sexta-feira, 20 de dezembro de 2024

Marcel Proust - No Caminho de Swann (III - um amor de swann, Odette de Crécy - b)

em busca do tempo perdido


volume I
No Caminho de Swann


ao senhor gaston calmette
como um testemunho de profundo e afetuoso reconhecimento
— marcel proust


um amor de swann


III(b) 


     Odette de Crécy tornou a avistar-se com Swann, depois amiudou as visitas; e sem dúvida cada visita renovava para ele a sua decepção ante aquele rosto cujas particularidades quase havia esquecido desde a última vez e que não lhe viera à lembrança nem tão expressivo, nem tão fanado, apesar de jovem; lamentava, enquanto falavam, que a grande beleza que ela na verdade possuía não fosse do gênero daquelas que o atrairiam espontaneamente. Cumpre aliás dizer que o rosto de Odette parecia mais magro e mais saliente porque essa superfície unida e plana que abrange a fronte e a parte superior das faces achava-se recoberta pelo penteado maciço que então usavam, alongado em “proas”, soerguido em “tufos”, espalhado em mechas revoltas ao longo das orelhas; e quanto ao seu corpo, admiravelmente benfeito, era difícil seguir-lhe a continuidade (por causa da moda da época e embora fosse ela uma das mulheres que se vestiam melhor em Paris) de tal modo o corpete, avançando em saliência como sobre um estômago imaginário e terminando bruscamente em ângulo agudo, enquanto abaixo começava a inflar-se o balão das saias duplas, dava às mulheres o aspecto de serem compostas de diferentes peças mal encaixadas; e tamanha era a independência com que os fofos, os babados, o colete, conforme a fantasia de seu desenho ou a consistência de seu tecido, acompanhavam a linha que os conduzia às laçadas, aos folhos de renda, às franjas de azeviche, ou que os dirigia ao longo das barbatanas, mas absolutamente não se ligavam ao ser vivo, que, segundo a arquitetura daqueles fanfreluches se aproximava ou se afastava muito da sua, ali se sentia apertado ou à solta.
     Mas, depois da partida de Odette, Swann sorria, recordando ter ela dito como o tempo custaria a passar até que ele lhe permitisse nova visita; lembrava o ar inquieto e tímido com que lhe pedira para que não demorasse muito a chamá-la e os olhares que então lhe dirigira numa temerosa súplica, e que a tornavam deveras comovedora sob o ramo de amores-perfeitos artificiais que tinha na frente do seu chapelão de palha preso com fitas de veludo negro. “E você”, dissera-lhe Odette “não irá um dia lá em casa tomar chá comigo?”. Ele alegara trabalhos em andamento, um ensaio — na verdade abandonado há anos — sobre Vermeer de Delft. [1] “Bem compreendo que, insignificante como sou, nada possa fazer junto dos grandes sábios como vocês”, retrucara ela. “Seria como a rã diante do areópago.[2] E no entanto gostaria tanto de instruir-me, de saber, de ser iniciada! Como não deve ser divertido procurar edições antigas, meter o nariz em papéis velhos”, acrescentara com esse ar de suficiência que adota uma dama elegante ao afirmar o prazer que sente em entregar-se sem receio a um trabalho sórdido, como por exemplo cozinhar “pondo as mãos na massa”. “Você vai rir de mim, mas esse pintor que não o deixa visitar-me (queria referir-se a Vermeer), eu nunca ouvi falar nele; ainda vive? Podem ver-se obras suas em Paris? Pois eu gostaria de ter uma ideia das coisas de que você gosta, adivinhar alguma coisa do que encerra essa fronte que tanto trabalha, essa cabeça que se vê que está sempre refletindo, e assim eu poderia dizer-me: Ah! É nisto que ele está pensando. Que sonho!, estar ligada aos seus trabalhos!” Ele alegara o seu medo das amizades novas, a que chamou, por galanteria, o medo de uma paixão infeliz. “Tem medo de uma afeição? Que engraçado! E eu que não procuro senão isso que daria a vida para encontrar alguma!”, dissera ela numa voz tão natural, tão sincera que até o comoveu.“É que com certeza sofreu por alguma mulher. E acha que as outras são iguais a ela. Essa mulher não soube compreendê-lo: você é uma criatura tão diferente! Foi o que primeiro me agradou em você; bem vi que não era como todo mundo.” “Mas você também”, dissera-lhe Swann, “bem sei o que são as mulheres, deve ter uma porção de ocupações e com certeza não dispõe de muito tempo.” “Eu? Eu nunca tenho nada que fazer! Sempre estou livre, e para você o estarei sempre. A qualquer hora do dia ou da noite em que lhe seja mais cômodo ver-me, mande chamar-me que virei com alegria. Sim? Mas sabe o que seria bom mesmo? Era apresentá-lo à senhora Verdurin, aonde vou todas as noites. Imagine se nos encontrássemos lá e eu pudesse imaginar que você tinha ido um pouco por causa de mim.”
