em busca do tempo perdido
volume I
No Caminho de Swann
ao senhor gaston calmette
como um testemunho de profundo e afetuoso reconhecimento
— marcel proust
um amor de swann
III(c)
Entretanto, o sr. Verdurin, depois de pedir licença a Swann para acender o cachimbo (“aqui a gente está à vontade, entre camaradas”), rogava ao jovem artista que tocasse alguma coisa.
ao senhor gaston calmette
como um testemunho de profundo e afetuoso reconhecimento
— marcel proust
um amor de swann
Entretanto, o sr. Verdurin, depois de pedir licença a Swann para acender o cachimbo (“aqui a gente está à vontade, entre camaradas”), rogava ao jovem artista que tocasse alguma coisa.
— Ora, não o aborreças, ele não está aqui para ser torturado — exclamou a sra.
Verdurin. — Eu não permito que o torturem!
— Mas por que achas tu que isso vai aborrecê-lo? — disse o sr. Verdurin. — O
senhor Swann talvez não conheça a sonata em sustenido que nós descobrimos. Ele vai
tocar-nos o arranjo para piano.
— Ah, não, a minha sonata, não! — gritou a sra. Verdurin. — Eu não tenho
nenhuma vontade de que me venha, à força de chorar, um defluxo com nevralgias
faciais, como da última vez; muito agradecida, não quero recomeçar; vocês são muito
bons, mas bem se vê que não são vocês que vão ficar oito dias de cama!
Essa pequena comédia, que se repetia sempre que o pianista ia tocar, encantava os
amigos, como se fosse nova, e parecia-lhes uma prova da sedutora originalidade da
“Patroa” e da sua sensibilidade musical. Os que estavam mais perto dela faziam sinal aos
que mais longe fumavam ou jogavam cartas, para que se aproximassem, pois se passava
qualquer coisa, dizendo-lhes, como se faz no Reichstag[1] nos momentos
interessantes: “Escutem, escutem”. E no dia seguinte se compadeciam daqueles que não
tinham podido comparecer, dizendo-lhes que a cena fora ainda mais divertida que de
costume.
— Está bem, está bem; então ele só tocará o andante.
— Só o andante? Imaginem! Pois se é justamente o andante que me arrebenta…
Tem boas, o Patrão! É como se, na “Nona”, ele dissesse: só ouviremos o final, ou nos
“Mestres” só a abertura.[2]
O doutor, no entanto, insistia com a sra. Verdurin para que deixasse o pianista
tocar, não que julgasse fingidos os transtornos que a música lhe causava — reconhecia
nisso certos sintomas de neurastenia —, mas sim pelo costume que têm muitos médicos
de logo afrouxar a severidade das suas prescrições quando se acha em jogo, coisa que
lhes parece muito mais importante, alguma reunião mundana de que fazem parte e de
que a pessoa a quem aconselham esqueça por uma vez a sua dispepsia ou a sua gripe é
um dos fatores essenciais.
— Vai ver que desta vez não ficará doente — disse, procurando sugestioná-la com
o olhar. — E, se ficar, cuidaremos bem da senhora.
— É mesmo? — respondeu a sra. Verdurin, como se ante a esperança de tal favor
não houvesse remédio senão capitular. Talvez, também, à força de dizer que ficaria
doente, não mais se lembrasse em certos momentos de que era mentira, tornando-se
mentalmente enferma. Ou então os doentes dessa espécie, cansados de fazer sempre
depender de si mesmos a raridade de seus acessos, preferem acreditar que poderão fazer
tudo o que lhes agrada e que geralmente lhes faz mal, contanto que se entreguem em
mãos de um ser poderoso que, sem o mínimo trabalho para eles, os ponha de novo em
condições com uma simples palavra ou uma pílula.
Odette fora sentar-se num canapé forrado de tapeçaria, junto ao piano.
— Bem sabe, tenho aqui o meu cantinho — disse ela à sra. Verdurin.
Esta, vendo Swann numa cadeira, fê-lo levantar-se.
— O senhor não está bem aí, venha sentar-se ao lado de Odette. Hem, Odette, você
não arranja um lugarzinho para o senhor Swann?
— Que lindo Beauvais! — disse Swann antes de sentar-se, procurando ser amável.
