Aluísio Azevedo
XV
.
O Garnisé tinha bastante gente essa noite. Em volta de umas doze mesinhas toscas, de pau, com uma
coberta de folha-de-flandres pintada de branco fingindo mármore, viam-se grupos de três e quatro
homens, quase todos em mangas de camisa, fumando e bebendo no meio de grande algazarra. Fazia-se largo consumo de cerveja nacional, vinho virgem, parati e laranjinha. No chão coberto de areia
havia cascas de queijo-de-minas, restos de iscas de fígado, espinhas de peixe, dando ideia de que ali
não só se enxugava como também se comia. Com efeito, mais para dentro, num engordurado bufete,
junto ao balcão e entre as prateleiras de garrafas cheias e arrolhadas, estava um travessão de assado
com batatas, um osso de presunto e vários pratos de sardinhas fritas. Dois candeeiros de querosene
fumegavam, encarvoando o teto. E de uma porta ao fundo, que escondia o interior da casa com uma
cortina de chita vermelha, vinha de vez em quando uma baforada de vozes roucas, que parecia
morrer em caminho, vencida por aquela densa atmosfera cor de opala.
O Pataca estacou a entrada, afetando grande bebedeira e procurando, com disfarce, em todos os
grupos, ver se descobria o Firmo. Não o conseguiu; mas alguém, em certa mesa, lhe chamara a
atenção, porque ele se dirigiu para lá. Era uma mulatinha magra, mal vestida, acompanhada por uma
velha quase cega e mais um homem, inteiramente calvo, que sofria de asma e, de quando em quando,
abalava a mesa com um frouxo de tosse, fazendo dançar os copos.
O Pataca bateu no ombro da rapariga.
- Como vais tu, Florinda?
Ela olhou para ele, rindo; disse que ia bem, e perguntou-lhe como passava.
- Rola-se, filha. Tu que fim levaste? Há um par de quinze dias que te não vejo!
- E mesmo. Desde que estou com seu Bento não tenho saído quase.
- Ah! disse o Pataca, estás amigada? Bom!...
- Sempre estive!
E ela então, muito expansiva com a sua folga daquele domingo e com o seu bocado de cerveja,
contou que, no dia em que fugiu da estalagem, ficou na rua e dormiu numas obras de uma casa em
construção na Travessa da Passagem, e que no seguinte oferecendo-se de porta em porta, para alugar-se de criada ou de ama-seca, encontrou um velho solteiro e agebado que a tomou ao seu serviço e
meteu-se com ela.
- Bom! muito bom! anuiu Pataca.
Mas o diabo do velho era um safado; dava-lhe muita coisa, dinheiro até, trazia-a sempre limpa e de
barriga cheia, sim senhor! mas queria que ela se prestasse a tudo! Brigaram. E, como o vendeiro da
esquina estava sempre a chamá-la para casa, um belo dia arribou, levando o que apanhara ao velho.
- Estás então agora com o da venda?
Não! O tratante, a pretexto de que desconfiava dela com o Bento marceneiro, pô-la na rua, chamando
a si o que a pobre de Cristo trouxera da casa do outro e deixando-a só com a roupa do corpo e ainda
por cima doente por causa de um aborto que tivera logo que se metera com semelhante peste. O
Bento tomara-a então à sua conta, e ela, graças a Deus, por enquanto não tinha razões de queixa.
O Pataca olhou em torno de si com o ar de quem procura alguém, e Florinda, supondo que se tratava
do seu homem, acrescentou:
- Não está cá, está lá dentro. Ele, quando joga, não gosta que eu fique perto; diz que encabula.
- E tua mãe?
- Coitada! foi pro hospício...
E passou logo a falar a respeito da velha Marciana; o Pataca, porém, já lhe não prestava atenção,
porque nesse momento acabava de abrir-se a cortina vermelha, e Firmo surgia muito ébrio, a dar
bordos, contando, sem conseguir, uma massagada de dinheiro, em notas pequenas, que ele afinal
entrouxou num bolo e recolheu na algibeira das calças.
- Ó Porfiro! não vens? gritou lá para dentro, arrastando a voz.
E, depois de esperar inutilmente pela resposta, fez alguns passos na sala.
O Pataca deu à Florinda um “até logo” rápido e, fingindo-se de novo muito bêbedo, encaminhou-se
na direção em que vinha o mulato.
Esbarraram-se.
- Oh! Oh! exclamou o Pataca. Desculpe!
