sábado, 21 de dezembro de 2024

Marcel Proust - No Caminho de Swann (III - um amor de swann, Entretanto, o sr. Verdurin - c)

em busca do tempo perdido


volume I
No Caminho de Swann


ao senhor gaston calmette
como um testemunho de profundo e afetuoso reconhecimento
— marcel proust


um amor de swann


III(c) 


     Entretanto, o sr. Verdurin, depois de pedir licença a Swann para acender o cachimbo (“aqui a gente está à vontade, entre camaradas”), rogava ao jovem artista que tocasse alguma coisa.

— Ora, não o aborreças, ele não está aqui para ser torturado — exclamou a sra. Verdurin. — Eu não permito que o torturem! 
— Mas por que achas tu que isso vai aborrecê-lo? — disse o sr. Verdurin. — O senhor Swann talvez não conheça a sonata em sustenido que nós descobrimos. Ele vai tocar-nos o arranjo para piano. 
— Ah, não, a minha sonata, não! — gritou a sra. Verdurin. — Eu não tenho nenhuma vontade de que me venha, à força de chorar, um defluxo com nevralgias faciais, como da última vez; muito agradecida, não quero recomeçar; vocês são muito bons, mas bem se vê que não são vocês que vão ficar oito dias de cama!

     Essa pequena comédia, que se repetia sempre que o pianista ia tocar, encantava os amigos, como se fosse nova, e parecia-lhes uma prova da sedutora originalidade da “Patroa” e da sua sensibilidade musical. Os que estavam mais perto dela faziam sinal aos que mais longe fumavam ou jogavam cartas, para que se aproximassem, pois se passava qualquer coisa, dizendo-lhes, como se faz no Reichstag[1] nos momentos interessantes: “Escutem, escutem”. E no dia seguinte se compadeciam daqueles que não tinham podido comparecer, dizendo-lhes que a cena fora ainda mais divertida que de costume.

— Está bem, está bem; então ele só tocará o andante. 
— Só o andante? Imaginem! Pois se é justamente o andante que me arrebenta… Tem boas, o Patrão! É como se, na “Nona”, ele dissesse: só ouviremos o final, ou nos “Mestres” só a abertura.[2] 

     O doutor, no entanto, insistia com a sra. Verdurin para que deixasse o pianista tocar, não que julgasse fingidos os transtornos que a música lhe causava — reconhecia nisso certos sintomas de neurastenia —, mas sim pelo costume que têm muitos médicos de logo afrouxar a severidade das suas prescrições quando se acha em jogo, coisa que lhes parece muito mais importante, alguma reunião mundana de que fazem parte e de que a pessoa a quem aconselham esqueça por uma vez a sua dispepsia ou a sua gripe é um dos fatores essenciais.

— Vai ver que desta vez não ficará doente — disse, procurando sugestioná-la com o olhar. — E, se ficar, cuidaremos bem da senhora. 
— É mesmo? — respondeu a sra. Verdurin, como se ante a esperança de tal favor não houvesse remédio senão capitular. Talvez, também, à força de dizer que ficaria doente, não mais se lembrasse em certos momentos de que era mentira, tornando-se mentalmente enferma. Ou então os doentes dessa espécie, cansados de fazer sempre depender de si mesmos a raridade de seus acessos, preferem acreditar que poderão fazer tudo o que lhes agrada e que geralmente lhes faz mal, contanto que se entreguem em mãos de um ser poderoso que, sem o mínimo trabalho para eles, os ponha de novo em condições com uma simples palavra ou uma pílula. 

     Odette fora sentar-se num canapé forrado de tapeçaria, junto ao piano.

— Bem sabe, tenho aqui o meu cantinho — disse ela à sra. Verdurin.

     Esta, vendo Swann numa cadeira, fê-lo levantar-se.

