em busca do tempo perdido
volume I
No Caminho de Swann
ao senhor gaston calmette
como um testemunho de profundo e afetuoso reconhecimento
— marcel proust
um amor de swann
III(b)
Odette de Crécy tornou a avistar-se com Swann, depois amiudou as visitas; e sem dúvida cada visita renovava para ele a sua decepção ante aquele rosto cujas particularidades quase havia esquecido desde a última vez e que não lhe viera à lembrança nem tão expressivo, nem tão fanado, apesar de jovem; lamentava, enquanto falavam, que a grande beleza que ela na verdade possuía não fosse do gênero daquelas que o atrairiam espontaneamente. Cumpre aliás dizer que o rosto de Odette parecia mais magro e mais saliente porque essa superfície unida e plana que abrange a fronte e a parte superior das faces achava-se recoberta pelo penteado maciço que então usavam, alongado em “proas”, soerguido em “tufos”, espalhado em mechas revoltas ao longo das orelhas; e quanto ao seu corpo, admiravelmente benfeito, era difícil seguir-lhe a continuidade (por causa da moda da época e embora fosse ela uma das mulheres que se vestiam melhor em Paris) de tal modo o corpete, avançando em saliência como sobre um estômago imaginário e terminando bruscamente em ângulo agudo, enquanto abaixo começava a inflar-se o balão das saias duplas, dava às mulheres o aspecto de serem compostas de diferentes peças mal encaixadas; e tamanha era a independência com que os fofos, os babados, o colete, conforme a fantasia de seu desenho ou a consistência de seu tecido, acompanhavam a linha que os conduzia às laçadas, aos folhos de renda, às franjas de azeviche, ou que os dirigia ao longo das barbatanas, mas absolutamente não se ligavam ao ser vivo, que, segundo a arquitetura daqueles fanfreluches se aproximava ou se afastava muito da sua, ali se sentia apertado ou à solta.
ao senhor gaston calmette
como um testemunho de profundo e afetuoso reconhecimento
— marcel proust
um amor de swann
Odette de Crécy tornou a avistar-se com Swann, depois amiudou as visitas; e sem dúvida cada visita renovava para ele a sua decepção ante aquele rosto cujas particularidades quase havia esquecido desde a última vez e que não lhe viera à lembrança nem tão expressivo, nem tão fanado, apesar de jovem; lamentava, enquanto falavam, que a grande beleza que ela na verdade possuía não fosse do gênero daquelas que o atrairiam espontaneamente. Cumpre aliás dizer que o rosto de Odette parecia mais magro e mais saliente porque essa superfície unida e plana que abrange a fronte e a parte superior das faces achava-se recoberta pelo penteado maciço que então usavam, alongado em “proas”, soerguido em “tufos”, espalhado em mechas revoltas ao longo das orelhas; e quanto ao seu corpo, admiravelmente benfeito, era difícil seguir-lhe a continuidade (por causa da moda da época e embora fosse ela uma das mulheres que se vestiam melhor em Paris) de tal modo o corpete, avançando em saliência como sobre um estômago imaginário e terminando bruscamente em ângulo agudo, enquanto abaixo começava a inflar-se o balão das saias duplas, dava às mulheres o aspecto de serem compostas de diferentes peças mal encaixadas; e tamanha era a independência com que os fofos, os babados, o colete, conforme a fantasia de seu desenho ou a consistência de seu tecido, acompanhavam a linha que os conduzia às laçadas, aos folhos de renda, às franjas de azeviche, ou que os dirigia ao longo das barbatanas, mas absolutamente não se ligavam ao ser vivo, que, segundo a arquitetura daqueles fanfreluches se aproximava ou se afastava muito da sua, ali se sentia apertado ou à solta.
