Aluísio Azevedo
XVII
.
Mal os Carapicus sentiram a aproximação dos rivais, um grito de alarma ecoou por toda a estalagem
e o rolo dissolveu-se de improviso, sem que a desordem cessasse. Cada qual correu à casa,
rapidamente, em busca do ferro, do pau e de tudo que servisse para resistir e para matar. Um só
impulso os impelia a todos; já não havia ali brasileiros e portugueses, havia um só partido que ia ser
atacado pelo partido contrário; os que se batiam ainda há pouco emprestavam armas uns aos outros,
limpando com as costas das mãos o sangue das feridas. Agostinho, encostado ao lampião do meio do
cortiço, cantava em altos berros uma coisa que lhe parecia responder à música bárbara que entoavam
lá fora os inimigos; a mãe dera-lhe licença, a pedido dele, para pôr um cinto de Nenen, em que o
pequeno enfiou a faca da cozinha. Um mulatinho franzino, que até ai não fora notado por ninguém
no São Romão, postou-se defronte da entrada, de mãos limpas, à espera dos invasores; e todos
tiveram confiança nele porque o ladrão, além de tudo, estava rindo.
Os Cabeças-de-Gato assomaram afinal ao portão. Uns cem homens, em que se não via a arma que
traziam. Porfiro vinha na frente, a dançar, de braços abertos, bamboleando o corpo e dando rasteiras
para que ninguém lhe estorvasse a entrada. Trazia o chapéu à ré, com um laço de fita amarela
flutuando na copa.
- Aguenta! Aguenta! Faz frente! clamavam de dentro os Carapicus.
E os outros, cantando o seu hino de guerra, entraram e aproximaram-se lentamente, a dançar como
selvagens.
As navalhas traziam-nas abertas e escondidas na palma da mão.
Os Carapicus enchiam a metade do cortiço. Um silêncio arquejado sucedia à estrepitosa vozeria do
rolo que findara. Sentia-se o hausto impaciente da ferocidade que atirava aqueles dois bandos de
capoeiras um contra o outro. E, no entanto, o sol, único causador de tudo aquilo, desaparecia de todo
nos limbos do horizonte, indiferente, deixando atrás de si as melancolias do crepúsculo, que é a
saudade da terra quando ele se ausenta, levando consigo a alegria da luz e do calor
Lá na janela do Barão, o Botelho, entusiasmado como sempre por tudo que lhe cheirava a guerra,
soltava gritos de aplauso e dava brados de comando militar.
E os Cabeças-de-Gato aproximavam-se cantando, a dançar, rastejando alguns de costas para o chão,
firmados nos pulsos e nos calcanhares.
Dez Carapicus saíram em frente; dez Cabeças-de-Gato se alinharam defronte deles.
E a batalha principiou, não mais desordenada e cega, porém com método, sob o comando de Porfiro
que, sempre a cantar ou assoviar, saltava em todas as direções, sem nunca ser alcançado por
ninguém.
Desferiram-se navalhas contra navalhas, jogaram-se as cabeçadas e os voa-pés. Par a par, todos os
capoeiras tinham pela frente um adversário de igual destreza que respondia a cada investida com um
salto de gato ou uma queda repentina que anulava o golpe. De parte a parte esperavam que o cansaço
desequilibrasse as forças, abrindo furo à vitória; mas um fato veio neutralizar inda uma vez a
campanha: Imenso rebentão de fogo esgargalhava-se de uma das casas do fundo, o número 88. E
agora o incêndio era a valer.
Houve nas duas maltas um súbito espasmo de terror. Abaixaram-se os ferros e calou-se o hino de
morte. Um clarão tremendo ensanguentou o ar, que se fechou logo de fumaça fulva.