Firmo levantou a cabeça e encarou-o com arrogância; mas desfranziu o rosto logo que o reconheceu.
- Ah! és tu, seu galego? Como vai isso? A ladroeira corre?
- Ladroeira tinha a avó na cuia! Anda a tomar alguma coisa. Queres?
- Que há de ser?
- Cerveja. Vai?
- Vá lá.
Chegaram-se para o balcão.
- Uma Guarda-Velha, ó pequeno! gritou o Pataca.
Firmo puxou logo dinheiro para pagar.
- Deixa! disse o outro. A lembrança foi minha!
Mas, como Firmo insistisse, consentiu-lhe que fizesse a despesa.
E os níqueis do troco rolaram no chão, fugindo por entre os dedos do mulato, que os tinha duros na
tensão muscular da sua embriaguez.
- Que horas são? perguntou Pataca, olhando quase de olhos fechados o relógio da parede. Oito e
meia. Vamos a outra garrafa, mas agora pago eu!
Beberam de novo, e o coadjutor de Jerônimo observou depois:
- Você hoje ferrou-a deveras! Estás que te não podes lamber!
- Desgostos... resmungou o capoeira, sem conseguir lançar da boca a saliva que se lhe grudava à
língua.
- Limpa o queixo que estás cuspido. Desgostos de quê? Negócios de mulher, aposto!
- A Rita não me apareceu hoje, sabes? Não foi e eu bem calculo por quê!
- Por quê?
- Porque a peste do Jerônimo voltou hoje à estalagem!
- Ahn! não sabia!... A Rita está então com ele?...
- Não está, nem nunca há de estar, que eu daqui mesmo vou à procura daquele galego ordinário e
ferro-lhe a sardinha no pandulho!
- Vieste armado?
Firmo sacou da camisa uma navalha.
- Esconde! não deves mostrar isso aqui! Aquela gente ali da outra mesa já não nos tira os olhos de
cima!
- Estou-me ninando pra eles! E que não olhem muito, que lhes dou uma de amostra!
- Entrou um urbano! Passa-me a navalha!
O capadócio fitou o companheiro, estranhando o pedido.
- É que, explicou aquele, se te prenderem não te encontram ferro...
- Prender a quem? a mim? Ora, vai-te catar!
- E ela é boa? Deixa ver!
- Isto não é coisa que se deixe ver!
- Bem sabes que não me entendo com armas de barbeiro!
- Não sei! Esta é que não me sai das unhas, nem para meu pai, que a pedisse!
- E porque não tens confiança em mim!
- Confio nos meus dentes, e esses mesmo me mordem a língua!
- Sabes quem vi ainda há pouco? Não és capaz de adivinhar!...
- Quem?
- A Rita.
- Onde?
- Ali na Praia da Saudade.
- Com quem?
- Com um tipo que não conheço...
Firmo levantou-se de improviso e cambaleou para o lado da saída.
- Espera! rosnou o outro, detendo-o. Se queres vou contigo; mas é preciso ir com jeito, porque, se ela
nos bispa, foge!
O mulato não fez caso desta observação e saiu a esbarrar-se por todas as mesas. Pataca alcançou-o já
na rua e passou-lhe o braço na cintura, amigavelmente.
- Vamos devagar... disse; se não o pássaro se arisca!
A praia estava deserta. Caia um chuvisco. Ventos frios sopravam do mar. O céu era um fundo negro,
de uma só tinta; do lado oposto da bala os lampiões pareciam surgir d’água, como algas de fogo,
mergulhando bem fundo as suas trêmulas raízes luminosas.
- Onde está ela? perguntou o Firmo, sem se aguentar nas pernas.
- Ali mais adiante, perto da pedreira. Caminha, que hás de ver!
E continuaram a andar para as bandas do hospício. Mas dois vultos surdiram da treva; o Pataca
reconheceu-os e abraçou-se de improviso ao mulato.
- Segurem-lhe as pernas! gritou para os outros.
Os dois vultos, pondo o cacete entre os dentes, apoderaram-se de Firmo, que bracejava seguro pelo
tronco.
Deixara-se agarrar - estava perdido.
Quando o Pataca o viu preso pelos sovacos e pela dobra dos joelhos, sacou-lhe fora a navalha.
- Pronto! Está desarmado!