Mas, depois da partida de Odette, Swann sorria, recordando ter ela dito como o
tempo custaria a passar até que ele lhe permitisse nova visita; lembrava o ar inquieto e
tímido com que lhe pedira para que não demorasse muito a chamá-la e os olhares que
então lhe dirigira numa temerosa súplica, e que a tornavam deveras comovedora sob o
ramo de amores-perfeitos artificiais que tinha na frente do seu chapelão de palha preso
com fitas de veludo negro. “E você”, dissera-lhe Odette “não irá um dia lá em casa
tomar chá comigo?”. Ele alegara trabalhos em andamento, um ensaio — na verdade
abandonado há anos — sobre Vermeer de Delft. [1] “Bem compreendo que,
insignificante como sou, nada possa fazer junto dos grandes sábios como vocês”,
retrucara ela. “Seria como a rã diante do areópago.[2] E no entanto gostaria tanto de
instruir-me, de saber, de ser iniciada! Como não deve ser divertido procurar edições
antigas, meter o nariz em papéis velhos”, acrescentara com esse ar de suficiência que
adota uma dama elegante ao afirmar o prazer que sente em entregar-se sem receio a um
trabalho sórdido, como por exemplo cozinhar “pondo as mãos na massa”. “Você vai rir
de mim, mas esse pintor que não o deixa visitar-me (queria referir-se a Vermeer), eu
nunca ouvi falar nele; ainda vive? Podem ver-se obras suas em Paris? Pois eu gostaria
de ter uma ideia das coisas de que você gosta, adivinhar alguma coisa do que encerra
essa fronte que tanto trabalha, essa cabeça que se vê que está sempre refletindo, e assim
eu poderia dizer-me: Ah! É nisto que ele está pensando. Que sonho!, estar ligada aos
seus trabalhos!” Ele alegara o seu medo das amizades novas, a que chamou, por
galanteria, o medo de uma paixão infeliz. “Tem medo de uma afeição? Que engraçado!
E eu que não procuro senão isso que daria a vida para encontrar alguma!”, dissera ela
numa voz tão natural, tão sincera que até o comoveu.“É que com certeza sofreu por
alguma mulher. E acha que as outras são iguais a ela. Essa mulher não soube
compreendê-lo: você é uma criatura tão diferente! Foi o que primeiro me agradou em
você; bem vi que não era como todo mundo.” “Mas você também”, dissera-lhe Swann,
“bem sei o que são as mulheres, deve ter uma porção de ocupações e com certeza não
dispõe de muito tempo.” “Eu? Eu nunca tenho nada que fazer! Sempre estou livre, e
para você o estarei sempre. A qualquer hora do dia ou da noite em que lhe seja mais
cômodo ver-me, mande chamar-me que virei com alegria. Sim? Mas sabe o que seria
bom mesmo? Era apresentá-lo à senhora Verdurin, aonde vou todas as noites. Imagine
se nos encontrássemos lá e eu pudesse imaginar que você tinha ido um pouco por causa
de mim.”
E sem dúvida, recordando assim as suas conversas, pensando nela quando estava
sozinho, apenas fazia mover-se a sua imagem, entre muitas outras imagens de mulheres,
nos seus devaneios romanescos; mas se, graças a uma circunstância qualquer (ou talvez
sem ela, pois a circunstância que se apresenta ao declarar-se um estado até então latente
pode não tê-lo influenciado em coisa alguma), a imagem de Odette de Crécy chegava a
absorver-lhe todos os sonhos, se estes já não podiam separar-se da sua recordação,
então não teria mais nenhuma importância a imperfeição do seu corpo, nem que fosse,
mais ou menos como qualquer outro corpo, do gosto de Swann, pois, tornando-se o
corpo daquela a quem amava, seria desde então o único capaz de lhe causar alegrias e
tormentos.
Meu avô justamente conhecera, coisa que não se poderia dizer de nenhum de seus
amigos atuais, a família desses Verdurin. Mas perdera todo contato com aquele a quem
chamava “o jovem Verdurin” e que considerava, generalizando um pouco, como
decaído entre os boêmios e a gentalha, embora conservasse muitos milhões.[3] Um
dia recebeu uma carta em que Swann pedia uma apresentação para os Verdurin. “Alerta!
Alerta”, exclamara meu avô. “Isso não me espanta, era mesmo por aí que Swann devia
acabar. Bonito meio! Mas não posso fazer o que me pede porque não conheço mais esse
cavalheiro. E depois, deve andar aí algum rabo de saia, e eu não me meto nessas coisas.