A Bruxa conseguira afinal realizar o seu sonho de louca: o cortiço ia arder; não haveria meio de
reprimir aquele cruento devorar de labaredas. Os Cabeças-de-Gato, leais nas suas justas de partido,
abandonaram o campo, sem voltar o rosto, desdenhosos de aceitar o auxilio de um sinistro e
dispostos até a socorrer o inimigo, se assim fosse preciso. E nenhum dos Carapicus os feriu pelas
costas. A luta ficava para outra ocasião. E a cena transformou-se num relance; os mesmos que
barateavam tão facilmente a vida, apressavam-se agora a salvar os miseráveis bens que possuíam
sobre a terra. Fechou-se um entra-e-sai de maribondos defronte daquelas cem casinhas ameaçadas
pelo fogo. Homens e mulheres corriam de cá para lá com os tarecos ao ombro, numa balbúrdia de
doidos. O pátio e a rua enchiam-se agora de camas velhas e colchões espocados. Ninguém se
conhecia naquela zumba de gritos sem nexo, e choro de crianças esmagadas, e pragas arrancadas
pela dor e pelo desespero. Da casa do Barão saiam clamores apopléticos; ouviam-se os guinchos de
Zulmira que se espolinhava com um ataque. E começou a aparecer água. Quem a trouxe? Ninguém
sabia dizê-lo; mas viam-se baldes e baldes que se despejavam sobre as chamas.
Os sinos da vizinhança começaram a badalar.
E tudo era um clamor.
A Bruxa surgiu à janela da sua casa, como à boca de uma fornalha acesa. Estava horrível; nunca fora
tão bruxa. O seu moreno trigueiro, de cabocla velha, reluzia que nem metal em brasa; a sua crina
preta, desgrenhada, escorrida e abundante como as das éguas selvagens, dava-lhe um caráter
fantástico de fúria saída do inferno. E ela ria-se, ébria de satisfação, sem sentir as queimaduras e as
feridas, vitoriosa no meio daquela orgia de fogo, com que ultimamente vivia a sonhar em segredo a
sua alma extravagante de maluca.
Ia atirar-se cá para fora, quando se ouviu estalar o madeiramento da casa incendiada, que abateu
rapidamente, sepultando a louca num montão de brasas.
Os sinos continuavam a badalar aflitos. Surgiam aguadeiros com as suas pipas em carroça,
alvoroçados, fazendo cada qual maior empenho em chegar antes dos outros e apanhar os dez mil-réis
da gratificação. A polícia defendia a passagem ao povo que queria entrar. A rua lá fora estava já
atravancada com o despojo de quase toda a estalagem. E as labaredas iam galopando desembestadas
para a direita e para a esquerda do número 88. Um papagaio, esquecido à parede de uma das casinhas
e preso à gaiola, gritava furioso, como se pedisse socorro.
Dentro de meia hora o cortiço tinha de ficar em cinzas. Mas um fragor de repiques de campainhas e
estridente silvar de válvulas encheu de súbito todo o quarteirão, anunciando que chegava o corpo dos
bombeiros.
E logo em seguida apontaram carros à desfilada, e um bando de demônios de blusa clara, armados
uns de archotes e outros de escadinhas de ferro, apoderaram-se do sinistro, dominando-o
incontinenti, como uma expedição mágica, sem uma palavra, sem hesitações e sem atropelos. A um
só tempo viram-se fartas mangas d’água chicoteando o fogo por todos os lados; enquanto, sem se
saber como, homens, mais ágeis que macacos, escalavam os telhados abrasados por escadas que mal
se distinguiam; e outros invadiam o coração vermelho do incêndio, a dardejar duchas em torno de si,
rodando, saltando, piruetando, até estrangularem as chamas que se atiravam ferozes para cima deles,
como dentro de um inferno; ao passo que outros, cá de fora, imperturbáveis, com uma limpeza de
máquina moderna, fuzilavam de água toda a estalagem, número por número, resolvidos a não deixar
uma só telha enxuta.
O povo aplaudia-os entusiasmado, já esquecido do desastre e só atenção para aquele duelo contra o
incêndio. Quando um bombeiro, de cima do telhado, conseguiu sufocar uma ninhada de labaredas,
que surgia defronte dele, rebentou cá debaixo uma roda de palmas, e o herói voltou-se para a
multidão, sorrindo e agradecendo.
