quarta-feira, 18 de dezembro de 2024

Marcel Proust - No Caminho de Swann (II - Combray, Verificando, observando a forma de sua agulha - r)

em busca do tempo perdido


volume I
No Caminho de Swann


ao senhor gaston calmette
como um testemunho de profundo e afetuoso reconhecimento
— marcel proust



combray


II(r) 

continuando...

     Verificando, observando a forma de sua agulha, o deslocamento de suas linhas, o ensolado de sua superfície, eu sentia que não ia até o fundo de minha impressão, que alguma coisa havia atrás daquele movimento, atrás daquela claridade, alguma coisa que elas pareciam conter e ocultar ao mesmo tempo.
     Tão afastadas se encontravam as torres e tão pouco me parecia aproximar-nos delas que fiquei atônito quando paramos, instantes depois, diante da igreja de Martinville. Ignorava o motivo do prazer que tivera ao avistá-las no horizonte, e a obrigação de procurar desvendá-lo me parecia muito penosa; tinha vontade de guardar de reserva na cabeça aquelas linhas que se moviam ao sol e não mais pensar nelas por enquanto. E é provável que, se o fizesse, as duas torres teriam ido reunir-se para sempre a tantas árvores, telhados, perfumes, sons, que eu diferenciara dos outros por causa daquele obscuro prazer que me haviam proporcionado e que eu nunca aprofundara. Desci para conversar com meus pais enquanto esperávamos pelo doutor. Depois prosseguimos, retornei a meu lugar na boleia, voltei a cabeça para ver de novo as torres, que um pouco mais tarde avistei pela última vez na volta de um caminho. Como o cocheiro não parecia disposto a conversar e mal respondera a minhas perguntas, vi-me forçado, na falta de outra companhia, a recorrer à minha, tentando relembrar minhas torres. E logo, como uma casca, romperam-se suas linhas e superfícies, mostrando-me um pouco do que ali se achava oculto, e tive um pensamento que não existia para mim um momento antes, que se formulou em palavras em minha cabeça, e isso de tal forma aumentou o prazer que havia pouco me dera a vista das torres que, tomado de uma espécie de embriaguez, não pude mais pensar em outra coisa. Naquele momento, e como estivéssemos já longe de Martinville, voltei a cabeça e avistei-as de novo, completamente negras desta vez, pois o sol já se escondera. De quando em quando as voltas da estrada mas ocultavam, depois elas se mostraram uma última vez e por fim não mais pude vê-las.
     Sem confessar-me que aquilo que estava oculto atrás das torres de Martinville devia ser algo assim como uma bela frase, pois que aparecera sob a forma de palavras que me causavam prazer, pedi lápis e papel ao doutor e, para aliviar a consciência e obedecer a meu entusiasmo, compus, apesar dos solavancos do carro, o pequeno trecho seguinte que encontrei depois e no qual apenas fiz algumas ligeiras modificações:

“Sozinhas, erguendo-se do nível da planície e como perdidas em campo raso, subiam para o céu as duas torres de Martinville. Em breve vimos três: vindo colocar-se a sua frente em uma volta atrevida, reunira-se a elas uma torre retardatária, a de Vieuxvicq. Os minutos passavam, íamos depressa e no entanto as três torres estavam sempre ao longe, a nossa frente, como três pássaros pousados na planície, imóveis, e que a gente divisa ao sol. Depois a torre de Vieuxvicq se afastou, marcou suas distâncias, e as torres de Martinville ficaram sós, alumiadas pela luz do poente que, mesmo àquela distância, eu via brincar e sorrir em suas telhas. Demoráramos tanto em aproximar-nos das torres que eu ainda pensava no tempo que nos faltava para atingi-las quando de repente o carro, depois de dar uma volta, nos depôs a seus pés; e tão rudemente se haviam lançado elas de encontro ao carro que mal se teve tempo de parar para não esbarrarmos no pórtico. Prosseguimos viagem; fazia pouco que deixáramos Martinville e que a aldeia desaparecera, depois de nos ter acompanhado alguns segundos e ainda suas torres e a de Vieuxvicq, ficando sozinhas no horizonte a ver-nos fugir, agitavam em sinal de despedida seus cimos ensolarados. Às vezes uma se afastava para que as outras pudessem avistar-nos um instante ainda; mas a estrada mudou de direção, elas voltearam na luz como três gonzos de ouro e desapareceram de minha vista. Mas um pouco mais tarde, já perto de Combray e depois que o sol se sumira, avistamo-las uma última vez, de muito longe, não parecendo mais que três flores pintadas sobre o céu, acima da linha baixa dos campos. Faziam-me também pensar nas três meninas de uma legenda, abandonadas em uma solidão onde já tombava a treva; e enquanto nos afastávamos a galope, via-as timidamente procurar o caminho e, depois de algumas indecisas oscilações de suas nobres silhuetas, apertarem-se umas contra as outras, deslizarem uma atrás da outra, formarem sobre o céu ainda róseo nada mais que uma única forma negra, encantadora e resignada, e desaparecerem dentro da noite.”