— O senhor não está bem aí, venha sentar-se ao lado de Odette. Hem, Odette, você não arranja um lugarzinho para o senhor Swann? 
— Que lindo Beauvais! — disse Swann antes de sentar-se, procurando ser amável. 
— Ah! Estimo que o senhor aprecie meu canapé — respondeu a sra. Verdurin. — E se quiser ver outro tão bonito, previno-lhe que pode desistir desde já. Nunca fizeram nada igual. As cadeirinhas também são umas maravilhas. Daqui a pouco, examinará tudo isso. Cada ornato de bronze corresponde simbolicamente ao assunto das figuras; se quiser ver tudo, há de passar um bom momento divertido. Só os frisozinhos das bordas! Veja só as folhinhas de parra sobre o fundo vermelho do Urso e as Uvas. [3] Não está bem desenhado? Que me diz! Isso é que era saber desenhar, não é? Não são apetitosas essas uvas? Meu marido acha que não gosto de frutas porque as como menos do que ele. Mas não, eu sou mais gulosa do que vocês todos, só que não tenho necessidade de as pôr na boca, porque as saboreio com os olhos. De que é que está rindo? Perguntem ao doutor, e ele lhes dirá se essas uvas me purgam ou não. Outros fazem estações de cura em Fontainebleau, eu faço a minha estaçãozinha de Beauvais. Mas senhor Swann, o senhor não irá embora sem tocar nos bronzezinhos do espaldar. Não é bastante suave como pátina? Mas não assim, com toda a mão, toque-lhes bem. 
— Ah!, se a senhora Verdurin começa a sovar os bronzes, não ouviremos música esta noite — disse o pintor. 
— Cale-se, seu tolo. No fundo — disse ela, voltando-se para Swann — proíbem a nós mulheres coisas menos voluptuosas do que isso! Quando o senhor Verdurin me dava a honra de ter ciúmes de mim… Anda! Ao menos trata de ser polido… 
— Mas eu não disse absolutamente nada. O senhor é testemunha, doutor: disse eu alguma coisa?

     Swann palpava os bronzes por polidez e não se atrevia a parar imediatamente.

— Vamos, poderá acariciá-los mais tarde; agora é ao senhor que vão acariciar, e acariciar no ouvido. Gosta, não? Aqui está um jovenzinho que vai encarregar-se disso.