     E sem dúvida, recordando assim as suas conversas, pensando nela quando estava sozinho, apenas fazia mover-se a sua imagem, entre muitas outras imagens de mulheres, nos seus devaneios romanescos; mas se, graças a uma circunstância qualquer (ou talvez sem ela, pois a circunstância que se apresenta ao declarar-se um estado até então latente pode não tê-lo influenciado em coisa alguma), a imagem de Odette de Crécy chegava a absorver-lhe todos os sonhos, se estes já não podiam separar-se da sua recordação, então não teria mais nenhuma importância a imperfeição do seu corpo, nem que fosse, mais ou menos como qualquer outro corpo, do gosto de Swann, pois, tornando-se o corpo daquela a quem amava, seria desde então o único capaz de lhe causar alegrias e tormentos.
     Meu avô justamente conhecera, coisa que não se poderia dizer de nenhum de seus amigos atuais, a família desses Verdurin. Mas perdera todo contato com aquele a quem chamava “o jovem Verdurin” e que considerava, generalizando um pouco, como decaído entre os boêmios e a gentalha, embora conservasse muitos milhões.[3] Um dia recebeu uma carta em que Swann pedia uma apresentação para os Verdurin. “Alerta! Alerta”, exclamara meu avô. “Isso não me espanta, era mesmo por aí que Swann devia acabar. Bonito meio! Mas não posso fazer o que me pede porque não conheço mais esse cavalheiro. E depois, deve andar aí algum rabo de saia, e eu não me meto nessas coisas. Ah!, vai ser divertido se Swann se engraçar com os Verdurin!”
    E ante a resposta negativa de meu avô, foi a própria Odette quem levou Swann à casa dos Verdurin.
    No dia em que Swann lhes foi apresentado, tinham os Verdurin à mesa o dr. Cottard e senhora, o jovem pianista e sua tia, e o seu pintor favorito de então, aos quais posteriormente vieram juntar-se alguns fiéis.[4]
     O dr. Cottard nunca sabia ao certo em que tom devia responder a alguém, e se o seu interlocutor estava gracejando ou falando sério. E por causa das dúvidas, acrescentava a todas as suas expressões faciais a oferta de um condicional e provisório sorriso, cuja expectante agudeza o absolveria do reproche de ingenuidade, se a frase que lhe diziam fosse de fato chistosa. Mas, como tinha de enfrentar a hipótese contrária, não deixava que o sorriso se afirmasse nitidamente, de modo que em seu rosto se via flutuar perpetuamente uma incerteza, onde se lia a pergunta que ele não ousava formular: “O senhor está dizendo isso a sério?”. Da mesma forma que nos salões, tampouco estava seguro de como deveria comportar-se na rua, e na vida em geral, e opunha assim aos passantes, aos carros, aos acontecimentos, um malicioso sorriso que tirava de antemão à sua atitude qualquer pecha de impropriedade, pois assim provava, se não convinha ao caso, que ele bem o sabia e só procedera daquele modo por troça.
     No entanto, em todos os casos em que lhe parecesse cabível uma pergunta franca, não deixava o doutor de esforçar-se por restringir o campo de suas dúvidas e completar sua instrução.
     Assim, seguindo o conselho que a previdente mãe lhe dera quando ele saiu de sua terra natal, nunca deixava passar uma locução ou nome próprio que lhe fossem desconhecidos sem procurar documentar-se na matéria.
     Quanto às locuções, jamais se saciava de indagar, pois, atribuindo-lhes às vezes um sentido mais preciso do que elas têm, desejaria saber o que significavam exatamente aquelas que ouvia mais a miúdo: a beleza do diabo, sangue azul, uma vida de cachorro, o quarto de hora de Rabelais,[5] ser o árbitro da elegância, dar carta branca, estar entre a faca e a parede etc., e em que determinados casos poderia por sua vez empregá-las na conversação. Na falta delas, encaixava os trocadilhos que aprendera. Quanto aos nomes novos que pronunciavam diante dele, contentava-se em repeti-los num tom interrogativo, que achava suficiente para merecer explicações sem que parecesse pedi-las.
     Como carecia completamente do senso crítico que julgava aplicar a tudo, esse refinamento da polidez que consiste em afirmar a uma pessoa a quem prestamos um favor que os favorecidos somos nós, mas sem esperar que nos creia, era trabalho perdido com o doutor, pois tomava tudo ao pé da letra. Apesar da cegueira que por ele tinha a sra. Verdurin, acabou por agastar-se, embora continuando a achá-lo muito inteligente, de que, todas as vezes em que o convidava a assistir, de uma frisa, a uma representação de Sara Bernhardt, e lhe dizia, para maior gentileza: “Agradeço-lhe muito por ter vindo, doutor, tanto mais que já deve ter visto muitas vezes a Sara Bernhardt, e depois talvez estejamos demasiado perto do palco”, o dr. Cottard, que havia entrado no camarote com um sorriso que esperava, para se definir ou desaparecer, que alguma voz autorizada o informasse do valor do espetáculo, assim lhe respondesse: “Com efeito, estamos muito perto, e na verdade a gente já começa a enfastiar-se de Sara Bernhardt. Mas a senhora expressou o desejo de que eu viesse. Para mim os seus desejos são ordens. Sinto-me muito feliz em prestar-lhe esse pequeno serviço. Que não faria a gente para lhe ser agradável, tratando-se de uma pessoa tão bondosa como a senhora?”. E acrescentava: “Sara Bernhardt é mesmo a Voz de Ouro, não? Também tenho lido que, quando representa, o teatro vem abaixo. Não é esquisita essa expressão?”, e ficava aguardando um comentário que não vinha.