     Jamais tornei a pensar em tal página, mas, naquele instante, ao terminar de escrevê-la, na ponta do assento onde o cocheiro do doutor costumava colocar um cesto com as aves que comprara no mercado de Martinville, achei-me tão feliz, sentia que ela me havia desembaraçado tão perfeitamente daquelas torres e do que ocultavam atrás de si, que, como se fosse eu próprio uma galinha e acabasse de pôr um ovo, pus-me a cantar a plenos pulmões.[1]
     Durante todo o dia, naqueles passeios, eu pudera pensar que prazer não haveria em ser amigo da duquesa de Guermantes, pescar truta, passear de barco no Vivonne, e, ávido de felicidade, não pedir em tais momentos nada mais à vida senão que se compusesse sempre de uma série de tardes felizes. Mas quando no caminho de volta eu via à esquerda uma granja bastante afastada de outras duas que, pelo contrário, estavam muito juntas, e de onde, para entrar em Combray, era só tomar uma alameda de carvalhos, que tinha a um lado um campo dividido em pequenos cercados, e plantado, a intervalos iguais, de macieiras que ali projetavam, ao sol poente, o desenho japonês de suas sombras, subitamente meu coração começava a bater, eu sabia que dentro de meia hora estaríamos em casa e, como era regra nos dias em que íamos para o lado de Guermantes e o jantar era servido mais tarde, mandariam deitar-me logo depois de tomar sopa, de sorte que minha mãe, retida à mesa como se houvesse convidados, não subiria a dar-me boa-noite em meu leito. A zona de tristeza em que eu acabava de penetrar era tão diversa da zona em que um momento antes me lançava alegremente quanto em alguns céus se mostra uma faixa cor-de-rosa separada, como por uma linha, de uma faixa verde ou de uma faixa negra. Vê-se um pássaro voando no rosa, já vai chegando a seu limite, quase que toca o negro, atinge-o finalmente. Os desejos que ainda há pouco me assediavam, de ir a Guermantes, de viajar, de ser feliz, eram-me agora tão estranhos que sua realização não me causaria prazer algum. Com que gosto eu não daria tudo isso para poder chorar toda a noite nos braços de mamãe! Estremecia, não tirava os olhos angustiados do rosto de minha mãe, que naquela noite não apareceria em meu quarto, onde já me via em pensamento, e tinha vontade de morrer. E aquilo duraria até a manhã seguinte, quando os raios de sol apoiassem suas barras, como o jardineiro sua escada, contra o muro coberto de capuchinhas que subia até minha janela, e eu saltasse do leito para descer logo ao jardim, sem já me lembrar de que a noite voltaria a trazer consigo a hora de separar-me de minha mãe. E, assim, foi pelo lado de Guermantes que aprendi a distinguir esses estados que em mim se sucedem, durante certos períodos, e que dividem entre si cada um de meus dias, chegando cada qual para escorraçar o outro, com a pontualidade da febre; contíguos, mas tão alheios um ao outro, tão desprovidos de quaisquer meios de comunicação entre si, que, quando um deles domina, não posso mais compreender o que desejei, temi ou fiz no outro estado.
     Assim o lado de Méséglise e o lado de Guermantes se acham para mim ligados a muitos dos pequenos acontecimentos dessa vida que é, de todas as diversas vidas que paralelamente vivemos, a mais cheia de peripécias, a mais rica em episódios, quero dizer a vida intelectual. Está visto que vai progredindo em nós insensivelmente e as verdades que lhe mudaram o sentido e o aspecto, que nos abriram novos caminhos, desde muito que vínhamos preparando sua descoberta; mas isso sem o sabermos; e elas só datam para nós do dia, do minuto em que se tornaram visíveis. As flores que então brincavam na relva, a água que passava ao sol, toda a paisagem que cercou seu aparecimento continua a acompanhar a lembrança delas com sua face inconsciente ou distraída; e, por certo, quando eram longamente contemplados por aquele humilde passante, aquele menino pensativo — como é contemplado um rei por um memorialista