terça-feira, 17 de dezembro de 2024

Marcel Proust - No Caminho de Swann (II - Combray, No passeio para o lado de Guermantes - q)

em busca do tempo perdido


volume I
No Caminho de Swann


ao senhor gaston calmette
como um testemunho de profundo e afetuoso reconhecimento
— marcel proust



combray


II(q) 

continuando...

     No passeio para o lado de Guermantes, nunca pudemos remontar até as nascentes do Vivonne, nas quais eu tantas vezes pensara e tinham para mim uma existência tão abstrata, tão ideal, que eu ficaria tão surpreso ao me dizerem que se achavam no departamento, a certa distância quilométrica de Combray, como no dia em que soube que havia outro determinado ponto da terra onde se abria, na Antiguidade, a entrada dos Infernos.[1] Nunca pudemos prolongar o passeio até o ponto que eu tanto desejaria atingir, até Guermantes. Sabia que lá residiam os castelões, o duque e a duquesa de Guermantes, sabia que eram pessoas reais com existência atual; mas, de cada vez que pensava neles, imaginava-os, ora em tapeçaria, como a condessa de Guermantes na “coroação de Ester” de nossa igreja, ora em matizes cambiantes como Gilberto, o Mau, no vitral, onde ele passava do verde-couve ao azul-ameixa, conforme eu estivesse ainda a tomar água benta ou chegando a nossos bancos, ora de todo impalpáveis como a imagem de Geneviève de Brabant, ancestre da família de Guermantes, que a lanterna mágica passeava sobre as cortinas de meu quarto ou fazia subir ao teto — enfim, sempre envoltos no mistério dos tempos merovíngios e banhados, como em um poente, na luz alaranjada que emana desta sílaba: “antes”. Mas se apesar disso, como duque e duquesa, eram para mim seres reais, embora estranhos, em compensação sua pessoa ducal se distendia desmesuradamente, se imaterializava, para poder conter em si esse Guermantes de que eles eram o duque e a duquesa, todo esse “lado de Guermantes” cheio de sol, o curso do Vivonne, suas ninfeias e suas grandes árvores, e tantas e tão belas tardes. E eu sabia que não usavam apenas o título de duque e duquesa de Guermantes, mas que, desde o século xiv, depois de tentar em vão vencer seus antigos senhores, aliaram-se a estes por laços matrimoniais, e eram condes de Combray, os primeiros cidadãos de Combray por conseguinte, e no entanto os únicos que ali não residiam. Condes de Combray, que tinham a Combray no meio de seu nome e de sua pessoa e que sem dúvida traziam efetivamente em si aquela estranha e piedosa tristeza peculiar a Combray; proprietários da cidade, mas não de uma casa particular, sem dúvida deviam viver fora, na rua, entre o céu e a terra, como aquele Gilberto de Guermantes que eu via apenas por seu avesso de laca negra nos vitrais da abside de Santo Hilário, se erguia a cabeça de passagem, quando me mandavam buscar sal no armazém de Camus.
     Depois, sucedia-me passar às vezes, para os lados de Guermantes, por pequenos cercados úmidos, onde assomavam tufos de flores sombrias. Detinha-me, julgando adquirir uma noção preciosa, pois me parecia ter diante dos olhos um fragmento daquela região fluviátil que tanto desejava conhecer desde que a vira descrita por um de meus escritores prediletos. E foi com ela, com seu solo imaginário atravessado de correntes espumosas, que Guermantes se identificou, mudando de aspecto em meu pensamento, quando ouvi o dr. Percepied referir-se às flores e às belas águas-vivas que havia no parque do castelo. Sonhava que a sra. de Guermantes me fazia ir até lá, tomada de súbito capricho por mim, e que passávamos juntos o dia inteiro a pescar trutas. E à tardinha, tomando-me pela mão, ao passar pelos pequenos jardins de seus vassalos, mostrava-me ao longo das cercas baixas as flores que ali apoiavam os caules roxos e vermelhos, e dizia-me seus nomes. Ela me fazia dizer-lhe o assunto dos poemas que eu tencionava compor. E esses sonhos me preveniam de que, já que eu desejava um dia ser escritor, era tempo de saber ao certo o que desejava escrever. Mas logo que o perguntava a mim mesmo, procurando um assunto em que pudesse pôr um infinito significado filosófico, meu espírito parava de funcionar, eu não via mais que o vácuo em face de minha atenção, reconhecia