Algumas mulheres atiravam-lhe beijos, entre brados de ovação.
Continua página 104...
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Leia também:
O Cortiço - XVII: os Carapicus sentiram a aproximação dos rivais
O Cortiço - XVIII: Por esse tempo
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Aluísio Azevedo (Aluísio Tancredo Gonçalves de Azevedo), caricaturista, jornalista, romancista e diplomata, nasceu em São Luís, MA, em 14 de abril de 1857, e faleceu em Buenos Aires, Argentina, em 21 de janeiro de 1913.
Era filho do vice-cônsul português David Gonçalves de Azevedo e de D. Emília Amália Pinto de Magalhães e irmão mais moço do comediógrafo Artur Azevedo. Sua mãe havia casado, aos 17 anos, com um comerciante português. O temperamento brutal do marido determinou o fim do casamento. Emília refugiou-se em casa de amigos, até conhecer o vice-cônsul de Portugal, o jovem viúvo David. Os dois passaram a viver juntos, sem contraírem segundas núpcias, o que à época foi considerado um escândalo na sociedade maranhense.
Da infância à adolescência, Aluísio estudou em São Luís e trabalhou como caixeiro e guarda-livros. Desde cedo revelou grande interesse pelo desenho e pela pintura, o que certamente o auxiliou na aquisição da técnica que empregará mais tarde ao caracterizar os personagens de seus romances. Em 1876, embarcou para o Rio de Janeiro, onde já se encontrava o irmão mais velho, Artur. Matriculou-se na Imperial Academia de Belas Artes, hoje Escola Nacional de Belas Artes. Para manter-se fazia caricaturas para os jornais da época, como O Fígaro, O Mequetrefe, Zig-Zag e A Semana Ilustrada. A partir desses “bonecos”, que conservava sobre a mesa de trabalho, escrevia cenas de romances.
A morte do pai, em 1878, obrigou-o a voltar a São Luís, para tomar conta da família. Ali começou a carreira de escritor, com a publicação, em 1879, do romance Uma lágrima de mulher, típico dramalhão romântico. Ajuda a lançar e colabora com o jornal anticlerical O Pensador, que defendia a abolição da escravatura, enquanto os padres mostravam-se contrários a ela. Em 1881, Aluísio lança O mulato, romance que causou escândalo entre a sociedade maranhense pela crua linguagem naturalista e pelo assunto tratado: o preconceito racial. O romance teve grande sucesso, foi bem recebido na Corte como exemplo de Naturalismo, e Aluísio pôde retornar para o Rio de Janeiro, embarcando em 7 de setembro de 1881, decidido a ganhar a vida como escritor.
Quase todos os jornais da época tinham folhetins, e foi num deles que Aluísio passou a publicar seus romances. A princípio, eram obras menores, escritas apenas para garantir a sua sobrevivência. Depois, surgiu nova preocupação no universo de Aluísio: a observação e análise dos agrupamentos humanos, a degradação das casas de pensão e sua exploração pelo imigrante, principalmente o português. Dessa preocupação resultariam duas de suas melhores obras: Casa de pensão (1884) e O cortiço (1890). De 1882 a 1895 escreveu sem interrupção romances, contos e crônicas, além de peças de teatro em colaboração com Artur de Azevedo e Emílio Rouède.
Em 1895 ingressou na diplomacia, momento em que praticamente cessa sua atividade literária. O primeiro posto foi em Vigo, na Espanha. Depois serviu no Japão, na Argentina, na Inglaterra e na Itália. Passara a viver em companhia de D. Pastora Luquez, de nacionalidade argentina, junto com os dois filhos, Pastor e Zulema, por ele adotados. Em 1910, foi nomeado cônsul de 1ª. classe, sendo removido para Assunção. Buenos Aires foi seu último posto. Ali faleceu, aos 56 anos. Foi enterrado naquela cidade. Seis anos depois, por uma iniciativa de Coelho Neto, a urna funerária de Aluísio Azevedo chegou a São Luís, onde o escritor foi sepultado.