Ah!, vai ser divertido se Swann se engraçar com os Verdurin!”
E ante a resposta negativa de meu avô, foi a própria Odette quem levou Swann à
casa dos Verdurin.
No dia em que Swann lhes foi apresentado, tinham os Verdurin à mesa o dr.
Cottard e senhora, o jovem pianista e sua tia, e o seu pintor favorito de então, aos quais
posteriormente vieram juntar-se alguns fiéis.[4]
O dr. Cottard nunca sabia ao certo em que tom devia responder a alguém, e se o seu
interlocutor estava gracejando ou falando sério. E por causa das dúvidas, acrescentava a
todas as suas expressões faciais a oferta de um condicional e provisório sorriso, cuja
expectante agudeza o absolveria do reproche de ingenuidade, se a frase que lhe diziam
fosse de fato chistosa. Mas, como tinha de enfrentar a hipótese contrária, não deixava
que o sorriso se afirmasse nitidamente, de modo que em seu rosto se via flutuar
perpetuamente uma incerteza, onde se lia a pergunta que ele não ousava formular: “O
senhor está dizendo isso a sério?”. Da mesma forma que nos salões, tampouco estava
seguro de como deveria comportar-se na rua, e na vida em geral, e opunha assim aos
passantes, aos carros, aos acontecimentos, um malicioso sorriso que tirava de antemão à
sua atitude qualquer pecha de impropriedade, pois assim provava, se não convinha ao
caso, que ele bem o sabia e só procedera daquele modo por troça.
No entanto, em todos os casos em que lhe parecesse cabível uma pergunta franca,
não deixava o doutor de esforçar-se por restringir o campo de suas dúvidas e completar
sua instrução.
Assim, seguindo o conselho que a previdente mãe lhe dera quando ele saiu de sua
terra natal, nunca deixava passar uma locução ou nome próprio que lhe fossem
desconhecidos sem procurar documentar-se na matéria.
Quanto às locuções, jamais se saciava de indagar, pois, atribuindo-lhes às vezes um
sentido mais preciso do que elas têm, desejaria saber o que significavam exatamente
aquelas que ouvia mais a miúdo: a beleza do diabo, sangue azul, uma vida de cachorro, o
quarto de hora de Rabelais,[5] ser o árbitro da elegância, dar carta branca, estar entre a
faca e a parede etc., e em que determinados casos poderia por sua vez empregá-las na
conversação. Na falta delas, encaixava os trocadilhos que aprendera. Quanto aos nomes
novos que pronunciavam diante dele, contentava-se em repeti-los num tom
interrogativo, que achava suficiente para merecer explicações sem que parecesse pedi-las.
Como carecia completamente do senso crítico que julgava aplicar a tudo, esse
refinamento da polidez que consiste em afirmar a uma pessoa a quem prestamos um
favor que os favorecidos somos nós, mas sem esperar que nos creia, era trabalho
perdido com o doutor, pois tomava tudo ao pé da letra. Apesar da cegueira que por ele
tinha a sra. Verdurin, acabou por agastar-se, embora continuando a achá-lo muito
inteligente, de que, todas as vezes em que o convidava a assistir, de uma frisa, a uma
representação de Sara Bernhardt, e lhe dizia, para maior gentileza: “Agradeço-lhe muito
por ter vindo, doutor, tanto mais que já deve ter visto muitas vezes a Sara Bernhardt, e
depois talvez estejamos demasiado perto do palco”, o dr. Cottard, que havia entrado no
camarote com um sorriso que esperava, para se definir ou desaparecer, que alguma voz
autorizada o informasse do valor do espetáculo, assim lhe respondesse: “Com efeito,
estamos muito perto, e na verdade a gente já começa a enfastiar-se de Sara Bernhardt.