perdido na multidão —, aquele recanto da natureza, aquele trecho de jardim jamais poderiam pensar que graças a ele é que seriam chamados a sobreviver em suas particularidades mais efêmeras; e no entanto aquele perfume de pilriteiro que vagueia ao longo da sebe onde em breve o substituirão as roseiras-bravas, um rumor de passos sem eco na areia de uma alameda, uma bolha formada contra uma planta aquática pela água do rio e que logo rebenta, minha imaginação os carregou e os fez atravessar tantos anos sucessivos, ao passo que em torno desapareceram os caminhos e estão mortos aqueles que os pisaram, e a lembrança daqueles que os pisaram. Às vezes, aquele trecho de paisagem assim trazido até o dia de hoje se destaca tão isolado de tudo que flutua incerto em meu pensamento como uma Delos florida, sem que eu possa dizer de que país, de que tempo — talvez simplesmente de que sonho — me vem. Mas é principalmente como se pensasse em jazidas perfumadas de meu solo mental, como no terreno firme a que ainda me apoio, que devo eu pensar no lado de Méséglise e no lado de Guermantes. E exatamente porque eu acreditava nas coisas, nos seres, quando percorria aqueles caminhos, é que as coisas e os seres que eles me deram a conhecer são os únicos que ainda tomo a sério e ainda me proporcionam alegria. Ou porque a fé que cria se haja estancado em mim, ou porque a realidade só se forme na memória, as flores que hoje me mostram pela primeira vez não me parecem flores de verdade. O lado de Méséglise, com seus lilases, seus espinheiros, suas centáureas, suas papoulas, suas macieiras, o lado de Guermantes, com seu rio de girinos, suas ninfeias e seus botões-de-ouro, constituíram por todo o sempre para mim o aspecto das terras onde eu gostaria de viver e onde exijo antes de tudo que se possa pescar, andar de bote, olhar ruínas de fortificações góticas e encontrar no meio dos trigais, tal como estava Santo André dos Campos, uma igreja monumental, rústica e dourada como uma meda; e as centáureas, os pilriteiros, as macieiras que me acontece ainda encontrar no campo quando viajo, por estarem situados na mesma profundidade, ao nível de meu passado, se comunicam imediatamente com meu coração. E no entanto, como há alguma coisa de individual nos lugares, quando me vem o desejo de rever o lado de Guermantes, não o satisfariam levando-me à margem de um rio onde houvesse ninfeias tão belas ou mais belas que as do Vivonne, como ao voltar para casa — na hora em que despertava em mim essa angústia que mais tarde emigra para o amor, e pode tornar-se para sempre inseparável dele —, eu não desejaria que fosse dar-me boa-noite uma mãe mais bonita e inteligente que a minha. Não; assim como, para que eu adormecesse feliz, com essa paz imperturbável que nenhuma amante me pôde dar depois, porque temos dúvidas a respeito delas até no momento em que nelas acreditamos, e nunca nos dão o coração como minha mãe, em um beijo, dava-me o seu, inteiramente, sem reserva alguma, sem sombra de intenção que não me fosse dirigida — o que me era preciso é que fosse ela mesma quem inclinasse para mim aquele rosto onde havia, acima de um olho, qualquer coisa que parecia um defeito e que eu amava como ao resto —, assim o que eu desejo rever é o lado de Guermantes que conheci, com a granja separada das outras que estão juntas, à entrada da alameda dos carvalhos; são aqueles prados onde, quando o sol os torna espelhantes como um charco, se desenham as folhas das macieiras, é aquela paisagem cuja individualidade me domina às vezes, de noite, em meus sonhos, com um poder quase fantástico e que não mais encontro ao despertar. Sem dúvida, por terem unido indissoluvelmente dentro de mim impressões diversas, só porque mas fizeram experimentar ao mesmo tempo, o lado de Méséglise ou o lado de Guermantes me expuseram, no futuro, a muitas decepções e até a enganos. Pois muitas vezes desejei rever uma pessoa sem me dar conta de que