quinta-feira, 19 de dezembro de 2024

Marcel Proust - No Caminho de Swann (III - um amor de swann, Para fazer parte - a)

em busca do tempo perdido


volume I
No Caminho de Swann


ao senhor gaston calmette
como um testemunho de profundo e afetuoso reconhecimento
— marcel proust


um amor de swann


III(a) 


     Para fazer parte do “pequeno núcleo”, do “pequeno grupo”, do “pequeno clã” dos Verdurin, bastava uma condição, mas esta indispensável: aderir tacitamente a um credo entre cujos artigos figurava o de que o pianista protegido naquele ano pela sra. Verdurin, e de quem ela dizia: “Não devia ser permitido tocar Wagner tão bem!”, “enterrava” ao mesmo tempo a Planté e a Rubinstein e que o dr. Cottard tinha mais diagnóstico que Potain.[1] Qualquer “novo recruta” que os Verdurin não pudessem convencer de que as recepções das pessoas que não os frequentavam eram aborrecidas como a chuva, via-se imediatamente excluído. Como nesse ponto eram as mulheres mais rebeldes do que os homens em desistir de toda curiosidade mundana e de informar-se pessoalmente dos atrativos dos outros salões, e como por outro lado sentiam os Verdurin que esse espírito crítico e o demônio da frivolidade poderiam, pelo contágio, ser fatais à ortodoxia da igrejinha, foram levados a rejeitar sucessivamente todos os “fiéis” do sexo feminino.
     Além da jovem esposa do doutor, estavam, naquele ano, quase que unicamente reduzidos (embora a sra. Verdurin fosse virtuosa e pertencesse a uma respeitável família burguesa extraordinariamente rica e completamente obscura, com a qual pouco a pouco fora cessando, por conta própria, quaisquer relações) a uma pessoa quase do mundo galante, a sra. de Crécy, que a sra. Verdurin chamava pelo nome de batismo, Odette, e declarava que “era um amor”, e à tia do pianista, a qual, pelo visto, devia ter sido porteira; pessoas, em suma, ignorantes da alta sociedade e tão ingênuas que não seria difícil impingir-lhes que a princesa de Sagan e a duquesa de Guermantes eram obrigadas a pagar a infelizes para ter gente em seus jantares, tanto assim que, se lhes propusessem conseguir um convite para a casa daquelas duas grandes damas, a antiga porteira e a cocote o teriam desdenhosamente recusado.[2]
     Os Verdurin não faziam convites para jantar: sempre se tinha, em casa deles, “um lugarzinho à mesa”. Para o serão, não havia programa. O jovem pianista tocava, mas somente “se lhe desse na fantasia”, pois não se forçava a ninguém e, como dizia a sra. Verdurin: “Tudo pelos amigos, vivam os camaradas!”. Se o pianista queria tocar a cavalgada das Valquírias ou o prelúdio do Tristão, a sra. Verdurin protestava, não que essa música lhe desagradasse, mas porque, pelo contrário, lhe causava uma impressão muito forte. “Querem então que eu tenha a minha enxaqueca? Bem sabem que é sempre a mesma coisa quando ele toca isso. Já sei o que me espera. Amanhã, quando quiser levantar-me, adeus, estou imprestável!” Quando ele não tocava, conversava-se, e um dos amigos, em geral seu pintor favorito do momento, “soltava”, como dizia o sr. Verdurin, “uma daquelas que faziam todo mundo rebentar de riso”, principalmente a sra. Verdurin, a quem — de tal modo tomava ela ao pé da letra a expressão figurada de suas emoções — o dr. Cottard (um jovem estreante daquela época) teve um dia de reajustar a mandíbula, que ela desarticulara de tanto rir.
     Era proibida a casaca, porque estavam entre “camaradas” e para não se assemelharem aos “maçantes”, de que fugiam como da peste e que só convidavam para as grandes reuniões, dadas o mais raramente possível e apenas quando pudessem divertir o pintor ou tornar conhecido o músico.[3] No resto do tempo contentavam-se em representar charadas, em cear fantasiados, mas entre si, sem introduzir nenhum estranho na “rodinha”.
     Mas à medida que os “camaradas” iam assumindo maior importância na vida da sra. Verdurin, os maçantes, os réprobos, passaram a ser todas as pessoas ou coisas que retinham os amigos longe dela, que lhes prejudicavam às vezes a disponibilidade, era a mãe deste, a profissão daquele, a casa de campo ou a má saúde de um terceiro. Se o dr. Cottard achava que devia partir, erguendo-se da mesa para ir visitar um doente em perigo, dizia-lhe a sra. Verdurin: “Quem sabe se não seria melhor para ele que o senhor não o fosse perturbar agora! Passaria uma boa noite sem o senhor; e amanhã cedinho, quando fosse vê-lo, o doutor o encontraria curado”. Desde princípios de dezembro adoecia com a ideia de que os fiéis “desertariam” para as festas do Natal e Ano-Novo. A tia do pianista exigia então que ele jantasse em família, na casa da mãe dela.