Aluísio Azevedo (Aluísio Tancredo Gonçalves de Azevedo), caricaturista, jornalista, romancista e diplomata, nasceu em São Luís, MA, em 14 de abril de 1857, e faleceu em Buenos Aires, Argentina, em 21 de janeiro de 1913.
Era filho do vice-cônsul português David Gonçalves de Azevedo e de D. Emília Amália Pinto de Magalhães e irmão mais moço do comediógrafo Artur Azevedo. Sua mãe havia casado, aos 17 anos, com um comerciante português. O temperamento brutal do marido determinou o fim do casamento. Emília refugiou-se em casa de amigos, até conhecer o vice-cônsul de Portugal, o jovem viúvo David. Os dois passaram a viver juntos, sem contraírem segundas núpcias, o que à época foi considerado um escândalo na sociedade maranhense.
Da infância à adolescência, Aluísio estudou em São Luís e trabalhou como caixeiro e guarda-livros. Desde cedo revelou grande interesse pelo desenho e pela pintura, o que certamente o auxiliou na aquisição da técnica que empregará mais tarde ao caracterizar os personagens de seus romances. Em 1876, embarcou para o Rio de Janeiro, onde já se encontrava o irmão mais velho, Artur. Matriculou-se na Imperial Academia de Belas Artes, hoje Escola Nacional de Belas Artes. Para manter-se fazia caricaturas para os jornais da época, como O Fígaro, O Mequetrefe, Zig-Zag e A Semana Ilustrada. A partir desses “bonecos”, que conservava sobre a mesa de trabalho, escrevia cenas de romances.
A morte do pai, em 1878, obrigou-o a voltar a São Luís, para tomar conta da família. Ali começou a carreira de escritor, com a publicação, em 1879, do romance Uma lágrima de mulher, típico dramalhão romântico. Ajuda a lançar e colabora com o jornal anticlerical O Pensador, que defendia a abolição da escravatura, enquanto os padres mostravam-se contrários a ela. Em 1881, Aluísio lança O mulato, romance que causou escândalo entre a sociedade maranhense pela crua linguagem naturalista e pelo assunto tratado: o preconceito racial. O romance teve grande sucesso, foi bem recebido na Corte como exemplo de Naturalismo, e Aluísio pôde retornar para o Rio de Janeiro, embarcando em 7 de setembro de 1881, decidido a ganhar a vida como escritor.
Quase todos os jornais da época tinham folhetins, e foi num deles que Aluísio passou a publicar seus romances. A princípio, eram obras menores, escritas apenas para garantir a sua sobrevivência. Depois, surgiu nova preocupação no universo de Aluísio: a observação e análise dos agrupamentos humanos, a degradação das casas de pensão e sua exploração pelo imigrante, principalmente o português. Dessa preocupação resultariam duas de suas melhores obras: Casa de pensão (1884) e O cortiço (1890). De 1882 a 1895 escreveu sem interrupção romances, contos e crônicas, além de peças de teatro em colaboração com Artur de Azevedo e Emílio Rouède.
Em 1895 ingressou na diplomacia, momento em que praticamente cessa sua atividade literária. O primeiro posto foi em Vigo, na Espanha. Depois serviu no Japão, na Argentina, na Inglaterra e na Itália. Passara a viver em companhia de D. Pastora Luquez, de nacionalidade argentina, junto com os dois filhos, Pastor e Zulema, por ele adotados. Em 1910, foi nomeado cônsul de 1ª. classe, sendo removido para Assunção. Buenos Aires foi seu último posto. Ali faleceu, aos 56 anos. Foi enterrado naquela cidade. Seis anos depois, por uma iniciativa de Coelho Neto, a urna funerária de Aluísio Azevedo chegou a São Luís, onde o escritor foi sepultado.
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