que não tinha gênio ou que talvez uma enfermidade cerebral o impedisse de surgir. Às vezes pensava em meu pai para remediar tal situação. Era ele tão influente e tão benquisto com pessoas de posição que chegava a fazer-nos transgredir as leis que Françoise me ensinara a considerar mais inelutáveis que as da vida e da morte, a retardar por um ano, para nossa casa, caso único em todo o quarteirão, os trabalhos de reboco; a conseguir do ministro, para o filho da sra. Sazerat que queria fazer uma estação de águas, que obtivesse o bacharelato dois meses antes, na série dos candidatos cujo nome começava por um A, sem ser preciso aguardar a vez dos S. Se eu caísse gravemente enfermo, se fosse capturado por bandidos, convicto de que meu pai mantinha suficiente inteligência com as potências superiores e possuía irresistíveis cartas de recomendação junto ao bom Deus, para que minha doença ou cativeiro não fossem mais que vãos simulacros sem perigo nenhum, esperaria com toda a calma a hora do regresso à boa realidade, a hora da libertação ou da cura; talvez aquela ausência de gênio, aquele buraco negro que se abria em meu espírito quando procurava o assunto de meus escritos futuros, também não passasse de uma ilusão inconsistente, e cessaria com a intervenção de meu pai, o qual devia ter assentado com o Governo e a Província que eu viria a ser o primeiro escritor da época. Mas outras vezes, quando meus pais se impacientavam ao ver que eu ficava para trás e não os seguia, minha vida atual, em vez de parecer-me uma criação artificial de meu pai que ele poderia modificar à vontade, afigurava-se-me ao contrário inclusa em uma realidade que não era feita para mim, contra a qual não havia recursos, em cujo seio eu não tinha aliados e que nada ocultava além de si mesma. Parecia-me então que eu existia da mesma forma que os outros homens, envelheceria e morreria como eles e que, no meio deles, apenas pertencia ao número dos que não têm pendor para escrever. E assim, desanimado, renunciava para sempre à literatura, apesar de todo o estímulo que me dera Bloch. Esse sentimento íntimo, imediato, que eu tinha do nada de meu pensamento, prevalecia contra todas as palavras lisonjeiras que pudessem prodigalizar-me, da mesma forma que os remorsos na consciência de um mau cujas boas ações todos louvam. 
     Um dia minha mãe me disse: “Já que falas tanto na senhora de Guermantes, ela deve vir a Combray para assistir ao casamento da filha do doutor Percepied, pois ele a tratou muito bem há quatro anos. Poderás vê-la na cerimônia”. Aliás, fora o dr. Percepied, quem mais eu ouvira falar a respeito da sra. de Guermantes, e até nos mostrara o número de uma revista ilustrada em que vinha seu retrato, com o traje que usara no baile à fantasia oferecido pela princesa de Léon.  
     De súbito, durante a missa de núpcias, um movimento que fez o sacristão ao mudar de lugar, permitindo-me ver sentada em uma capela uma dama loira de nariz grande, olhos azuis e penetrantes, uma gravata fofa de seda malva, lisa e brilhante, e uma espinhazinha na asa do nariz. E como na superfície de seu rosto avermelhado, como se ela estivesse com muito calor, eu distinguia diluídas e apenas perceptíveis parcelas de analogia com o retrato que me mostraram e, sobretudo, como os traços particulares que eu lhe notava, ao tentar enunciá-los, se formulavam precisamente nos mesmos termos: nariz grande, olhos azuis, que usara o dr. Percepied ao descrever a duquesa de Guermantes, disse eu comigo que aquela dama se parecia com a sra. de Guermantes; ademais, a capela de onde assistia à missa era a de Gilberto, o Mau, sob cujas lajes distendidas e douradas como alvéolos de mel repousavam os antigos condes de Brabant, e como me haviam dito estar reservada para a família de Guermantes quando algum de seus membros viesse a uma cerimônia religiosa em Combray, só podia verossimilmente haver uma mulher parecida com o retrato da duquesa de Guermantes que se encontrasse na referida capela justamente no dia em que a duquesa deveria comparecer: sim, era ela mesma! Minha decepção foi grande. Provinha de que eu jamais atentara, ao pensar na sra. de Guermantes, em que sempre a