— Ah! Estimo que o senhor aprecie meu canapé — respondeu a sra. Verdurin. —
E se quiser ver outro tão bonito, previno-lhe que pode desistir desde já. Nunca fizeram
nada igual. As cadeirinhas também são umas maravilhas. Daqui a pouco, examinará tudo
isso. Cada ornato de bronze corresponde simbolicamente ao assunto das figuras; se
quiser ver tudo, há de passar um bom momento divertido. Só os frisozinhos das
bordas! Veja só as folhinhas de parra sobre o fundo vermelho do Urso e as Uvas. [3]
Não está bem desenhado? Que me diz! Isso é que era saber desenhar, não é? Não são
apetitosas essas uvas? Meu marido acha que não gosto de frutas porque as como menos
do que ele. Mas não, eu sou mais gulosa do que vocês todos, só que não tenho
necessidade de as pôr na boca, porque as saboreio com os olhos. De que é que está
rindo? Perguntem ao doutor, e ele lhes dirá se essas uvas me purgam ou não. Outros
fazem estações de cura em Fontainebleau, eu faço a minha estaçãozinha de Beauvais. Mas
senhor Swann, o senhor não irá embora sem tocar nos bronzezinhos do espaldar. Não é
bastante suave como pátina? Mas não assim, com toda a mão, toque-lhes bem.
— Ah!, se a senhora Verdurin começa a sovar os bronzes, não ouviremos música
esta noite — disse o pintor.
— Cale-se, seu tolo. No fundo — disse ela, voltando-se para Swann — proíbem a
nós mulheres coisas menos voluptuosas do que isso! Quando o senhor Verdurin me
dava a honra de ter ciúmes de mim… Anda! Ao menos trata de ser polido…
— Mas eu não disse absolutamente nada. O senhor é testemunha, doutor: disse eu
alguma coisa?
— Vamos, poderá acariciá-los mais tarde; agora é ao senhor que vão acariciar, e
acariciar no ouvido. Gosta, não? Aqui está um jovenzinho que vai encarregar-se disso.
Ora, depois que o pianista tocou, Swann mostrou-se ainda mais amável com ele do
que com as outras pessoas ali presentes. Eis o motivo:
No ano anterior, numa reunião, ouvira uma obra para piano e violino. Primeiro, só
lhe agradara a qualidade material dos sons empregados pelos instrumentos. E depois
fora um grande prazer quando, por baixo da linha do violino, tênue, resistente, densa e
dominante, vira de súbito tentar erguer-se num líquido marulho a massa da parte do
piano, multiforme, indivisa, plana e entrechocada como a malva agitação das ondas que
o luar encanta e bemoliza. Mas em certo momento, sem que pudesse distinguir
nitidamente um contorno, dar um nome ao que lhe agradava, subitamente fascinado,
procurara recolher a frase ou a harmonia — não o sabia ele próprio — que passava e
lhe abria mais amplamente a alma, como certos perfumes de rosas, circulando no ar
úmido da noite, têm a propriedade de nos dilatar as narinas. Talvez fosse porque não
sabia música que viera a experimentar uma impressão tão confusa, uma dessas
impressões que no entanto são talvez as únicas puramente musicais, inextensas,
inteiramente originais, irredutíveis a qualquer outra ordem de impressões. Uma
impressão desse gênero durante um momento é, por assim dizer, sine materia. Sem
dúvida, as notas que então ouvimos já tendem, segundo a sua altura e quantidade, a
cobrir ante nossos olhos superfícies de dimensões variadas, a traçar arabescos, a dar-nos
sensações de largura, de tenuidade, de estabilidade, de capricho. Mas as notas se esvaem
antes que essas sensações estejam cabalmente formadas em nós para não serem
submersas pelas que despertam as notas seguintes ou mesmo simultâneas. E essa
impressão continuaria a envolver com a sua liquidez e o seu som “fundido” os motivos
que por instantes emergem, apenas discerníveis, para em seguida mergulhar e
desaparecer, somente percebidos pelo prazer particular que dão, impossíveis de
descrever, de lembrar, de nomear, inefáveis — se a memória, como um obreiro que
procura assentar alicerces duráveis das ondas, fabricando-nos fac-símiles dessas frases
fugitivas, não nos permitisse compará-las às que se lhes sucedem e diferenciá-las.
Assim, mal expirara a deliciosa sensação de Swann, logo a sua memória lhe fornecera
uma transcrição sumária e provisória, mas em que tivera presos os olhos enquanto a
música continuava, de modo que, quando aquela impressão retornou, já não era
inapreensível. Ele lhe concebia a extensão, os grupos simétricos, a grafia, o valor
expressivo; tinha diante de si essa coisa que não é mais música pura, que é desenho,
arquitetura, pensamento, tudo o que nos torna possível recordar a música. Desta vez
distinguira nitidamente uma frase que se elevava durante alguns instantes acima das
ondas sonoras. Ela logo lhe insinuara peculiares volúpias, que nunca lhe ocorreram
antes de ouvi-la, que só ela lhe poderia ensinar, e sentiu por aquela frase como que um
amor desconhecido.
