em busca do tempo perdido
volume I
No Caminho de Swann
ao senhor gaston calmette
como um testemunho de profundo e afetuoso reconhecimento
— marcel proust
combray
II(r) ao senhor gaston calmette
como um testemunho de profundo e afetuoso reconhecimento
— marcel proust
combray
continuando...
Verificando, observando a forma de sua agulha, o deslocamento de suas linhas, o ensolado de sua superfície, eu sentia que não ia até o fundo de minha impressão, que alguma coisa havia atrás daquele movimento, atrás daquela claridade, alguma coisa que elas pareciam conter e ocultar ao mesmo tempo.
Tão afastadas se encontravam as torres e tão pouco me parecia aproximar-nos delas
que fiquei atônito quando paramos, instantes depois, diante da igreja de Martinville.
Ignorava o motivo do prazer que tivera ao avistá-las no horizonte, e a obrigação de
procurar desvendá-lo me parecia muito penosa; tinha vontade de guardar de reserva na
cabeça aquelas linhas que se moviam ao sol e não mais pensar nelas por enquanto. E é
provável que, se o fizesse, as duas torres teriam ido reunir-se para sempre a tantas
árvores, telhados, perfumes, sons, que eu diferenciara dos outros por causa daquele
obscuro prazer que me haviam proporcionado e que eu nunca aprofundara. Desci para
conversar com meus pais enquanto esperávamos pelo doutor. Depois prosseguimos,
retornei a meu lugar na boleia, voltei a cabeça para ver de novo as torres, que um pouco
mais tarde avistei pela última vez na volta de um caminho. Como o cocheiro não parecia
disposto a conversar e mal respondera a minhas perguntas, vi-me forçado, na falta de
outra companhia, a recorrer à minha, tentando relembrar minhas torres. E logo, como
uma casca, romperam-se suas linhas e superfícies, mostrando-me um pouco do que ali
se achava oculto, e tive um pensamento que não existia para mim um momento antes,
que se formulou em palavras em minha cabeça, e isso de tal forma aumentou o prazer
que havia pouco me dera a vista das torres que, tomado de uma espécie de embriaguez,
não pude mais pensar em outra coisa. Naquele momento, e como estivéssemos já longe
de Martinville, voltei a cabeça e avistei-as de novo, completamente negras desta vez, pois
o sol já se escondera. De quando em quando as voltas da estrada mas ocultavam, depois
elas se mostraram uma última vez e por fim não mais pude vê-las.
Sem confessar-me que aquilo que estava oculto atrás das torres de Martinville devia
ser algo assim como uma bela frase, pois que aparecera sob a forma de palavras que me
causavam prazer, pedi lápis e papel ao doutor e, para aliviar a consciência e obedecer a
meu entusiasmo, compus, apesar dos solavancos do carro, o pequeno trecho seguinte
que encontrei depois e no qual apenas fiz algumas ligeiras modificações:
“Sozinhas, erguendo-se do nível da planície e como perdidas em campo raso,
subiam para o céu as duas torres de Martinville. Em breve vimos três: vindo colocar-se
a sua frente em uma volta atrevida, reunira-se a elas uma torre retardatária, a de
Vieuxvicq. Os minutos passavam, íamos depressa e no entanto as três torres estavam
sempre ao longe, a nossa frente, como três pássaros pousados na planície, imóveis, e
que a gente divisa ao sol. Depois a torre de Vieuxvicq se afastou, marcou suas
distâncias, e as torres de Martinville ficaram sós, alumiadas pela luz do poente que,
mesmo àquela distância, eu via brincar e sorrir em suas telhas. Demoráramos tanto em
aproximar-nos das torres que eu ainda pensava no tempo que nos faltava para atingi-las
quando de repente o carro, depois de dar uma volta, nos depôs a seus pés; e tão
rudemente se haviam lançado elas de encontro ao carro que mal se teve tempo de parar
para não esbarrarmos no pórtico. Prosseguimos viagem; fazia pouco que deixáramos
Martinville e que a aldeia desaparecera, depois de nos ter acompanhado alguns segundos
e ainda suas torres e a de Vieuxvicq, ficando sozinhas no horizonte a ver-nos fugir,
agitavam em sinal de despedida seus cimos ensolarados. Às vezes uma se afastava para
que as outras pudessem avistar-nos um instante ainda; mas a estrada mudou de direção,
elas voltearam na luz como três gonzos de ouro e desapareceram de minha vista. Mas
um pouco mais tarde, já perto de Combray e depois que o sol se sumira, avistamo-las
uma última vez, de muito longe, não parecendo mais que três flores pintadas sobre o
céu, acima da linha baixa dos campos. Faziam-me também pensar nas três meninas de
uma legenda, abandonadas em uma solidão onde já tombava a treva; e enquanto nos
afastávamos a galope, via-as timidamente procurar o caminho e, depois de algumas
indecisas oscilações de suas nobres silhuetas, apertarem-se umas contra as outras,
deslizarem uma atrás da outra, formarem sobre o céu ainda róseo nada mais que uma
única forma negra, encantadora e resignada, e desaparecerem dentro da noite.”