imaginava com as cores de uma tapeçaria ou de um vitral, em um outro século, e feita de matéria muito diversa que a do restante dos mortais. Nunca me ocorrera que pudesse ter umas faces vermelhas, uma gravata malva como a sra. Sazerat; e o oval de seu rosto me fez recordar tantas pessoas que eu vira em nossa casa, que me aflorou a suspeita, aliás imediatamente dissipada, de que aquela dama, em seu princípio gerador e em todas as suas moléculas, talvez não fosse substancialmente a duquesa de Guermantes, mas que seu corpo, ignorante do nome que lhe davam, pertencia a certo tipo feminino que abrangia igualmente a mulheres de médicos e de comerciantes. “É isto. Mas só isto, a senhora de Guermantes?!”, dizia a cara atenta e espantada com que eu contemplava aquela imagem que naturalmente não tinha relação alguma com as outras que me haviam aparecido em sonhos sob o mesmo nome de sra. de Guermantes, pois essa não fora arbitrariamente formada por mim como as primeiras, mas me saltara aos olhos pela primeira vez apenas um momento antes, na igreja; não era da mesma natureza, não era colorível à vontade como as que se deixavam impregnar da tinta alaranjada de uma sílaba, mas era tão real que tudo, até aquela espinhazinha que se inflamava na asa do nariz, certificava sua sujeição às leis da vida, como, em uma apoteose de teatro, uma ruga do vestido de fada, um tremor de seu dedo mínimo, denunciavam a presença material de uma atriz viva ali onde nos achávamos incertos se não teríamos ante os olhos uma simples projeção luminosa.
     Mas ao mesmo tempo, sobre aquela imagem que o nariz agudo e os olhos penetrantes cravavam em minha visão (talvez porque fossem eles que a atingiram primeiro, que lhe deram o primeiro entalhe, no momento em que eu ainda não tivera tempo de pensar que a mulher que estava diante de mim podia ser a senhora de Guermantes), sobre aquela imagem recente, imutável, eu tentava aplicar a ideia: “É a senhora de Guermantes” sem conseguir mais que movê-la em face da imagem, como dois discos separados por um intervalo. Mas aquela sra. de Guermantes com quem tanto havia sonhado, quando vi que realmente existia fora de mim, adquiriu ainda maior domínio sobre minha imaginação, a qual, paralisada um momento ao contato de uma realidade tão diferente da que esperava, começou a reagir, dizendo-me: “Gloriosos desde antes de Carlos Magno, os Guermantes tinham direito de vida e morte sobre seus vassalos; a duquesa de Guermantes descende de Geneviève de Brabant. Ela não conhece, nem consentiria em conhecer, nenhuma das pessoas que se acham aqui”.
     — E — ó maravilhosa independência dos olhares humanos, presos ao rosto por um fio tão solto, tão longo, tão extensível que podem passear sozinhos muito longe dele — enquanto a sra. de Guermantes se achava sentada na capela, em cima das tumbas de seus mortos, seus olhares passeavam aqui e ali, subiam ao longo dos pilares, detinham-se até a mim como um raio de sol errante pela nave, mas um raio de sol que, no instante em que lhe recebi a carícia, me pareceu consciente. Quanto à própria sra. de Guermantes, como permanecia imóvel, sentada como uma mãe que parece não ver as ousadas travessuras e atitude indiscreta de seus filhos, que brincam e interpelam pessoas desconhecidas, foi-me impossível saber se ela aprovava ou censurava, no ócio de sua alma, a vagabundagem de seus olhares.
     Tinha o máximo interesse em que não se fosse embora antes que eu a pudesse olhar suficientemente, pois me lembrava que, desde muitos anos, considerava o instante em que a visse como uma das coisas mais desejáveis do mundo, e não afastava os olhos dela, como se cada um de meus olhares pudesse transportar, e guardar dentro de mim, a lembrança do nariz proeminente, das faces vermelhas, de todas aquelas particularidades que me pareciam outros tantos informes preciosos, autênticos e singulares sobre seu rosto. Agora que o embelezava com todos os pensamentos a ele relativos — e talvez, principalmente, com esse desejo que sempre temos de não ser desiludidos, espécie de instinto de conservação do que há de melhor em nós mesmos —, recolocando-a (pois que ela e aquela duquesa de Guermantes que eu até