— Acha então que a sua mãe vai morrer — exclamava duramente a sra. Verdurin — se não jantarem com ela na passagem do ano, como se faz na província?[4] 

     Essas inquietações voltavam na Semana Santa.

— O senhor, doutor, um sábio, um espírito forte, naturalmente que há de vir na Sexta-Feira Santa, como num dia qualquer, não é assim? — disse ela no primeiro ano a Cottard, em um tom seguro, como se não tivesse dúvida alguma. Mas tremia enquanto esperava a resposta, pois, se ele não comparecesse, arriscava-se a ficar sozinha.
— Sim, virei na Sexta-Feira Santa… apresentar-lhe as despedidas, pois vamos passar as festas da Páscoa em Auvergne.
— Em Auvergne? Para ser devorado pelas pulgas e outros bichos? Bom proveito lhe faça.

     E após um silêncio:

— Se ao menos nos tivesse avisado, poderíamos dar um jeito nisso e fazer a viagem juntos, com mais comodidade. 

     Da mesma forma, quando um “fiel” tinha um amigo, ou uma “companheira”, um flerte, que pudessem às vezes ser causa de “deserção”, os Verdurin, que não se escandalizavam de que uma mulher tivesse um amante, desde que o tivesse em casa deles, o amasse através deles, e não o preferisse a eles, diziam: “Pois bem! Traga-nos esse amigo”. E punham-no à prova, para ver se era capaz de não ter segredos para a sra. Verdurin, e se o podiam agregar ao “pequeno clã”. Se o resultado era desfavorável, chamavam à parte o fiel que o tinha apresentado e prestavam-lhe o serviço de malquistá-lo com seu amigo ou sua amante. Em caso contrário, o “novato” se tornava por sua vez um fiel. Assim, quando naquele ano a demi-mondaine contou ao sr. Verdurin que travara conhecimento com um homem encantador, o sr. Swann, e insinuou que o mesmo estimaria muito ser recebido em casa deles, o sr. Verdurin transmitiu ato contínuo essa petição à mulher. (Só formava opinião depois de ouvir a mulher, e sua principal missão consistia em executar, com todo engenho e arte, os desejos desta e dos fiéis.) 

— A senhora de Crécy tem um pedido a fazer-te. Desejava apresentar-te um de seus amigos, o senhor Swann. Que dizes? 
— Ora essa! Poderia recusar-se alguma coisa a uma preciosidade dessas? Cale-se, ninguém está pedindo a sua opinião, afirmo que você é uma preciosidade. 
— Já que assim querem… — respondeu Odette, em um tom afetado, e acrescentou: 
— Bem sabem que não ando fishing for compliments. — Pois bem! Traga-nos então o seu amigo, se ele for agradável.