Jamais tornei a pensar em tal página, mas, naquele instante, ao terminar de escrevê-la, na ponta do assento onde o cocheiro do doutor costumava colocar um cesto com as
aves que comprara no mercado de Martinville, achei-me tão feliz, sentia que ela me havia
desembaraçado tão perfeitamente daquelas torres e do que ocultavam atrás de si, que,
como se fosse eu próprio uma galinha e acabasse de pôr um ovo, pus-me a cantar a
plenos pulmões.[1]
Durante todo o dia, naqueles passeios, eu pudera pensar que prazer não haveria em
ser amigo da duquesa de Guermantes, pescar truta, passear de barco no Vivonne, e,
ávido de felicidade, não pedir em tais momentos nada mais à vida senão que se
compusesse sempre de uma série de tardes felizes. Mas quando no caminho de volta eu
via à esquerda uma granja bastante afastada de outras duas que, pelo contrário, estavam
muito juntas, e de onde, para entrar em Combray, era só tomar uma alameda de
carvalhos, que tinha a um lado um campo dividido em pequenos cercados, e plantado, a
intervalos iguais, de macieiras que ali projetavam, ao sol poente, o desenho japonês de
suas sombras, subitamente meu coração começava a bater, eu sabia que dentro de meia
hora estaríamos em casa e, como era regra nos dias em que íamos para o lado de
Guermantes e o jantar era servido mais tarde, mandariam deitar-me logo depois de
tomar sopa, de sorte que minha mãe, retida à mesa como se houvesse convidados, não
subiria a dar-me boa-noite em meu leito. A zona de tristeza em que eu acabava de
penetrar era tão diversa da zona em que um momento antes me lançava alegremente
quanto em alguns céus se mostra uma faixa cor-de-rosa separada, como por uma linha,
de uma faixa verde ou de uma faixa negra. Vê-se um pássaro voando no rosa, já vai
chegando a seu limite, quase que toca o negro, atinge-o finalmente. Os desejos que ainda
há pouco me assediavam, de ir a Guermantes, de viajar, de ser feliz, eram-me agora tão
estranhos que sua realização não me causaria prazer algum. Com que gosto eu não daria
tudo isso para poder chorar toda a noite nos braços de mamãe! Estremecia, não tirava os
olhos angustiados do rosto de minha mãe, que naquela noite não apareceria em meu
quarto, onde já me via em pensamento, e tinha vontade de morrer. E aquilo duraria até a
manhã seguinte, quando os raios de sol apoiassem suas barras, como o jardineiro sua
escada, contra o muro coberto de capuchinhas que subia até minha janela, e eu saltasse
do leito para descer logo ao jardim, sem já me lembrar de que a noite voltaria a trazer
consigo a hora de separar-me de minha mãe. E, assim, foi pelo lado de Guermantes que
aprendi a distinguir esses estados que em mim se sucedem, durante certos períodos, e
que dividem entre si cada um de meus dias, chegando cada qual para escorraçar o outro,
com a pontualidade da febre; contíguos, mas tão alheios um ao outro, tão desprovidos
de quaisquer meios de comunicação entre si, que, quando um deles domina, não posso
mais compreender o que desejei, temi ou fiz no outro estado.