então evocara constituíam uma única pessoa) fora do resto da humanidade, com a qual me fizera por um instante confundi-la a vista pura e simples de seu corpo, irritava-me ouvir murmurarem em torno de mim: “Ela está melhor que a senhora Sazerat, que a senhorita Vinteuil”, como se fosse possível compará-las. Detendo o olhar em seus cabelos loiros, em seus olhos azuis, nas linhas de seu pescoço e omitindo os traços que me pudessem lembrar outros rostos, eu exclamava comigo, ante aquele esboço voluntariamente incompleto: “Como é linda! Quanta nobreza! Logo se vê que é uma altiva Guermantes, a descendente de Geneviève de Brabant, que tenho aqui diante de mim!”. E a atenção com que eu lhe iluminava o rosto de tal modo o isolava de tudo o mais que até hoje, quando recordo aquela cerimônia, é-me impossível lembrar uma só das pessoas que ali se achavam, a não ser ela e o sacristão que me respondeu afirmativamente quando lhe perguntei se aquela dama era mesmo a sra. de Guermantes. Mas esta, eu ainda a vejo, principalmente quando desfilavam pela sacristia, iluminada pelo sol intermitente e morno de um dia ventoso e carregado, e onde a sra. de Guermantes se via entre todas aquelas pessoas de Combray, de quem até o nome ignorava, mas cuja inferioridade exalçava por demais sua supremacia para que deixasse de lhe inspirar uma sincera benevolência para com elas, e às quais, de resto, ainda mais esperava impor-se, à força de boa graça e simplicidade. E como não podia transmitir um desses olhares voluntários, carregados de significação precisa, que se dirigem a algum conhecido, mas apenas deixar seus pensamentos distraídos expandirem-se incessantemente adiante de si mesma como uma vaga de luz azul impossível de conter, não queria ela que essa luz acaso perturbasse ou parecesse desdenhar aquela gente humilde que encontrava em sua passagem, que atingia a todos os momentos. Revejo ainda, acima da gravata malva, sedosa e tufada, o suave assombro de seus olhos, a que ela acrescentava, sem ousar destiná-lo a ninguém, mas para que todos pudessem tomar sua parte, um sorriso um pouco tímido de suserana que parece escusar-se ante seus vassalos e demonstrar-lhes seu afeto. Aquele sorriso tombou em mim, que não afastava os olhos dela. Recordando então o olhar que deixara deter-se em mim durante a missa, azul como um raio de sol que houvesse atravessado o vitral de Gilberto, o Mau, disse eu comigo: “Mas sem dúvida ela reparou em mim!”. Julguei que lhe agradava, que ainda pensaria em mim depois que deixasse a igreja, que por causa de mim talvez se sentisse triste naquela mesma tarde, em Guermantes. E em seguida me apaixonei por ela, pois se às vezes basta, para que nos enamoremos de uma mulher, que nos olhe com desprezo, como eu julgara tinha feito a filha de Swann, e que pensemos que ela nunca será nossa, também outras vezes basta que nos olhe com bondade, como fazia a sra. de Guermantes, e que pensemos que ela ainda poderá ser nossa. Seus olhos azulavam como uma pervinca impossível de colher e que no entanto ela me houvesse dedicado; e o sol, ameaçado por uma nuvem, mas dardejando ainda com todo o vigor sobre a praça e a sacristia, dava uma carnação de gerânio aos tapetes vermelhos estendidos em terra para a solenidade e por onde avançava sorrindo a senhora de Guermantes, e acrescentava à lã dos mesmos um róseo aveludado, essa espécie de meiguice, de grave doçura na pompa e na alegria, que caracterizam certas páginas do Lohengrin, certas pinturas de Carpaccio, e que fazem compreender que Baudelaire possa ter aplicado ao som do clarim o epíteto de delicioso.[2]