Num lento ritmo ela o encaminhava primeiro por um lado, depois por outro,
depois mais além, para uma felicidade nobre, ininteligível e precisa. E de repente, no
ponto aonde ela chegara e onde ele se preparava para segui-la, depois da pausa de um
instante, ei-la que bruscamente mudava de direção e num movimento novo, mais rápido,
miúdo, melancólico, incessante e suave, arrastava-o consigo para perspectivas
desconhecidas. Depois desapareceu. Ele desejou apaixonadamente revê-la uma terceira
vez. E ela com efeito reapareceu, mas sem falar mais claramente, e causando-lhe uma
volúpia menos profunda. Mas, chegando em casa, sentiu necessidade dela, como um
homem que, ao ver passar uma mulher entrevista num momento na rua, sente que lhe
entra na vida a imagem de uma beleza nova que dá maior valor à sua sensibilidade, sem
que ao menos saiba se poderá algum dia rever aquela a quem já ama e da qual até o nome
ignora.
Também esse amor por uma frase musical pareceu um instante que devia trazer a
Swann alguma possibilidade de renovação. Fazia tanto tempo que desistira de dedicar
sua vida a um fim ideal, limitando-a às satisfações cotidianas, que chegou a crer, sem
nunca o confessar formalmente a si mesmo, que aquilo não mudaria até a morte; ainda
mais, como já não sentia ideias elevadas no espírito, deixara de acreditar na sua realidade,
embora sem poder negá-la de todo. Adquirira assim o hábito de se refugiar em
pensamentos sem importância que lhe permitiam deixar de lado o fundo das coisas. Da
mesma forma que não se perguntava se não teria feito melhor em não frequentar a
sociedade, mas em compensação sabia exatamente que não devia faltar a um convite
aceito e que, se não fazia visita, depois devia deixar cartão, assim também se esforçava na
conversa por nunca expressar francamente uma opinião íntima sobre as coisas, mas por
fornecer detalhes materiais que de algum modo valessem por si mesmos, impedindo-o
de as avaliar. Era exatamente preciso quanto a uma receita de cozinha, à data do
nascimento ou da morte de um pintor, ou quanto à nomenclatura das suas obras. Às
vezes, apesar de tudo, chegava a emitir um juízo sobre uma obra, sobre um modo de
compreender a vida, mas dava então às palavras um tom irônico, como se não aceitasse
inteiramente o que dizia. Ora, como certos valetudinários a quem, de súbito, uma
mudança de clima, um regime diferente, algumas vezes uma evolução orgânica,
espontânea e misteriosa, parecem trazer tal regressão de seu mal que eles começam a
encarar a inesperada possibilidade de começar tardiamente uma vida completamente
diversa, Swann achava em si, na lembrança da frase que ouvira, nas sonatas que mandara
tocar para ver se acaso a descobriria, a presença de uma dessas realidades invisíveis em
que deixara de crer e às quais sentia de novo o desejo e quase a força de consagrar a
vida, como se a música tivesse uma espécie de influência eletiva sobre a secura moral de
que sofria. Mas, não conseguindo saber de quem era a obra que ouvira, não a pudera
procurar e acabou esquecendo-a. Encontrara na mesma semana algumas pessoas que
também se achavam naquela reunião e as interrogara; mas várias tinham chegado depois
da música ou partido antes; algumas no entanto lá se achavam durante a execução, mas
tinham ido conversar noutra sala, e outras que ficaram a escutar não tinham ouvido mais
que o começo. Quanto aos donos da casa, sabiam que era uma obra nova que os artistas
contratados tinham pedido para tocar: como estes haviam partido em turnê, Swann não
pôde saber mais nada. Tinha muitos amigos músicos, mas, embora relembrasse o prazer
especial e intraduzível que lhe causara a frase, vendo diante dos olhos as formas que ela
desenhava, era, no entanto, incapaz de a cantar para eles. Depois deixou de pensar no
assunto.
Ora, apenas alguns minutos depois que o pequeno pianista começara a tocar em casa
da sra. Verdurin, eis que de súbito, após uma nota alta longamente sustida durante dois
compassos, ele viu aproximar-se, escapando de sob aquela sonoridade prolongada e
tensa como uma cortina sonora para ocultar o mistério de sua incubação, ele reconheceu,
secreta, sussurrante e fragmentada, a frase aérea e odorante que o enamorara. E ela era
tão particular, tinha um encanto tão individual que nenhum outro poderia substituir, que
foi para Swann como se tivesse encontrado num salão amigo uma pessoa a quem
admirara na rua e que desesperava de jamais tornar a ver. Afinal, ela afastou-se,
guiadora, diligente, entre as ramificações de seu perfume, deixando no rosto de Swann o
reflexo de seu sorriso. Mas agora podia perguntar o nome de sua desconhecida
(disseram-lhe que era o andante da Sonata para piano e violino de Vinteuil), tinha-a segura,
podia tê-la consigo quantas vezes quisesse e tentar aprender a sua linguagem e o seu
segredo.