     É certo que a “rodinha” nada tinha em comum com a sociedade que Swann frequentava, e um puro mundano acharia que não valia a pena ocupar sua excepcional posição para fazer-se apresentar em casa dos Verdurin. Mas Swann gostava tanto de mulheres que, depois de haver conhecido quase todas as da aristocracia, onde elas nada mais tinham que lhe ensinar, não mais atribuíra a essas cartas de naturalização, quase títulos de nobreza, que lhe outorgara o bairro de Saint-Germain, senão um valor de troca, de carta de crédito, sem valor por si mesma, mas que lhe permitia improvisar-se uma situação em algum recanto provinciano ou em algum meio obscuro de Paris, onde a filha do fidalgote ou do tabelião lhe parecera bonita. Pois o desejo ou o amor lhe dava então um sentimento de vaidade a que era infenso na vida ordinária (embora fosse esse mesmo sentimento que outrora o encaminhara para a carreira mundana, fazendo-o desperdiçar o espírito em prazeres frívolos e pôr sua erudição artística a serviço das damas da sociedade que desejam comprar quadros ou mobiliar seu palacete) e que o levava ao desejo de se ostentar, ante uma desconhecida de quem se enamorara, com uma elegância que o simples nome de Swann não implicava. E tanto mais o desejava quando a desconhecida era de condição humilde. Da mesma forma que não é a um homem inteligente que outro homem inteligente terá medo de parecer tolo, não é da parte de um grão-senhor que um elegante receará não ver reconhecida sua elegância, mas da parte de um rústico. Os três quartos dos alardes de espírito e vaidosas mentiras que os homens prodigaram desde que o mundo é mundo e que só podiam rebaixá-los foram dedicados a gente inferior. E Swann, que era simples e negligente com uma duquesa, temia ser desprezado e tomava atitudes em presença de uma criada.
     Não era desses que, por preguiça ou resignado sentimento da obrigação que lhes impõe o fastígio social de se amarrarem a determinada margem, evitam os prazeres que lhes oferece a realidade fora da posição mundana onde vivem acantonados até a morte, acabando por chamar de prazeres, na falta de coisa melhor e por força do hábito, às medíocres diversões e aborrecimentos suportáveis que sua existência encerra. Swann, esse, não procurava achar bonitas as mulheres com quem passava o tempo, mas sim passar o tempo com as mulheres que primeiro achara bonitas. E muitas vezes eram mulheres de beleza bastante vulgar, pois as qualidades físicas que buscava sem se dar conta estavam em completa oposição com aquelas que lhe tornavam admiráveis as mulheres esculpidas ou pintadas por seus mestres prediletos. A profundeza, a melancolia da expressão, gelavam-lhe os sentidos, que despertavam, ao contrário, ante uma carne sadia, abundante e rosada.
     Quando encontrava em viagem uma família com a qual seria elegante não travar relações, mas em que descobria certa mulher com um encanto que ainda lhe era desconhecido, “guardar a linha” e enganar o desejo que ela lhe despertara, substituir o prazer que poderia conhecer com ela por um prazer diferente, escrevendo a uma antiga amante para que viesse vê-lo, isso lhe pareceria uma abdicação tão covarde diante da vida e uma renúncia tão estúpida a uma nova felicidade, como se em vez de visitar a terra onde se achava, se metesse em seu quarto, a olhar “vistas” de Paris. Não se encerrava no edifício de suas relações, mas fizera com ele, para poder erguê-lo novamente em toda parte onde uma mulher lhe agradasse, uma dessas tendas desmontáveis que os exploradores carregam consigo. Quanto ao que não podia ser transportado ou trocado por um prazer novo, ele o considerava sem valor, por mais invejável que parecesse aos outros. Quantas vezes seu crédito junto a uma duquesa, formado com os desejos que a dama acumulara durante anos, de lhe ser agradável, sem nunca haver encontrado uma ocasião propícia, não o desfazia Swann de uma vez por todas, reclamando dela, com um indiscreto despacho, uma recomendação telegráfica que o pusesse imediatamente em contato com um de seus intendentes cuja filha lhe chamara a atenção no campo, como o faria um esfaimado que trocasse um diamante por um pedaço de pão! E aquilo, depois, até o divertia, pois havia nele, contrabalançada por sutis delicadezas, certa dose de grosseria. Depois, pertencia a essa categoria de homens inteligentes que vivem na ociosidade e que procuram um consolo e talvez uma escusa na ideia de que essa ociosidade oferece a sua inteligência objetos tão dignos de interesse como os que lhes proporcionaria a arte ou o estudo, e de que a “Vida” apresenta situações mais interessantes, mais romanescas que todos os romances. Pelo menos assim o assegurava, convencendo disso aos mais finos amigos, especialmente o barão de Charlus, a quem divertia com a narrativa de suas aventuras picantes, por exemplo, que, encontrando no trem uma mulher e tendo-a levado para sua casa, viera a descobrir que se tratava da irmã de um soberano que no momento tinha nas mãos todos os fios da política europeia, da qual assim se inteirava de um modo sumamente agradável; ou que, por um complexo jogo de circunstâncias, ia depender da eleição do papa que ele se tornasse ou não amante de uma cozinheira.[5]
     Aliás, não era apenas a brilhante falange de virtuosas matronas, de generais, de acadêmicos, com os quais estava particularmente ligado, que Swann obrigava com tanto cinismo a lhe servir de medianeiros. Todos os seus amigos costumavam receber de quando em quando uma carta sua, pedindo uma recomendação ou apresentação, com tal habilidade diplomática que, persistindo através dos amores sucessivos e dos diferentes pretextos, revelavam, mais do que o fariam palavras irrefletidas, um caráter permanente e uma identidade de fins. Muitos anos depois, quando comecei a interessar-me por seu caráter, devido a semelhanças que sob outros aspectos oferecia com o meu, gostava de ouvir contar que quando ele escrevia a meu avô (que ainda não o era, pois foi pela época de meu nascimento que começou o grande caso amoroso de Swann, interrompendo por algum tempo essas práticas), este, ao ver no envelope a letra do amigo, exclamava: “Alerta! Aí vem Swann com algum pedido…”. E, ou por desconfiança, ou por esse sentimento inconscientemente diabólico que nos leva a oferecer uma coisa só às pessoas que não a desejam, meus avós nunca atendiam aos pedidos mais fáceis de satisfazer que Swann lhes dirigia, como o de apresentá-lo a uma jovem que jantava todos os domingos em nossa casa, vendo-se obrigados cada vez que Swann lhes tocava no assunto a fingir que ultimamente não a viam, quando toda a semana tinham estado a pensar em quem convidar junto com ela, e muitas vezes sem encontrar ninguém que servisse, só para não acenar àquele que se sentiria tão feliz com isso.
     Às vezes, um casal amigo de meus avós e que até então se queixava de nunca receber uma visita de Swann lhes anunciava com satisfação, e talvez um tanto com a intenção de provocar inveja, que Swann se mostrava agora amabilíssimo e não se separava deles. Meu avô não queria estragar-lhes o prazer, mas olhava para minha avó, cantarolando:

Que mistério será esse 
Que não posso compreender? 
ou
Visão fugitiva…
ou
Em tais assuntos 
O melhor é nada ver.[6] 

     Alguns meses depois, se meu avô perguntava ao novo amigo de Swann: “E Swann, o senhor continua a vê-lo muito seguido?”, o nariz do interlocutor se alongava: “Nunca diga o seu nome na minha presença!”. “E eu que os julgava tão amigos…” Desse modo, fora íntimo, durante alguns meses, de uns primos de minha avó, em cuja casa jantava quase todos os dias. Mas subitamente deixou de ir, sem dizer uma palavra. Julgaram que estivesse doente e já a prima de minha avó ia mandar pedir notícias suas quando encontrou na despensa uma carta que fora parar por descuido no livro de contas da cozinheira. Nessa carta comunicava àquela mulher que iria deixar Paris e portanto não mais poderia frequentar a casa. É que ela era sua amante e, no momento de romper, só a ela julgou que deveria avisar.
     Quando sua amante do momento era pelo contrário uma pessoa da sociedade ou pelo menos uma pessoa cuja origem muito humilde ou cuja situação muito irregular não impedia que ele a fizesse receber em sociedade, então, por ela, Swann voltava àquele ambiente, mas apenas dentro da órbita particular onde ela se movia ou aonde ele a tinha levado. “Inútil contar com Swann esta noite”, diziam, “bem sabem que é o dia de Ópera da sua americana”. Fazia com que a convidassem para salões particularmente fechados onde ele tinha seus hábitos, suas ceias hebdomadárias, seu pôquer; todas as noites, depois que uma leve ondulação aplicada a sua vasta cabeleira ruiva temperava de alguma brandura a vivacidade de seus olhos verdes, ele escolhia uma flor para sua botoeira e ia encontrar-se com a amante à mesa de alguma das mulheres de seu círculo; e então, pensando nas provas de admiração e amizade que as pessoas da moda ali presentes, e para as quais ele era o árbitro, lhe prodigalizariam diante da mulher a quem amava, ainda encontrava encanto naquela vida mundana de que se enfadara, mas cuja substância, penetrada e ardentemente colorida por essa luz que nela brincava, parecia preciosa e bela depois que lhe incorporara um novo amor.
     Mas[7] ao passo que cada uma dessas ligações, ou cada um desses flertes, fora a realização mais ou menos completa de um sonho nascido da vista de um rosto ou de um corpo que, espontaneamente, sem se esforçar, achara belos, em compensação, quando um dia no teatro foi apresentado a Odette de Crécy por um de seus amigos de outros tempos, que lhe falara dela como de uma mulher encantadora com quem talvez pudesse ele chegar a alguma coisa, mas dando-a por mais difícil do que era na realidade a fim de parecer ele próprio ter feito alguma coisa de mais amável ao apresentá-lo, ela se afigurara a Swann não por certo sem beleza, mas de um gênero de beleza que lhe era indiferente, que não lhe inspirava nenhum desejo, que até lhe causava uma espécie de repulsa física, uma dessas mulheres como todo mundo as tem, diferentes para cada um, e que são o oposto do tipo que nossos sentidos reclamam. Tinha ela um perfil muito incisivo, uma pele muito frágil, maçãs muito salientes e as feições muito retesadas para que lhe pudesse agradar. Seus olhos eram belos, mas tão grandes que, deixando-se vencer por sua própria massa, fatigavam o resto do rosto e davam a impressão de que ela estava desfigurada ou de mau humor. Algum tempo depois daquela apresentação, Odette lhe escreveu pedindo que a deixasse ver as suas coleções, que tanto interessavam a “ela, uma ignorante que tinha o gosto das coisas bonitas” e acrescentando que o conheceria melhor quando o visse em “seu home” onde o imaginava “tão confortável, com o seu chá e os seus livros”, embora não lhe ocultasse a surpresa de vê-lo habitar naquele bairro que devia ser tão triste e “que era tão pouco smart para ele que o era tanto”. E depois que Swann deixou que o visitasse, Odette, à despedida, lamentou haver-se demorado tão pouco naquela casa onde tivera a ventura de penetrar, referindo-se a ele como se significasse para ela alguma coisa mais que as outras criaturas a que lhe conhecia e parecendo estabelecer entre ambos uma espécie de laço romanesco, o que o fizera sorrir. Mas na idade já um pouco desenganada de que se aproximava Swann e em que a gente sabe contentar-se em estar enamorado pelo simples prazer de o estar, sem muito exigir em troca, essa união dos corações, se já não é, como na primeira juventude, o fim a que tende necessariamente o amor, lhe fica ligada por tão forte associação de ideias que pode tornar-se a sua causa, quando se apresenta antes dele. Antes, sonhava-se possuir o coração da mulher amada; mais tarde, sentir que se possui o coração de uma mulher pode bastar para que nos enamoremos dela. E como antes de tudo se procura no amor um prazer subjetivo, assim, nessa idade em que seria de esperar que o gosto pela beleza feminina constituísse a maior parte desse sentimento, pode nascer o amor — o amor mais físico — sem que tenha havido em sua base um desejo prévio. Nessa época da vida já se foi atingido várias vezes pelo amor e este já não evolui por si mesmo segundo as suas próprias leis desconhecidas e fatais, ante o nosso coração atônito e passivo. Corremos em seu auxílio e o enganamos com a memória e com a sugestão. Ao reconhecer um de seus sintomas, relembramos e ressuscitamos os outros. Como temos a sua eterna canção inteiramente gravada dentro de nós, não há necessidade de que uma mulher nos diga o princípio — cheio da admiração que inspira a beleza — para acharmos em seguida a continuação. E se ela começa pelo meio — no ponto em que os corações se aproximam e se fala em viver unicamente um para o outro —, já estamos bastante habituados a essa música para que logo alcancemos a nossa parceira, no trecho em que ela nos espera.

