem mais um metro os canais. Presa de um
delírio exploratório comparável apenas ao do bisavô quando procurava a rota
das invenções, Aureliano Segundo perdeu as últimas bolsas de gordura que
lhe restavam e a antiga semelhança com o irmão gêmeo foi outra vez se
acentuando, não só pelo escorreito do perfil, como também pelo ar distante
e pela atitude ensimesmada. Não voltou a se ocupar das crianças. Comia a
qualquer hora, enlameado dos pés à cabeça, e o fazia num canto da cozinha,
mal respondendo às perguntas ocasionais de Santa Sofía de la Piedad.
Vendo-o trabalhar daquela forma como nunca sonhara que pudesse fazê-lo,
Fernanda pensou que a sua temeridade fosse diligência e que a sua cobiça
fosse abnegação e que a sua teimosia fosse perseverança e sentiu o remorso
nas entranhas, pela violência com que verberava a sua inércia. Mas Aureliano
Segundo no momento não estava para reconciliações misericordiosas.
Afundado até o pescoço num pantanal de ramagens mortas e flores
apodrecidas, revolveu o direito e o avesso daquele solo do jardim depois de
ter acabado com o quintal e verrumou tão profundamente os cimentos da
galeria oriental da casa que certa noite acordaram aterrorizados pelo que
parecia ser um cataclismo, tanto pelas trepidações quanto pelo pavoroso
rangido subterrâneo, e eram três aposentos que estavam desmoronando e
uma fenda de calafrio que se tinha aberto da varanda ao quarto de
Fernanda. Aureliano Segundo nem por isso renunciou à exploração. Mesmo
quando já se haviam extinguido as últimas esperanças e a única coisa que
parecia ter algum sentido era a predição das cartas, reforçou os cimentos
esburacados, consertou a fenda com argamassa e continuou escavando lado
ocidental. Ainda estava ali na segunda semana de seguinte, quando a chuva
começou a se apaziguar e as foram subindo e se viu que de um momento
para o outro ia estiar. Assim foi. Numa sexta-feira, às duas da tarde, iluminou-se o mundo com um sol bobo, vermelho e áspero como poeira de tijolo e
quase tão fresco como a água, e não voltou chover durante dez anos.
Macondo estava em ruínas. Nas valas das ruas restavam móveis
espedaçados, esqueletos de animais cobertos de vermelhos, últimas
lembranças das hordas de imigrantes tinham fugido de Macondo tão
atabalhoadamente como tinham chegado. As casas erguidas com tanta
urgência durante a febre da banana tinham sido abandonadas. A
companhia bananeira desmantelara as suas instalações. Da antiga cidade
cercada só restavam os escombros. As casas de madeira, frescos terraços onde
transcorriam as serenas tardes de jogo de cartas pareciam arrasados por uma
antecipação do profético que anos depois haveria de apagar Macondo da
face da terra. O único rastro humano que deixara aquele sopro voraz foi uma
luva de Patricia Brown no automóvel sufocado pelos amores-perfeitos. A
região encantada que José Arcadio Buendía explorara nos tempos da
fundação e onde seguida prosperaram as plantações de banana era um
lodaçal de raízes putrefatas, em cujo horizonte remoto se pôde ver durante
vários anos a espuma silenciosa do mar. Aureliano Segundo padeceu de uma
crise de angústia no primeiro domingo em que vestiu roupas secas e saiu
para rever o povoado. Os sobreviventes da catástrofe, os mesmos que já
viviam, antes que Macondo fosse sacudido pelo furacão da companhia
bananeira, estavam sentados no meio da rua gozando primeiros sóis. Ainda
conservavam na pele o verde de alga e o cheiro de cafua que lhes imprimira
a chuva, mas no fundo dos seus corações pareciam satisfeitos por terem
recuperado o povoado em que nasceram. A Rua dos Turcos era outra vez a
de antes, a do tempo em que os árabes de pantufas e argolas nas orelhas, que
percorriam o mundo trocando papagaios por bagatelas, encontraram em
Macondo um bom refúgio para descansar da sua milenária condição de
gente errante. Do outro lado da chuva, a mercadoria dos bazares estava
caindo aos pedaços, os gêneros à mostra na porta estavam pintados de
musgo, os balcões escavados pelo cupim e as paredes carcomidas pela
umidade, mas os árabes da terceira geração estavam sentados no mesmo
lugar e com a mesma atitude de seus pais e avós, taciturnos, impávidos,
invulneráveis ao tempo e à desgraça, tão vivos ou tão mortos como tinham
estado depois da peste da insônia e das trinta e duas guerras do Coronel
Aureliano Buendía. Era tão assombrosa a sua força de vontade diante dos
escombros das mesas de jogo, das barraquinhas de frituras, das tendinhas de
tiro ao alvo e da travessa onde se interpretavam os sonhos e se adivinhava o
futuro, que Aureliano Segundo perguntou-lhes com a sua informalidade
habitual de que recursos misteriosos eles se tinham valido para não
naufragar na tormenta, como diabo tinham feito para não se afogar, e um
após o outro, de porta em porta, devolveram-lhe um sorriso ladino e um
olhar sonhador, e todos lhe deram sem combinação prévia a mesma resposta.
— Nadando.
Petra Cotes era talvez o único nativo que tinha coração de árabe.
Tinha visto os últimos destroços dos seus estábulos e cavalariças arrastados
pela tormenta, mas conseguira manter a casa de pé. No último ano,
mandara recados prementes a Aureliano Segundo e este lhe respondera que
ignorava quando voltaria à sua casa, mas que em todo caso levaria um
caixote de moedas de ouro para revestir o quarto. Então ela escavou o
coração procurando a força que lhe permitisse sobreviver à desgraça e
encontrou uma raiva reflexiva e justa, com a qual jurou restaurar a fortuna
desbaratada pelo amante e acabada de extinguir pelo dilúvio. Foi uma
decisão tão inquebrantável que Aureliano Segundo voltou à sua casa oito
meses depois do último recado e a encontrou verde, desgrenhada, com as
faces cavadas e a pele escarchada pela sarna, mas escrevendo números em
pedacinhos de papel, para fazer uma rifa. Aureliano Segundo ficou atônito,
e estava tão esquálido e tão grave que Petra Cotes achou que quem voltava a
procurá-la não era o amante de toda a sua vida, mas seu irmão gêmeo.
— Você está louca — disse ele. — A menos que esteja pensando em
rifar os ossos.
Então ela disse que desse um pulo no quarto e Aureliano Segundo viu
a mula. Estava com a pele colada aos ossos, como a dona, mas tão viva e
decidida quanto ela. Petra alimentara-a com a sua raiva, e quando não teve
mais capim nem milho, nem raízes, abrigou-a no próprio quarto e lhe deu de
comer os lençóis de percal, os tapetes persas, as colchas de pelúcia, as
cortinas de veludo e o dossel bordado com de ouro e borlas de seda da cama
episcopal.
continua página 205...
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Cem Anos de Solidão (14.2) - Tinha tido a paciência
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[1] No original: legítimo perjudicador. Explicação do autor à tradutora: “Quando um homem possui uma mulher sem consentimento (é possível?), diz-se que a perjudicou. Fernanda quer dizer que Aureliano Segundo a perjudicou, mas com todo o direito, porque era seu esposo legal: seu legitimo prejudicador.”
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