Mas a senhora expressou o desejo de que eu viesse. Para mim os seus desejos são
ordens. Sinto-me muito feliz em prestar-lhe esse pequeno serviço. Que não faria a gente
para lhe ser agradável, tratando-se de uma pessoa tão bondosa como a senhora?”. E
acrescentava: “Sara Bernhardt é mesmo a Voz de Ouro, não? Também tenho lido que,
quando representa, o teatro vem abaixo. Não é esquisita essa expressão?”, e ficava
aguardando um comentário que não vinha.
— Sabes? — dissera a sra. Verdurin ao marido. — Creio que fazemos mal em
depreciar, por modéstia, os presentes que damos ao doutor. É um sábio que vive fora
do mundo prático, sem conhecer o valor das coisas, e julga-as pelo que lhe dizemos.
— Eu não me animava a dizer-te, mas já o tinha notado — respondeu o sr.
Verdurin. E no seguinte Ano-Novo, em vez de mandar ao dr. Cottard um rubi de três
mil francos, dizendo-lhe que pouco valia, o sr. Verdurin comprou por trezentos francos
uma imitação, dando a entender que dificilmente poderia encontrar-se outra igual.
Quando a sra. Verdurin anunciou que naquela noite apareceria o sr. Swann:
“Swann?”, exclamou o doutor num tom que a surpresa tornava brutal, pois a mínima
novidade sempre apanhava mais desprevenido do que a ninguém aquele homem que se
julgava perpetuamente preparado para tudo. E ao ver que não lhe respondiam: “Swann?
Mas quem é Swann?”, bradou no auge de uma ansiedade que se extinguiu de súbito
depois que lhe disse a sra. Verdurin: “Ora, é esse amigo de que Odette nos tinha falado.
“Ah!, está bem, está bem”, respondeu o doutor, já tranquilo. Quanto ao pintor,
alegrava-se com a apresentação de Swann, porque o supunha enamorado de Odette e
gostava de favorecer ligações. “Nada me diverte tanto como fazer casamentos”,
segredou ele ao ouvido do dr. Cottard, “já consegui muitos, até entre mulheres!”.
Ao dizer aos Verdurin que Swann era muito smart, Odette fizera-os temer que fosse
um “maçante”. Causou-lhes, pelo contrário, excelente impressão, uma de cujas causas
indiretas era, sem que o soubessem, o hábito que tinha ele das casas elegantes. Pois
Swann tinha com efeito, sobre os homens que nunca frequentaram a alta sociedade,
mesmo os mais inteligentes, uma das superioridades dos que já viveram um pouco em
tal meio e que consiste em não mais transfigurá-lo pelo desejo ou pelo horror que
inspira à imaginação e considerá-lo sem nenhuma importância. A amabilidade destes,
isenta de qualquer esnobismo e do receio de parecerem demasiado amáveis, tornando-se
independente, tem essa facilidade, essa graça de movimentos daqueles cujos membros
flexíveis executam exatamente o que eles desejam, sem participação indiscreta e
desajeitada do resto do corpo. A simples ginástica elementar do homem do mundo que
estende a mão amavelmente ao jovem desconhecido que lhe apresentam e se inclina com
reserva ante o embaixador a quem é apresentado acabara por infiltrar-se, sem que ele
próprio o notasse, em todas as atitudes sociais de Swann que, para com gente de um
meio inferior ao seu, como os Verdurin e seus amigos, deu instintivamente mostras de
uma solicitude e atenções de que um “maçante”, segundo eles, certamente se absteria. Só
teve um momento de frieza com o dr. Cottard: ao vê-lo piscar-lhe o olho e sorrir-lhe
com um ar ambíguo antes de se falarem (mímica que Cottard chamava “deixar que
corra”), julgou Swann que o doutor sem dúvida o conhecia por se terem encontrado
ambos nalgum lugar alegre, embora os frequentasse muito raramente, pois nunca fora
dado à vida boêmia. Achando a alusão de mau gosto, principalmente em presença de
Odette, que poderia fazer mau juízo a seu respeito, ele assumiu um ar glacial. Mas
quando soube que uma dama que se achava a seu lado era a sra. Cottard, considerou que
um marido tão jovem não procuraria aludir, diante da esposa, a divertimentos daquele
gênero; e cessou de emprestar ao ar conivente do doutor o significado que temia. O
pintor logo convidou Swann a visitar com Odette o seu ateliê; Swann achou-o muito
gentil. “Talvez ele o favoreça mais que a mim”, disse a sra. Verdurin num tom de
fingido ressentimento “e lhe mostre o retrato de Cottard (ela o encomendara ao pintor).