— Sabes? — dissera a sra. Verdurin ao marido. — Creio que fazemos mal em depreciar, por modéstia, os presentes que damos ao doutor. É um sábio que vive fora do mundo prático, sem conhecer o valor das coisas, e julga-as pelo que lhe dizemos. 
— Eu não me animava a dizer-te, mas já o tinha notado — respondeu o sr. Verdurin. E no seguinte Ano-Novo, em vez de mandar ao dr. Cottard um rubi de três mil francos, dizendo-lhe que pouco valia, o sr. Verdurin comprou por trezentos francos uma imitação, dando a entender que dificilmente poderia encontrar-se outra igual. 

     Quando a sra. Verdurin anunciou que naquela noite apareceria o sr. Swann: “Swann?”, exclamou o doutor num tom que a surpresa tornava brutal, pois a mínima novidade sempre apanhava mais desprevenido do que a ninguém aquele homem que se julgava perpetuamente preparado para tudo. E ao ver que não lhe respondiam: “Swann? Mas quem é Swann?”, bradou no auge de uma ansiedade que se extinguiu de súbito depois que lhe disse a sra. Verdurin: “Ora, é esse amigo de que Odette nos tinha falado. “Ah!, está bem, está bem”, respondeu o doutor, já tranquilo. Quanto ao pintor, alegrava-se com a apresentação de Swann, porque o supunha enamorado de Odette e gostava de favorecer ligações. “Nada me diverte tanto como fazer casamentos”, segredou ele ao ouvido do dr. Cottard, “já consegui muitos, até entre mulheres!”.
     Ao dizer aos Verdurin que Swann era muito smart, Odette fizera-os temer que fosse um “maçante”. Causou-lhes, pelo contrário, excelente impressão, uma de cujas causas indiretas era, sem que o soubessem, o hábito que tinha ele das casas elegantes. Pois Swann tinha com efeito, sobre os homens que nunca frequentaram a alta sociedade, mesmo os mais inteligentes, uma das superioridades dos que já viveram um pouco em tal meio e que consiste em não mais transfigurá-lo pelo desejo ou pelo horror que inspira à imaginação e considerá-lo sem nenhuma importância. A amabilidade destes, isenta de qualquer esnobismo e do receio de parecerem demasiado amáveis, tornando-se independente, tem essa facilidade, essa graça de movimentos daqueles cujos membros flexíveis executam exatamente o que eles desejam, sem participação indiscreta e desajeitada do resto do corpo. A simples ginástica elementar do homem do mundo que estende a mão amavelmente ao jovem desconhecido que lhe apresentam e se inclina com reserva ante o embaixador a quem é apresentado acabara por infiltrar-se, sem que ele próprio o notasse, em todas as atitudes sociais de Swann que, para com gente de um meio inferior ao seu, como os Verdurin e seus amigos, deu instintivamente mostras de uma solicitude e atenções de que um “maçante”, segundo eles, certamente se absteria. Só teve um momento de frieza com o dr. Cottard: ao vê-lo piscar-lhe o olho e sorrir-lhe com um ar ambíguo antes de se falarem (mímica que Cottard chamava “deixar que corra”), julgou Swann que o doutor sem dúvida o conhecia por se terem encontrado ambos nalgum lugar alegre, embora os frequentasse muito raramente, pois nunca fora dado à vida boêmia. Achando a alusão de mau gosto, principalmente