continua na página 136...
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Leia também:

Volume 1
No Caminho de Swann (III - um amor de swann, Para fazer parte - a)
Volume 2
Volume 3
Volume 4
Volume 5
Volume 6
Volume 7
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[1] O recuo no tempo para apresentar “Um amor de Swann” é também oportunidade de flagrar a primeira configuração do “pequeno núcleo” dos Verdurin. Ao final do livro, e após sucessivas mudanças, o herói lerá a descrição desse mesmo salão feita pelo “pseudoGoncourt”. E o leitor terá diante de si a possibilidade de visualizar o contraste revelador entre uma descrição plana desse salão (“pseudoGoncourt”) e a riqueza das sucessivas mudanças que ele veio acompanhando até ali. Francis Planté é pianista francês cuja carreira se situa entre 1870 e 1900; Anton Rubinstein é pianista e compositor russo que fez várias excursões a Paris, a partir de 1840 até 1886. Potain era um dos grandes médicos parisienses daquele fim de século, tornando-se membro da Academia de Medicina em 1882. [n. e.]
[2] Aqui estão citadas uma personagem do livro (a duquesa de Guermantes) e a princesa de Sagan, que, casada com o príncipe Seillière de Sagan, servia de exemplo de elegância. [n. e.]
[3] A partir do momento em que os membros do salão Verdurin começarem a sentir que vão ascender socialmente, ficará estabelecida a obrigatoriedade do smoking. [n. e.]
[4] Mais tarde, será a notícia da própria morte do pianista que será tratada como uma grande “maçante”, atrapalhando o bom humor de uma reunião à beira-mar. [n. e.]
[5] Charles Swann e o barão de Charlus, pela entrega à sua paixão carnal e ao culto do interesse romanesco da vida, incorporam justamente o perfil dos estéreis diletantes em matéria de arte. [n. e.]
[6] As três citações: a primeira, do final do primeiro ato da ópera La dame blanche, criada em 1825, com música de Boieldieu e libreto de Scribe; a segunda, do segundo ato de Hérodiade, peça de Massenet a que Proust assistiu em 1912; e a terceira, do terceiro ato de Barbe-Bleu, peça de Offenbach, de 1866.
[7] A adversativa introduz a mudança radical que Odette provocará na existência frívola e prazerosa de Swann. [n. e.]

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