Assim, quando o pianista terminou, Swann aproximou-se para lhe expressar um
reconhecimento cuja vivacidade muito agradou à sra. Verdurin.
— Que mágico!, não acha? — disse ela a Swann. — Como o miseravelzinho
compreende a sua sonata! O senhor não sabia que o piano pudesse atingir a tanto. E
tudo, menos piano, palavra! Sempre me engano e parece-me que estou ouvindo uma
orquestra. E até mais belo que a orquestra, mais completo.
O pianista inclinou-se e, sorrindo, sublinhando as palavras como se dissesse uma
frase de espírito, respondeu:
— A senhora é muito indulgente para comigo.
E enquanto a sra. Verdurin dizia ao marido: “Anda, dá-lhe uma laranjada, que ele
bem a merece”, Swann contava a Odette como se enamorara daquela pequena frase. E
quando a sra. Verdurin disse um pouco de longe: “Parece que lhe estão dizendo coisas
bonitas, Odette”, esta respondeu: “Sim, muito bonitas”, e Swann achou deliciosa aquela
simplicidade.
E pediu informações sobre Vinteuil, sobre a sua obra, sobre a época de sua vida em
que compusera aquela sonata, sobre o que poderia significar para ele a pequena frase, e
era isso sobretudo o que desejaria saber.
Mas toda aquela gente que professava admirar o músico (ao dizer Swann que a
sonata era verdadeiramente bela, a sra. Verdurin exclamara: “Ora, se é bela! Mas não se
confessa desconhecer a sonata de Vinteuil, ninguém tem direito a isso”, e o pintor
acrescentara: “Ah! É verdadeiramente formidável, não? Bem compreende que não é do
tipo ‘caro’ e ‘grande público’, mas que impressão para os artistas”), aquela gente parecia
que nunca se fizera tais perguntas, pois ninguém foi capaz de responder.
Mesmo a uma ou duas observações particulares que fez Swann sobre a sua frase
preferida:
— Esquisito! Eu não tinha reparado; confesso-lhe que não gosto muito de ver onde
é que está o gato e procurar agulha em palheiro; aqui não se perde tempo em cortar um
fio em dois — respondeu a sra. Verdurin, que o dr. Cottard via, com beata admiração e
estudioso zelo, agitar-se a gosto naquela onda de frases feitas. Aliás, ele e a mulher, com
esse bom senso-próprio de certa gente do povo, se esquivavam de dar uma opinião ou
fingir admiração por uma música que, mal chegavam em casa, confessavam não
compreender mais do que a pintura do “senhor Biche”. Como o público só conhece, do
encanto, da graça, das formas da natureza, o que aprendeu nos lugares-comuns de uma
arte lentamente assimilada, e como um artista original começa por rejeitar esses lugares-comuns, o sr. e a sra. Cottard, imagem, nisso, do público, não achavam nem na sonata
de Vinteuil nem nos retratos do pintor o que para eles constituía a harmonia da música e
a beleza da pintura. Quando o pianista tocava a sonata, parecia-lhes que arrancava, ao
acaso, do piano, notas que não se ligavam segundo as formas a que estavam habituados,
como também lhes parecia que o pintor lançava ao acaso as suas cores na tela. Quando
numa destas podiam reconhecer uma forma, achavam-na pesada e vulgar (isto é,
desprovida da elegância da escola de pintura através da qual viam até os seres vivos que
passavam na rua) e sem verdade, como se o sr. Biche não soubesse como era feita uma
espádua e que as mulheres não tinham os cabelos cor de malva.
continua na página 141...
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Leia também:
Volume 1
No Caminho de Swann (III - um amor de swann, Entretanto, o sr. Verdurin - c)
Volume 2
Volume 3
Volume 4
Volume 5
Volume 6
Volume 7
__________________[1] Parlamento alemão. [n. e.]
[2] A sra. Verdurin, de sensibilidade artística muito aguda, teme particularmente a
abertura dos Mestres cantores, de Richard Wagner, e o final da Nona sinfonia, de Beethoven.
[n. e.]
[3] Manufatura criada por Colbert em 1664, visando a desenvolver um estilo real
francês. O desenho mencionado pela sra. Verdurin faz referência à série com fábulas de
La Fontaine. Reafirma-se, novamente, o interesse de Swann pelo Antigo Regime
francês. [n. e.]
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