era simplesmente porque ela me recordava uma sebe de pilriteiros, e cheguei a crer e a fazer crer em um renascimento de afeição quando não havia mais que um simples desejo de viagem. Mas também por isso mesmo, e presentes, como estão, em minhas impressões atuais a que podem relacionar-se, lhes dão fundamento e profundeza, uma dimensão que as outras não possuem. Acrescentam-lhes assim um encanto, uma significação que só existe para mim. Quando pelas noites de verão o céu sonoro ruge como uma fera e todos se aborrecem com a tempestade, é ao lado de Méséglise que devo esse costume de me quedar sozinho, em êxtase, respirando, através do ruído da chuva, que tomba, o odor de invisíveis e persistentes lilases.
     E assim ficava eu muitas vezes até de madrugada, pensando nos tempos de Combray, em minhas tristes noites de insônia, e em tantos dias também, cuja imagem me fora mais recentemente evocada pelo sabor — “o perfume”, como diriam em Combray — de uma taça de chá e pela ligação estabelecida entre recordações minhas e certas coisas relativas a um amor que tivera Swann antes de meu nascimento e que só vim a saber muitos anos depois de deixar a cidade, e isto com essa precisão de detalhes mais fácil de obter às vezes quanto à vida de pessoas mortas há séculos do que com referência a nossos melhores amigos, e que parece impossível, como parecia impossível conversar de uma cidade para outra — enquanto se ignora o modo como foi contornada essa impossibilidade. Todas essas lembranças ajuntadas umas às outras não formavam mais que uma massa, mas nem por isso deixava de perceber entre elas — entre as mais antigas e as mais recentes, nascidas de um perfume, e também as que eram simplesmente lembranças de uma outra pessoa que as comunicara a mim —, já não digo fendas, verdadeiras falhas, mas pelo menos essas betas, essas mesclas de coloridos que em certas rochas, em certos mármores, revelam diferenças de origem, de idade, de “formação”.
     É verdade que, quando se aproximava o dia, já fazia muito que se dissipara a breve incerteza do despertar. Sabia em que quarto efetivamente me achava, tinha-o reconstruído em torno de mim na escuridão, e — ou orientando-me só pela memória, ou valendo-me, como indicação, de uma flébil claridade entrevista, à qual aplicava eu as cortinas da janela, tinha-o inteiramente reconstruído e mobiliado, como um arquiteto e um tapeceiro que respeitam o vão primitivo das janelas e portas, tinha recolocado os espelhos e reconduzido a cômoda para seu lugar habitual. Mas apenas o dia — e não mais o reflexo de uma última brasa em uma sanefa de cobre que eu tomara por ele — traçava na escuridão, e como que a giz, a primeira raia branca e retificativa, eis que a janela com suas cortinas deixava o quadro da porta onde a colocara por engano, ao passo que, para lhe ceder lugar, a escrivaninha, que minha memória ali colocara desazadamente, escapava-se a toda a velocidade, levando a lareira por diante e afastando a parede do corredor; um pequeno pátio reinava no lugar onde, um momento antes, ainda se estendia o gabinete de toalete, e a casa que eu reconstruíra nas trevas fora reunir-se às casas entrevistas no torvelinho do despertar, posta em fuga por aquele pálido signo que traçara acima das cortinas o dedo erguido do dia.

continua na página 125...
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Leia também:

Volume 1
No Caminho de Swann (II - Combray, Verificando, observando a forma de sua agulha - r)
No Caminho de Swann (III - um amor de swann, Para fazer parte - a)
Volume 2
Volume 3
Volume 4
Volume 5
Volume 6
Volume 7
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[1] A página sobre os campanários será resgatada no segundo volume do livro, para ser mostrada a um amigo influente do pai do herói e, depois, no sexto volume, quando o herói conseguirá enfim publicá-la no jornal Le Figaro. [n. e.]

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