     Quantas vezes depois daquele dia, em meus passeios para os lados de Guermantes, não me pareceu ainda muito mais aflitivo que anteriormente não ter nenhum pendor para as letras e ver-me obrigado a renunciar de uma vez por todas a tornar-me um escritor famoso? Tanto me fazia sofrer esse pesar, enquanto me punha a cismar sozinho, um pouco afastado dos outros, que meu espírito, espontaneamente, em uma espécie de inibição ante a dor, deixava por completo de pensar em versos, em romances, em um futuro poético que minha falta de talento me vedava esperar. E então, muito fora de todas essas preocupações literárias e em nada ligados a ela, eis que de súbito um telhado, um reflexo de sol em uma pedra, o cheiro de um caminho, faziam-me parar pelo prazer único que me davam, e também porque pareciam ocultar, além do que eu via, alguma coisa que eles convidavam a colher e que me era impossível descobrir, apesar dos esforços que fazia. Como sentia que aquilo se achava neles, eu ali ficava imóvel, a olhar, a respirar, procurando ir com o pensamento além da imagem ou do odor. E se tinha de correr atrás de meu avô para continuar o passeio, fazia-o de olhos fechados, atento em relembrar exatamente o perfil do telhado ou o matiz da pedra, que, sem que eu soubesse o motivo, me haviam parecido replenos, prestes a entreabrir-se, a revelar-me aquilo de que não eram mais que a cobertura. Claro que impressões desse gênero não iam restituir-me a perdida esperança de me tornar um dia escritor e poeta, pois estavam sempre ligadas a algum objeto particular desprovido de valor intelectual e sem nenhuma relação com qualquer verdade abstrata. Mas pelo menos me davam um prazer irreflexivo, a ilusão de uma espécie de fecundidade, e assim me distraíam da tristeza, da sensação de impotência que experimentava cada vez que me punha a buscar um assunto filosófico para uma grande obra literária. Mas tão árduo era o dever de consciência que me impunham essas impressões de forma, de perfume ou de cor — procurar o que atrás delas se ocultava — que em seguida buscava escusas que me subtraíssem a tais esforços e me poupassem a tamanha fadiga. Por felicidade, meus pais me chamavam, e eu via que naquele momento me faltava o sossego necessário para prosseguir satisfatoriamente minhas pesquisas e que seria melhor deixá-las para quando estivesse em casa, e não me fatigar previamente sem resultado. E já não me preocupava com aquela coisa desconhecida que se envolvia em uma forma ou em um perfume e agora estava quieta dentro de mim, pois a vinha trazendo para casa, protegida pelo revestimento de imagens sob as quais a encontraria viva, como esses peixes que eu carregava em um cesto de volta da pescaria, bem cobertos de uma camada de ervas que lhes conservava a frescura. Uma vez em casa, punha-me a pensar em outra coisa, e assim iam se acumulando em meu espírito (como em meu quarto as flores que colhera durante os passeios ou os objetos que ganhara de presente) uma pedra onde brincava um reflexo, um telhado, um som de sino, um cheiro de folhas, imagens inúmeras e diversas debaixo das quais há muito tempo jaz morta a pressentida realidade, que me faltou vontade suficiente para descobrir. Um dia, no entanto — em que nosso passeio se prolongara muito mais que habitualmente, e a meio caminho, no regresso, já pelo fim da tarde, tivemos o prazer de encontrar o dr. Percepied, que passava a toda a velocidade em seu carro e nos reconheceu, fazendo-nos embarcar com ele —, senti eu uma impressão desse gênero e não a abandonei sem tê-la aprofundado um pouco. Haviam-me acomodado junto ao cocheiro, íamos com o vento porque antes de chegar a Combray o doutor tinha de parar em casa de um doente, a cuja porta ficou combinado que o esperaríamos. Na curva de um caminho, senti, de súbito, aquele prazer peculiar que não se assemelhava a nenhum outro ao avistar as duas torres de Martinville, batidas do sol poente e que o movimento de nosso carro e os zigue-zagues do caminho faziam mudar de posição, e depois a torre de Vieuxvicq que, separada das primeiras por uma colina e um vale, e situada ao longe em um planalto mais elevado, parecia no entanto bem próxima delas.

continua na página 125...
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Leia também:

Volume 1
No Caminho de Swann (II - Combray, No passeio para o lado de Guermantes - q)
Volume 2
Volume 3
Volume 4
Volume 5
Volume 6
Volume 7
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[1] Somente no último volume o herói remontará, em companhia de Gilberte, até essa nascente, ressignificando metaforicamente toda a sua infância. [n. e.]
[2] Referência à última estrofe do poema “O imprevisto”, presente em As flores do mal. [n. e.]

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