A Hora da Estrela
continuando...
Macabéa pedir perdão? Porque sempre se pede. Por quê?
Resposta: é assim porque assim é. Sempre foi? Sempre será. E se não
foi? Mas eu estou dizendo que é. Pois.
Via-se perfeitamente que estava viva pelo piscar constante dos
olhos grandes, pelo peito magro que se levantava e abaixava em
respiração talvez difícil. Mas quem sabe se ela não estaria precisando
de morrer? Pois há momentos em que a pessoa está precisando de
uma pequena mortezinha e sem nem ao menos saber. Quanto a mim,
substituo o ato da morte por um seu símbolo. Símbolo este que pode
se resumir num profundo beijo mas não na parede áspera e sim
boca-a-boca na agonia do prazer que é morte. Eu, que
simbolicamente morro várias vezes só para experimentar a
ressurreição.
Acho com alegria que ainda não chegou a hora de estrela de
cinema de Macabéa morrer. Pelo menos ainda não consigo adivinhar
se lhe acontece o homem louro e estrangeiro. Rezem por ela e que
todos interrompam o que estão fazendo para soprar-lhe vida, pois
Macabéa está por enquanto solta no acaso como a porta balançando
ao vento no infinito. Eu poderia resolver pelo caminho mais fácil,
matar a menina-infante, mas quero o pior: a vida. Os que me lerem,
assim, levem um soco no estômago para ver se é bom. A vida é um
soco no estômago.
Por enquanto Macabéa não passava de um vago sentimento nos
paralelepípedos sujos. Eu poderia deixá-la na rua e simplesmente não
acabar a história. Mas não: irei até onde o ar termina, irei até onde a
grande ventania se solta uivando, irei até onde o vácuo faz uma
curva, irei aonde meu fôlego me levar. Meu fôlego me leva a Deus?
Estão tão puro que nada sei. Só uma coisa eu sei: não preciso ter
piedade de Deus. Ou preciso?
Tanto estava viva que se mexeu devagar e acomodou o corpo em
posição fetal. Grotesca como sempre fora. Aquela relutância em ceder,
mas aquela vontade do grande abraço. Ela se abraçava a si mesma
com vontade do doce nada. Era uma maldita e não sabia. Agarrava-se
a um fiapo de consciência e repetia mentalmente sem cessar: eu sou,
eu sou, eu sou. Quem era, é que não sabia. Fora buscar no próprio
profundo e negro âmago de si mesma o sopro de vida que Deus nos
dá.
Então — ali deitada — teve uma úmida felicidade suprema, pois
ela nascera para o abraço da morte. A morte que é nesta história o
meu personagem predileto. Iria ela dar adeus a si mesma? Acho que
ela não vai morrer porque tem tanta vontade de viver. E havia certa
sensualidade no modo como se encolhera. Ou é porque a pré-morte
se parece com a intensa ânsia sensual? É que o rosto dela lembrava
um esgar de desejo. As coisas são sempre vésperas e se ela não morre
agora está como nós na véspera de morrer, perdoai-me lembrar-vos
porque quanto a mim não me perdoo a clarividência.
Um gosto suave, arrepiante, gélido e agudo como no amor. Seria
esta a graça a que vós chamais de Deus? Sim? Se iria morrer, na
morte passava de virgem a mulher. Não, não era morte pois não a
quero para a moça: só um atropelamento que não significava sequer
desastre. Seu esforço de viver parecia uma coisa que, se nunca
experimentara, virgem que era, ao menos intuíra, pois só agora
entendia que mulher nasce mulher desde o primeiro vagido. O
destino de uma mulher é ser mulher. Intuíra o instante quase
dolorido e esfuziante do desmaio do amor. Sim, doloroso
reflorescimento tão difícil que ela empregava nele o corpo e a outra
coisa que vós chamais de alma e que eu chamo — o quê?
Aí Macabéa disse uma frase que nenhum dos transeuntes
entendeu. Disse bem pronunciado e claro:
— Quanto ao futuro.
Terá tido ela saudade do futuro? Ouço a música antiga de
palavras e palavras, sim, é assim. Nesta hora exata Macabéa sente
um fundo enjoo de estômago e quase vomitou, queria vomitar o que
não é corpo, vomitar algo luminoso. Estrela de mil pontas.
O que é que estou vendo agora e que me assusta? Vejo que ela
vomitou um pouco de sangue, vasto espasmo, enfim o âmago tocando
no âmago: vitória!
E então — então o súbito grito estertorado de uma gaivota, de
repente a águia voraz erguendo para os altos ares a ovelha tenra, o
macio gato estraçalhando um rato sujo e qualquer, a vida come a
vida.
continua pág 87...
"Clarice Lispector deixou vários depoimentos sobre a sua produção literária. Em alguns, parecia se defender do estranhamento que causava em leitores e críticos.
Ela tinha consciência de sua diferença. Desde pequena, ao ver recusadas as histórias que mandava para um jornal de Recife, pressentia que era porque nenhuma “contava os fatos necessários a uma história”, nenhuma relatava um acontecimento. Sabia também, já adulta, que poderia tornar mais “atraente” o seu texto se usasse, “por exemplo, algumas das coisas que emolduram uma vida ou uma coisa ou romance ou um personagem”.
Entretanto, mesmo arriscando-se ao rótulo de escritora difícil, mesmo admitindo ter um público mais reduzido, ela não conseguiria abrir mão de seu traçado: “Tem gente que cose para fora, eu coso para dentro”. Ela se afastou dos “escritores que por opção e engajamento defendem valores morais, políticos e sociais, outros cuja literatura é dirigida ou planificada a fim de exaltar valores, geralmente impostos por poderes políticos, religiosos etc., muitas vezes alheios ao escritor”, em nome de uma outra forma de questionar a realidade e nela intervir, através da literatura."
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"Clarice Lispector deixou vários depoimentos sobre a sua produção literária. Em alguns, parecia se defender do estranhamento que causava em leitores e críticos.
Ela tinha consciência de sua diferença. Desde pequena, ao ver recusadas as histórias que mandava para um jornal de Recife, pressentia que era porque nenhuma “contava os fatos necessários a uma história”, nenhuma relatava um acontecimento. Sabia também, já adulta, que poderia tornar mais “atraente” o seu texto se usasse, “por exemplo, algumas das coisas que emolduram uma vida ou uma coisa ou romance ou um personagem”.
Entretanto, mesmo arriscando-se ao rótulo de escritora difícil, mesmo admitindo ter um público mais reduzido, ela não conseguiria abrir mão de seu traçado: “Tem gente que cose para fora, eu coso para dentro”. Ela se afastou dos “escritores que por opção e engajamento defendem valores morais, políticos e sociais, outros cuja literatura é dirigida ou planificada a fim de exaltar valores, geralmente impostos por poderes políticos, religiosos etc., muitas vezes alheios ao escritor”, em nome de uma outra forma de questionar a realidade e nela intervir, através da literatura."
Clarisse Fukelman, Professora de Literatura Brasileira da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.
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Leia também:
A Hora da Estrela - Macabéa, Ave Maria
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