     Ora, depois que o pianista tocou, Swann mostrou-se ainda mais amável com ele do que com as outras pessoas ali presentes. Eis o motivo: 
     No ano anterior, numa reunião, ouvira uma obra para piano e violino. Primeiro, só lhe agradara a qualidade material dos sons empregados pelos instrumentos. E depois fora um grande prazer quando, por baixo da linha do violino, tênue, resistente, densa e dominante, vira de súbito tentar erguer-se num líquido marulho a massa da parte do piano, multiforme, indivisa, plana e entrechocada como a malva agitação das ondas que o luar encanta e bemoliza. Mas em certo momento, sem que pudesse distinguir nitidamente um contorno, dar um nome ao que lhe agradava, subitamente fascinado, procurara recolher a frase ou a harmonia — não o sabia ele próprio — que passava e lhe abria mais amplamente a alma, como certos perfumes de rosas, circulando no ar úmido da noite, têm a propriedade de nos dilatar as narinas. Talvez fosse porque não sabia música que viera a experimentar uma impressão tão confusa, uma dessas impressões que no entanto são talvez as únicas puramente musicais, inextensas, inteiramente originais, irredutíveis a qualquer outra ordem de impressões. Uma impressão desse gênero durante um momento é, por assim dizer, sine materia. Sem dúvida, as notas que então ouvimos já tendem, segundo a sua altura e quantidade, a cobrir ante nossos olhos superfícies de dimensões variadas, a traçar arabescos, a dar-nos sensações de largura, de tenuidade, de estabilidade, de capricho. Mas as notas se esvaem antes que essas sensações estejam cabalmente formadas em nós para não serem submersas pelas que despertam as notas seguintes ou mesmo simultâneas. E essa impressão continuaria a envolver com a sua liquidez e o seu som “fundido” os motivos que por instantes emergem, apenas discerníveis, para em seguida mergulhar e desaparecer, somente percebidos pelo prazer particular que dão, impossíveis de descrever, de lembrar, de nomear, inefáveis — se a memória, como um obreiro que procura assentar alicerces duráveis das ondas, fabricando-nos fac-símiles dessas frases fugitivas, não nos permitisse compará-las às que se lhes sucedem e diferenciá-las. Assim, mal expirara a deliciosa sensação de Swann, logo a sua memória lhe fornecera uma transcrição sumária e provisória, mas em que tivera presos os olhos enquanto a música continuava, de modo que, quando aquela impressão retornou, já não era inapreensível. Ele lhe concebia a extensão, os grupos simétricos, a grafia, o valor expressivo; tinha diante de si essa coisa que não é mais música pura, que é desenho, arquitetura, pensamento, tudo o que nos torna possível recordar a música. Desta vez distinguira nitidamente uma frase que se elevava durante alguns instantes acima das ondas sonoras. Ela logo lhe insinuara peculiares volúpias, que nunca lhe ocorreram antes de ouvi-la, que só ela lhe poderia ensinar, e sentiu por aquela frase como que um amor desconhecido.
     Num lento ritmo ela o encaminhava primeiro por um lado, depois por outro, depois mais além, para uma felicidade nobre, ininteligível e precisa. E de repente, no ponto aonde ela chegara e onde ele se preparava para segui-la, depois da pausa de um instante, ei-la que bruscamente mudava de direção e num movimento novo, mais rápido, miúdo, melancólico, incessante e suave, arrastava-o consigo para perspectivas desconhecidas. Depois desapareceu. Ele desejou apaixonadamente revê-la uma terceira vez. E ela com efeito reapareceu, mas sem falar mais claramente, e causando-lhe uma volúpia menos profunda. Mas, chegando em casa, sentiu necessidade dela, como um homem que, ao ver passar uma mulher entrevista num momento na rua, sente que lhe entra na vida a imagem de uma beleza nova que dá maior valor à sua sensibilidade, sem que ao menos saiba se poderá algum dia rever aquela a quem já ama e da qual até o nome ignora.
     Também esse amor por uma frase musical pareceu um instante que devia trazer a Swann alguma possibilidade de renovação. Fazia tanto tempo que desistira de dedicar sua vida a um fim ideal, limitando-a às satisfações cotidianas, que chegou a crer, sem nunca o confessar formalmente a si mesmo, que aquilo não mudaria até a morte; ainda mais, como já não sentia ideias elevadas no espírito, deixara de acreditar na sua realidade, embora sem poder negá-la de todo. Adquirira assim o hábito de se refugiar em pensamentos sem importância que lhe permitiam deixar de lado o fundo das coisas. Da mesma forma que não se perguntava se não teria feito melhor em não frequentar a sociedade, mas em compensação sabia exatamente que não devia faltar a um convite aceito e que, se não fazia visita, depois devia deixar cartão, assim também se esforçava na conversa por nunca expressar francamente uma opinião íntima sobre as coisas, mas por fornecer detalhes materiais que de algum modo valessem por si mesmos, impedindo-o de as avaliar. Era exatamente preciso quanto a uma receita de cozinha, à data do nascimento ou da morte de um pintor, ou quanto à nomenclatura das suas obras. Às vezes, apesar de tudo, chegava a emitir um juízo sobre uma obra, sobre um modo de compreender a vida, mas dava então às palavras um tom irônico, como se não aceitasse inteiramente o que dizia. Ora, como certos valetudinários a quem, de súbito, uma mudança de clima, um regime diferente, algumas vezes uma evolução orgânica, espontânea e misteriosa, parecem trazer tal regressão de seu mal que eles começam a encarar a inesperada possibilidade de começar tardiamente uma vida completamente diversa, Swann achava em si, na lembrança da frase que ouvira, nas sonatas que mandara tocar para ver se acaso a descobriria, a presença de uma dessas realidades invisíveis em que deixara de crer e às quais sentia de novo o desejo e quase a força de consagrar a vida, como se a música tivesse uma espécie de influência eletiva sobre a secura moral de que sofria. Mas, não conseguindo saber de quem era a obra que ouvira, não a pudera procurar e acabou esquecendo-a. Encontrara na mesma semana algumas pessoas que também se achavam naquela reunião e as interrogara; mas várias tinham chegado depois da música ou partido antes; algumas no entanto lá se achavam durante a execução, mas tinham ido conversar noutra sala, e outras que ficaram a escutar não tinham ouvido mais que o começo. Quanto aos donos da casa, sabiam que era uma obra nova que os artistas contratados tinham pedido para tocar: como estes haviam partido em turnê, Swann não pôde saber mais nada. Tinha muitos amigos músicos, mas, embora relembrasse o prazer especial e intraduzível que lhe causara a frase, vendo diante dos olhos as formas que ela desenhava, era, no entanto, incapaz de a cantar para eles. Depois deixou de pensar no assunto.
     Ora, apenas alguns minutos depois que o pequeno pianista começara a tocar em casa da sra. Verdurin, eis que de súbito, após uma nota alta longamente sustida durante dois compassos, ele viu aproximar-se, escapando de sob aquela sonoridade prolongada e tensa como uma cortina sonora para ocultar o mistério de sua incubação, ele reconheceu, secreta, sussurrante e fragmentada, a frase aérea e odorante que o enamorara. E ela era tão particular, tinha um encanto tão individual que nenhum outro poderia substituir, que foi para Swann como se tivesse encontrado num salão amigo uma pessoa a quem admirara na rua e que desesperava de jamais tornar a ver. Afinal, ela afastou-se, guiadora, diligente, entre as ramificações de seu perfume, deixando no rosto de Swann o reflexo de seu sorriso. Mas agora podia perguntar o nome de sua desconhecida (disseram-lhe que era o andante da Sonata para piano e violino de Vinteuil), tinha-a segura, podia tê-la consigo quantas vezes quisesse e tentar aprender a sua linguagem e o seu segredo.
     Assim, quando o pianista terminou, Swann aproximou-se para lhe expressar um reconhecimento cuja vivacidade muito agradou à sra. Verdurin.