Assim o lado de Méséglise e o lado de Guermantes se acham para mim ligados a
muitos dos pequenos acontecimentos dessa vida que é, de todas as diversas vidas que
paralelamente vivemos, a mais cheia de peripécias, a mais rica em episódios, quero dizer
a vida intelectual. Está visto que vai progredindo em nós insensivelmente e as verdades
que lhe mudaram o sentido e o aspecto, que nos abriram novos caminhos, desde muito
que vínhamos preparando sua descoberta; mas isso sem o sabermos; e elas só datam
para nós do dia, do minuto em que se tornaram visíveis. As flores que então brincavam
na relva, a água que passava ao sol, toda a paisagem que cercou seu aparecimento
continua a acompanhar a lembrança delas com sua face inconsciente ou distraída; e, por
certo, quando eram longamente contemplados por aquele humilde passante, aquele
menino pensativo — como é contemplado um rei por um memorialista perdido na
multidão —, aquele recanto da natureza, aquele trecho de jardim jamais poderiam pensar
que graças a ele é que seriam chamados a sobreviver em suas particularidades mais
efêmeras; e no entanto aquele perfume de pilriteiro que vagueia ao longo da sebe onde
em breve o substituirão as roseiras-bravas, um rumor de passos sem eco na areia de
uma alameda, uma bolha formada contra uma planta aquática pela água do rio e que logo
rebenta, minha imaginação os carregou e os fez atravessar tantos anos sucessivos, ao
passo que em torno desapareceram os caminhos e estão mortos aqueles que os pisaram,
e a lembrança daqueles que os pisaram. Às vezes, aquele trecho de paisagem assim
trazido até o dia de hoje se destaca tão isolado de tudo que flutua incerto em meu
pensamento como uma Delos florida, sem que eu possa dizer de que país, de que tempo
— talvez simplesmente de que sonho — me vem. Mas é principalmente como se
pensasse em jazidas perfumadas de meu solo mental, como no terreno firme a que ainda
me apoio, que devo eu pensar no lado de Méséglise e no lado de Guermantes. E
exatamente porque eu acreditava nas coisas, nos seres, quando percorria aqueles
caminhos, é que as coisas e os seres que eles me deram a conhecer são os únicos que
ainda tomo a sério e ainda me proporcionam alegria. Ou porque a fé que cria se haja
estancado em mim, ou porque a realidade só se forme na memória, as flores que hoje
me mostram pela primeira vez não me parecem flores de verdade. O lado de Méséglise,
com seus lilases, seus espinheiros, suas centáureas, suas papoulas, suas macieiras, o lado
de Guermantes, com seu rio de girinos, suas ninfeias e seus botões-de-ouro,
constituíram por todo o sempre para mim o aspecto das terras onde eu gostaria de viver
e onde exijo antes de tudo que se possa pescar, andar de bote, olhar ruínas de
fortificações góticas e encontrar no meio dos trigais, tal como estava Santo André dos
Campos, uma igreja monumental, rústica e dourada como uma meda; e as centáureas, os
pilriteiros, as macieiras que me acontece ainda encontrar no campo quando viajo, por
estarem situados na mesma profundidade, ao nível de meu passado, se comunicam
imediatamente com meu coração. E no entanto, como há alguma coisa de individual nos
lugares, quando me vem o desejo de rever o lado de Guermantes, não o satisfariam
levando-me à margem de um rio onde houvesse ninfeias tão belas ou mais belas que as
do Vivonne, como ao voltar para casa — na hora em que despertava em mim essa
angústia que mais tarde emigra para o amor, e pode tornar-se para sempre inseparável
dele —, eu não desejaria que fosse dar-me boa-noite uma mãe mais bonita e inteligente
que a minha. Não; assim como, para que eu adormecesse feliz, com essa paz
imperturbável que nenhuma amante me pôde dar depois, porque temos dúvidas a
respeito delas até no momento em que nelas acreditamos, e nunca nos dão o coração
como minha mãe, em um beijo, dava-me o seu, inteiramente, sem reserva alguma, sem
sombra de intenção que não me fosse dirigida — o que me era preciso é que fosse ela
mesma quem inclinasse para mim aquele rosto onde havia, acima de um olho, qualquer
coisa que parecia um defeito e que eu amava como ao resto —, assim o que eu desejo
rever é o lado de Guermantes que conheci, com a granja separada das outras que estão
juntas, à entrada da alameda dos carvalhos; são aqueles prados onde, quando o sol os
torna espelhantes como um charco, se desenham as folhas das macieiras, é aquela
paisagem cuja individualidade me domina às vezes, de noite, em meus sonhos, com um
poder quase fantástico e que não mais encontro ao despertar. Sem dúvida, por terem
unido indissoluvelmente dentro de mim impressões diversas, só porque mas fizeram
experimentar ao mesmo tempo, o lado de Méséglise ou o lado de Guermantes me
expuseram, no futuro, a muitas decepções e até a enganos. Pois muitas vezes desejei
rever uma pessoa sem me dar conta de que era simplesmente porque ela me recordava
uma sebe de pilriteiros, e cheguei a crer e a fazer crer em um renascimento de afeição
quando não havia mais que um simples desejo de viagem. Mas também por isso mesmo,
e presentes, como estão, em minhas impressões atuais a que podem relacionar-se, lhes
dão fundamento e profundeza, uma dimensão que as outras não possuem. Acrescentam-lhes assim um encanto, uma significação que só existe para mim. Quando pelas noites de
verão o céu sonoro ruge como uma fera e todos se aborrecem com a tempestade, é ao
lado de Méséglise que devo esse costume de me quedar sozinho, em êxtase, respirando,
através do ruído da chuva, que tomba, o odor de invisíveis e persistentes lilases.