Não se descuide, senhor Biche”,[6] recomendou ao pintor, a quem, por um gracejo
consagrado, costumava chamar de senhor, “do belo olhar, desse não sei quê de fino e
divertido que há na expressão daqueles olhos. O que quero ter, antes de tudo, é o seu
sorriso, o que lhe pedi foi o retrato do seu sorriso.” E, como a frase lhe parecesse
notável, repetiu-a mais alto, para estar certa de que vários convidados a ouviriam, e até
fez primeiro aproximarem-se alguns, sob um pretexto qualquer. Swann manifestou o
desejo de ser apresentado a todos, até a um velho amigo dos Verdurin, Saniette, cuja
timidez, simplicidade e bom coração o tinham feito perder em toda parte a consideração
que lhe valera a sua ciência de arquivista, a sua grande fortuna e a distinta família de que
provinha. Ao falar, saíam-lhe as palavras num balbucio verdadeiramente delicioso, pois
se via que isso denotava menos um defeito da língua que uma qualidade da alma, como
que um resto de inocência da primeira infância, que ele jamais perdera. Todas as
consoantes que não podia pronunciar correspondiam a outras tantas durezas de que era
incapaz na vida. Quando Swann pediu para ser apresentado ao sr. Saniette, deu à sra.
Verdurin a impressão de que estava invertendo os papéis (tanto assim que disse,
insistindo na diferença: “Senhor Swann, quer ter a bondade de me permitir que lhe
apresente o nosso amigo Saniette?”), mas despertou em Saniette uma fervorosa simpatia
que aliás os Verdurin nunca revelaram a Swann, pois Saniette lhes aborrecia um pouco e
não faziam questão de lhe conseguir amigos. Mas, em compensação, Swann lhes tocou
na corda sensível quando em seguida pediu que o apresentassem à tia do pianista.
Vestida de preto, como sempre, pois achava que de preto sempre se está bem e é o que
há de mais distinto, tinha o rosto excessivamente vermelho, como lhe acontecia sempre
que acabava de comer. Inclinou-se diante de Swann com respeito, mas se reergueu com
majestade. Como não tinha instrução alguma e receava cometer erros de linguagem,
pronunciava expressamente as frases de um modo confuso, pensando que assim, se
soltasse alguma silabada, ficaria a coisa esfumada em tal vagueza que não poderiam
distingui-la exatamente, de sorte que a sua conversação não era mais que um indistinto
ciciar de que emergiam de vez em quando os raros vocábulos de que se sentia segura.
Swann julgou que não haveria mal em zombar um pouco a respeito dela com o sr.
Verdurin, o qual, pelo contrário, se ressentiu com isso.
— Mas é uma excelente mulher — retrucou. — Admito que não seja estonteante;
mas garanto-lhe que é agradabilíssima numa palestra a sós.
— Não duvido — apressou-se em conceder Swann. — Eu queria dizer que ela não
me parecia “eminente” — acrescentou, sublinhando o adjetivo —, e afinal de contas é
antes um cumprimento!
— Pois olhe! — disse o sr. Verdurin —, vou deixá-lo espantado, mas o fato é que
ela escreve deliciosamente. Nunca ouviu o seu sobrinho? Admirável, não é, doutor?
Quer que eu lhe peça para tocar alguma coisa, senhor Swann?
— Será uma felicidade… — começava a responder Swann, quando o doutor o
interrompeu, com ar zombeteiro. Com efeito, tendo sabido que era antiquado empregar
a ênfase e formas solenes na conversação, logo que ouvia uma palavra grave dita
seriamente como acabava de acontecer com a palavra “felicidade”, julgava que aquele
que a pronunciava o fazia por pedantismo. E se essa palavra figurava casualmente no
que ele denominava um velho clichê, por mais corrente que a palavra fosse, supunha o
doutor que a frase iniciada era ridícula e rematava-a ironicamente com o lugar-comum,
como se acusasse o interlocutor de haver pretendido empregá-lo, quando o outro nem
pensava em tal.