em presença de Odette, que poderia fazer mau juízo a seu respeito, ele assumiu um ar glacial. Mas quando soube que uma dama que se achava a seu lado era a sra. Cottard, considerou que um marido tão jovem não procuraria aludir, diante da esposa, a divertimentos daquele gênero; e cessou de emprestar ao ar conivente do doutor o significado que temia. O pintor logo convidou Swann a visitar com Odette o seu ateliê; Swann achou-o muito gentil. “Talvez ele o favoreça mais que a mim”, disse a sra. Verdurin num tom de fingido ressentimento “e lhe mostre o retrato de Cottard (ela o encomendara ao pintor). Não se descuide, senhor Biche”,[6] recomendou ao pintor, a quem, por um gracejo consagrado, costumava chamar de senhor, “do belo olhar, desse não sei quê de fino e divertido que há na expressão daqueles olhos. O que quero ter, antes de tudo, é o seu sorriso, o que lhe pedi foi o retrato do seu sorriso.” E, como a frase lhe parecesse notável, repetiu-a mais alto, para estar certa de que vários convidados a ouviriam, e até fez primeiro aproximarem-se alguns, sob um pretexto qualquer. Swann manifestou o desejo de ser apresentado a todos, até a um velho amigo dos Verdurin, Saniette, cuja timidez, simplicidade e bom coração o tinham feito perder em toda parte a consideração que lhe valera a sua ciência de arquivista, a sua grande fortuna e a distinta família de que provinha. Ao falar, saíam-lhe as palavras num balbucio verdadeiramente delicioso, pois se via que isso denotava menos um defeito da língua que uma qualidade da alma, como que um resto de inocência da primeira infância, que ele jamais perdera. Todas as consoantes que não podia pronunciar correspondiam a outras tantas durezas de que era incapaz na vida. Quando Swann pediu para ser apresentado ao sr. Saniette, deu à sra. Verdurin a impressão de que estava invertendo os papéis (tanto assim que disse, insistindo na diferença: “Senhor Swann, quer ter a bondade de me permitir que lhe apresente o nosso amigo Saniette?”), mas despertou em Saniette uma fervorosa simpatia que aliás os Verdurin nunca revelaram a Swann, pois Saniette lhes aborrecia um pouco e não faziam questão de lhe conseguir amigos. Mas, em compensação, Swann lhes tocou na corda sensível quando em seguida pediu que o apresentassem à tia do pianista. Vestida de preto, como sempre, pois achava que de preto sempre se está bem e é o que há de mais distinto, tinha o rosto excessivamente vermelho, como lhe acontecia sempre que acabava de comer. Inclinou-se diante de Swann com respeito, mas se reergueu com majestade. Como não tinha instrução alguma e receava cometer erros de linguagem, pronunciava expressamente as frases de um modo confuso, pensando que assim, se soltasse alguma silabada, ficaria a coisa esfumada em tal vagueza que não poderiam distingui-la exatamente, de sorte que a sua conversação não era mais que um indistinto ciciar de que emergiam de vez em quando os raros vocábulos de que se sentia segura. Swann julgou que não haveria mal em zombar um pouco a respeito dela com o sr. Verdurin, o qual, pelo contrário, se ressentiu com isso.