E assim ficava eu muitas vezes até de madrugada, pensando nos tempos de Combray, em
minhas tristes noites de insônia, e em tantos dias também, cuja imagem me fora mais
recentemente evocada pelo sabor — “o perfume”, como diriam em Combray — de uma
taça de chá e pela ligação estabelecida entre recordações minhas e certas coisas relativas a
um amor que tivera Swann antes de meu nascimento e que só vim a saber muitos anos
depois de deixar a cidade, e isto com essa precisão de detalhes mais fácil de obter às
vezes quanto à vida de pessoas mortas há séculos do que com referência a nossos
melhores amigos, e que parece impossível, como parecia impossível conversar de uma
cidade para outra — enquanto se ignora o modo como foi contornada essa
impossibilidade. Todas essas lembranças ajuntadas umas às outras não formavam mais
que uma massa, mas nem por isso deixava de perceber entre elas — entre as mais antigas
e as mais recentes, nascidas de um perfume, e também as que eram simplesmente
lembranças de uma outra pessoa que as comunicara a mim —, já não digo fendas,
verdadeiras falhas, mas pelo menos essas betas, essas mesclas de coloridos que em certas
rochas, em certos mármores, revelam diferenças de origem, de idade, de “formação”.
É verdade que, quando se aproximava o dia, já fazia muito que se dissipara a breve
incerteza do despertar. Sabia em que quarto efetivamente me achava, tinha-o
reconstruído em torno de mim na escuridão, e — ou orientando-me só pela memória,
ou valendo-me, como indicação, de uma flébil claridade entrevista, à qual aplicava eu as
cortinas da janela, tinha-o inteiramente reconstruído e mobiliado, como um arquiteto e
um tapeceiro que respeitam o vão primitivo das janelas e portas, tinha recolocado os
espelhos e reconduzido a cômoda para seu lugar habitual. Mas apenas o dia — e não
mais o reflexo de uma última brasa em uma sanefa de cobre que eu tomara por ele —
traçava na escuridão, e como que a giz, a primeira raia branca e retificativa, eis que a
janela com suas cortinas deixava o quadro da porta onde a colocara por engano, ao
passo que, para lhe ceder lugar, a escrivaninha, que minha memória ali colocara
desazadamente, escapava-se a toda a velocidade, levando a lareira por diante e afastando a
parede do corredor; um pequeno pátio reinava no lugar onde, um momento antes, ainda
se estendia o gabinete de toalete, e a casa que eu reconstruíra nas trevas fora reunir-se às
casas entrevistas no torvelinho do despertar, posta em fuga por aquele pálido signo que
traçara acima das cortinas o dedo erguido do dia.
continua na página 125...
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Leia também:
Volume 1
No Caminho de Swann (II - Combray, Verificando, observando a forma de sua agulha - r)
No Caminho de Swann (III - um amor de swann, Para fazer parte - a)
Volume 2
Volume 3
Volume 4
Volume 5
Volume 6
Volume 7
_______________
[1] A página sobre os campanários será resgatada no segundo volume do livro, para
ser mostrada a um amigo influente do pai do herói e, depois, no sexto volume, quando
o herói conseguirá enfim publicá-la no jornal Le Figaro. [n. e.]
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