— Que mágico!, não acha? — disse ela a Swann. — Como o miseravelzinho compreende a sua sonata! O senhor não sabia que o piano pudesse atingir a tanto. E tudo, menos piano, palavra! Sempre me engano e parece-me que estou ouvindo uma orquestra. E até mais belo que a orquestra, mais completo.

     O pianista inclinou-se e, sorrindo, sublinhando as palavras como se dissesse uma frase de espírito, respondeu:

— A senhora é muito indulgente para comigo.

     E enquanto a sra. Verdurin dizia ao marido: “Anda, dá-lhe uma laranjada, que ele bem a merece”, Swann contava a Odette como se enamorara daquela pequena frase. E quando a sra. Verdurin disse um pouco de longe: “Parece que lhe estão dizendo coisas bonitas, Odette”, esta respondeu: “Sim, muito bonitas”, e Swann achou deliciosa aquela simplicidade. 
     E pediu informações sobre Vinteuil, sobre a sua obra, sobre a época de sua vida em que compusera aquela sonata, sobre o que poderia significar para ele a pequena frase, e era isso sobretudo o que desejaria saber. 
     Mas toda aquela gente que professava admirar o músico (ao dizer Swann que a sonata era verdadeiramente bela, a sra. Verdurin exclamara: “Ora, se é bela! Mas não se confessa desconhecer a sonata de Vinteuil, ninguém tem direito a isso”, e o pintor acrescentara: “Ah! É verdadeiramente formidável, não? Bem compreende que não é do tipo ‘caro’ e ‘grande público’, mas que impressão para os artistas”), aquela gente parecia que nunca se fizera tais perguntas, pois ninguém foi capaz de responder. 
     Mesmo a uma ou duas observações particulares que fez Swann sobre a sua frase preferida: 

— Esquisito! Eu não tinha reparado; confesso-lhe que não gosto muito de ver onde é que está o gato e procurar agulha em palheiro; aqui não se perde tempo em cortar um fio em dois — respondeu a sra. Verdurin, que o dr. Cottard via, com beata admiração e estudioso zelo, agitar-se a gosto naquela onda de frases feitas. Aliás, ele e a mulher, com esse bom senso-próprio de certa gente do povo, se esquivavam de dar uma opinião ou fingir admiração por uma música que, mal chegavam em casa, confessavam não compreender mais do que a pintura do “senhor Biche”. Como o público só conhece, do encanto, da graça, das formas da natureza, o que aprendeu nos lugares-comuns de uma arte lentamente assimilada, e como um artista original começa por rejeitar esses lugares-comuns, o sr. e a sra. Cottard, imagem, nisso, do público, não achavam nem na sonata de Vinteuil nem nos retratos do pintor o que para eles constituía a harmonia da música e a beleza da pintura. Quando o pianista tocava a sonata, parecia-lhes que arrancava, ao acaso, do piano, notas que não se ligavam segundo as formas a que estavam habituados, como também lhes parecia que o pintor lançava ao acaso as suas cores na tela. Quando numa destas podiam reconhecer uma forma, achavam-na pesada e vulgar (isto é, desprovida da elegância da escola de pintura através da qual viam até os seres vivos que passavam na rua) e sem verdade, como se o sr. Biche não soubesse como era feita uma espádua e que as mulheres não tinham os cabelos cor de malva.  
 
continua na página 141...
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Leia também:

Volume 1
No Caminho de Swann (III - um amor de swann, Entretanto, o sr. Verdurin - c)
Volume 2
Volume 3
Volume 4
Volume 5
Volume 6
Volume 7
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[1] Parlamento alemão. [n. e.]
[2] A sra. Verdurin, de sensibilidade artística muito aguda, teme particularmente a abertura dos Mestres cantores, de Richard Wagner, e o final da Nona sinfonia, de Beethoven. [n. e.]
[3] Manufatura criada por Colbert em 1664, visando a desenvolver um estilo real francês. O desenho mencionado pela sra. Verdurin faz referência à série com fábulas de La Fontaine. Reafirma-se, novamente, o interesse de Swann pelo Antigo Regime francês. [n. e.]

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