— Mas é uma excelente mulher — retrucou. — Admito que não seja estonteante; mas garanto-lhe que é agradabilíssima numa palestra a sós. 
— Não duvido — apressou-se em conceder Swann. — Eu queria dizer que ela não me parecia “eminente” — acrescentou, sublinhando o adjetivo —, e afinal de contas é antes um cumprimento! 
— Pois olhe! — disse o sr. Verdurin —, vou deixá-lo espantado, mas o fato é que ela escreve deliciosamente. Nunca ouviu o seu sobrinho? Admirável, não é, doutor? Quer que eu lhe peça para tocar alguma coisa, senhor Swann? 
— Será uma felicidade… — começava a responder Swann, quando o doutor o interrompeu, com ar zombeteiro. Com efeito, tendo sabido que era antiquado empregar a ênfase e formas solenes na conversação, logo que ouvia uma palavra grave dita seriamente como acabava de acontecer com a palavra “felicidade”, julgava que aquele que a pronunciava o fazia por pedantismo. E se essa palavra figurava casualmente no que ele denominava um velho clichê, por mais corrente que a palavra fosse, supunha o doutor que a frase iniciada era ridícula e rematava-a ironicamente com o lugar-comum, como se acusasse o interlocutor de haver pretendido empregá-lo, quando o outro nem pensava em tal. 
— Uma felicidade para a pátria! — exclamou ele maliciosamente, erguendo os braços com ênfase.

     O sr. Verdurin não pôde deixar de rir.

— De que estão rindo todos esses homens aí? Parece que nesse cantinho não há melancolia! — exclamou a sra. Verdurin. — Pensam que eu me divirto aqui de castigo? — acrescentou com ares de menina, num tom despeitado.

     Estava sentada numa alta cadeira sueca de pinho envernizado, presente de um violinista daquela nacionalidade, e que ela conservava, embora parecesse um escabelo e não combinasse absolutamente com os seus belos móveis antigos, mas a sra. Verdurin queria conservar em evidência as coisas que os fiéis costumavam presentear-lhe de vez em quando, a fim de que os doadores tivessem o prazer de as reconhecer quando a visitavam. Assim, tratava de os persuadir que se limitassem às flores e aos bombons, que ao menos se acabam; mas não o conseguia, e em sua casa havia uma coleção de aquecedores, almofadões, pêndulas, biombos, barômetros, jarros orientais, num acúmulo de repetições e numa incongruência de presentes de festas.
     Daquele elevado posto, participava animadamente da conversação dos fiéis e divertia-se com suas “farsas”, mas, desde o acidente da mandíbula, havia renunciado ao trabalho de dar gargalhadas de verdade e, em vez disso, entregava-se a uma mímica convencional que significava, sem fadiga nem riscos, que ela ria a mais não poder. À menor piada que largava um habitué contra um maçante ou contra um antigo habitué relegado para o campo dos maçantes, e para maior desespero do sr. Verdurin, que por muito tempo tivera a pretensão de ser tão amável como a esposa, mas que ria francamente e logo perdia o fôlego e fora distanciado e vencido por aquela artimanha de uma incessante e fictícia hilaridade — ela soltava um gritinho, fechava inteiramente os olhos de pássaro que uma catarata começava a velar, e bruscamente, como se não tivesse mais que o tempo justo para se furtar a um espetáculo indecente ou evitar um ataque mortal, mergulhando o rosto nas mãos que o ocultavam de todo, parecia esforçar-se em reprimir e aniquilar um riso, que, se se entregasse a ele, a faria desmaiar. Assim, atordoada com a jovialidade dos fiéis, embriagada de camaradagem, de maledicência e de assentimento, a sra. Verdurin, do alto do seu poleiro, semelhante a um pássaro a que houvessem ensopado o biscoito em vinho quente, soluçava de amabilidade.

continua na página 141...
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Leia também:

Volume 1
No Caminho de Swann (III - um amor de swann, Odette de Crécy - b)
Volume 2
Volume 3
Volume 4
Volume 5
Volume 6
Volume 7
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[1] O ensaio do diletante Swann sobre Vermeer permanecerá abandonado. [n. e.]
[2] Odette pretende citar o título de uma fábula de La Fontaine, mas se confunde e acaba comprovando, sem querer, sua pouca sapiência. [n. e.]
[3] A estranha imagem do sr. Verdurin como boêmio (e ainda literato) só será confirmada muitas centenas de páginas depois, no início do Tempo redescoberto. [n. e.]
[4] A presença do pintor será valorizada no segundo volume, quando o herói intuirá sua ligação com Odette. [n. e.]
[5] A expressão “o quarto de hora de Rabelais” designa precisamente dificuldades financeiras, numa referência ao episódio em que Rabelais, sem um tostão em Roma, faz-se prender e é levado até Paris, à custa do Estado, esperando ser libertado pelo rei Francisco I. [n. e.]
[6] Apelido do pintor Elstir no salão Verdurin. O herói o encontrará durante sua primeira estada na praia de Balbec, narrada no segundo volume da obra. [n. e.]

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