— Uma felicidade para a pátria! — exclamou ele maliciosamente, erguendo os
braços com ênfase.
O sr. Verdurin não pôde deixar de rir.
— De que estão rindo todos esses homens aí? Parece que nesse cantinho não há
melancolia! — exclamou a sra. Verdurin. — Pensam que eu me divirto aqui de castigo?
— acrescentou com ares de menina, num tom despeitado.
Estava sentada numa alta cadeira sueca de pinho envernizado, presente de um
violinista daquela nacionalidade, e que ela conservava, embora parecesse um escabelo e
não combinasse absolutamente com os seus belos móveis antigos, mas a sra. Verdurin
queria conservar em evidência as coisas que os fiéis costumavam presentear-lhe de vez
em quando, a fim de que os doadores tivessem o prazer de as reconhecer quando a
visitavam. Assim, tratava de os persuadir que se limitassem às flores e aos bombons,
que ao menos se acabam; mas não o conseguia, e em sua casa havia uma coleção de
aquecedores, almofadões, pêndulas, biombos, barômetros, jarros orientais, num
acúmulo de repetições e numa incongruência de presentes de festas.
Daquele elevado posto, participava animadamente da conversação dos fiéis e
divertia-se com suas “farsas”, mas, desde o acidente da mandíbula, havia renunciado ao
trabalho de dar gargalhadas de verdade e, em vez disso, entregava-se a uma mímica
convencional que significava, sem fadiga nem riscos, que ela ria a mais não poder. À
menor piada que largava um habitué contra um maçante ou contra um antigo habitué
relegado para o campo dos maçantes, e para maior desespero do sr. Verdurin, que por
muito tempo tivera a pretensão de ser tão amável como a esposa, mas que ria
francamente e logo perdia o fôlego e fora distanciado e vencido por aquela artimanha de
uma incessante e fictícia hilaridade — ela soltava um gritinho, fechava inteiramente os
olhos de pássaro que uma catarata começava a velar, e bruscamente, como se não tivesse
mais que o tempo justo para se furtar a um espetáculo indecente ou evitar um ataque
mortal, mergulhando o rosto nas mãos que o ocultavam de todo, parecia esforçar-se em
reprimir e aniquilar um riso, que, se se entregasse a ele, a faria desmaiar. Assim,
atordoada com a jovialidade dos fiéis, embriagada de camaradagem, de maledicência e de
assentimento, a sra. Verdurin, do alto do seu poleiro, semelhante a um pássaro a que
houvessem ensopado o biscoito em vinho quente, soluçava de amabilidade.
continua na página 141...
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Leia também:
Volume 1
No Caminho de Swann (III - um amor de swann, Odette de Crécy - b)
Volume 2
Volume 3
Volume 4
Volume 5
Volume 6
Volume 7
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[1] O ensaio do diletante Swann sobre Vermeer permanecerá abandonado. [n. e.]
[2] Odette pretende citar o título de uma fábula de La Fontaine, mas se confunde e acaba comprovando, sem querer, sua pouca sapiência. [n. e.]
[3] A estranha imagem do sr. Verdurin como boêmio (e ainda literato) só será confirmada muitas centenas de páginas depois, no início do Tempo redescoberto. [n. e.]
[4] A presença do pintor será valorizada no segundo volume, quando o herói intuirá sua ligação com Odette. [n. e.]
[5] A expressão “o quarto de hora de Rabelais” designa precisamente dificuldades financeiras, numa referência ao episódio em que Rabelais, sem um tostão em Roma, faz-se prender e é levado até Paris, à custa do Estado, esperando ser libertado pelo rei Francisco I. [n. e.]
[6] Apelido do pintor Elstir no salão Verdurin. O herói o encontrará durante sua primeira estada na praia de Balbec, narrada no segundo volume da obra. [n. e.]
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