Soltaram-no então. O capoeira, mal tocou com os pés em terra, desferiu um golpe com a cabeça, ao
mesmo tempo que a primeira cacetada lhe abria a nuca. Deu um grito e voltou-se cambaleando. Uma
nova paulada cantou-lhe nos ombros, e outra em seguida nos rins, e outra nas coxas, outra mais
violenta quebrou-lhe a clavícula, enquanto outra logo lhe rachava a testa e outra lhe apanhava a
espinha, e outras, cada vez mais rápidas, batiam de novo nos pontos já espancados, até que se
converteram numa carga continua de porretadas, a que o infeliz não resistiu, rolando no chão, a
gotejar sangue de todo o corpo.
A chuva engrossava. Ele agora, assim debaixo daquele bate-bate sem tréguas, parecia muito menor,
minguava como se estivesse ao fogo. Lembrava um rato morrendo a pau. Um ligeiro tremor
convulsivo era apenas o que ainda lhe denunciava um resto de vida. Os outros três não diziam
palavra, arfavam, a bater sempre, tomados de uma irresistível vertigem de pisar bem a cacete aquela
trouxa de carne mole e ensanguentada, que grunhia frouxamente a seus pés. Afinal, quando de todo
já não tinham forças para bater ainda, arrastaram a trouxa até a ribanceira da praia e lançaram-na ao
mar. Depois, arquejantes, deitaram a fugir, à toa, para os lados da cidade.
Chovia agora muito forte. Só pararam no Catete, ao pé de um quiosque; estavam encharcados;
pediram parati e beberam como quem bebe água. Passava já de onze horas. Desceram pela Praia da
Lapa; ao chegarem debaixo de um lampião, Jerônimo parou suando apesar do aguaceiro que cala.
- Aqui têm vocês, disse, tirando do bolso as quatro notas de vinte mil-réis. Duas para cada um! E
agora vamos tomar qualquer coisa quente em lugar seco.
- Ali há um botequim, indicou o Pataca, apontando a Rua da Glória.
Subiram por uma das escadinhas que ligam essa rua à praia, e daí a pouco instalavam-se em volta de
uma mesa de ferro. Pediram de comer e de beber e puseram-se a conversar em voz soturna, muito
cansados.
A uma hora da madrugada o dono do café pô-los fora. Felizmente chovia menos. Os três tomaram de
novo a direção de Botafogo; em caminho Jerônimo perguntou ao Pataca se ainda tinha consigo a
navalha do Firmo e pediu-lha, ao que o companheiro cedeu sem objeção.
- É para conservar uma lembrança daquele bisbórria! explicou o cavouqueiro, guardando a arma.
Separaram-se defronte da estalagem. Jerônimo entrou sem ruído; foi até à casa, espiou pelo buraco
da fechadura; havia luz no quarto de dormir; compreendeu que a mulher estava à sua espera,
acordada talvez; pensou sentir, vindo lá de dentro, o bodum azedo que ela punha de si, fez uma
careta de nojo e encaminhou-se resolutamente para a casa da mulata, em cuja porta bateu
devagarinho.
Rita, essa noite, recolhera-se aflita e assustada. Deixara de ir ter com o amante e mais tarde
admirava-se como fizera semelhante imprudência; como tivera coragem de pôr em prática,
justamente no momento mais perigoso, uma coisa que ela, até ai, não se sentira com animo de
praticar. No intimo respeitava o capoeira; tinha-lhe medo. Amara-o a principio por afinidade de
temperamento, pela irresistível conexão do instinto luxurioso e canalha que predominava em ambos,
depois continuou a estar com ele por hábito, por uma espécie de vicio que amaldiçoamos sem poder
largá-lo; mas desde que Jerônimo propendeu para ela, fascinando-a com a sua tranquila seriedade de
animal bom e forte, o sangue da mestiça reclamou os seus direitos de apuração, e Rita preferiu no
europeu o macho de raça superior. O cavouqueiro, pelo seu lado, cedendo às imposições
mesológicas, enfarava a esposa, sua congênere, e queria a mulata, porque a mulata era o prazer, era a
volúpia, era o fruto dourado e acre destes sertões americanos, onde a alma de Jerônimo aprendeu
lascívias de macaco e onde seu corpo porejou o cheiro sensual dos bodes.
Amavam-se brutalmente, e ambos sabiam disso. Esse amor irracional e empírico carregara-se muito
mais, de parte a parte, com o trágico incidente da luta, em que o português fora vitima Jerônimo
aureolou-se aos olhos dela com uma simpatia de mártir sacrificado à mulher que ama; cresceu com
aquela navalhada; iluminou-se com o seu próprio sangue derramado, e, depois, a ausência no
hospital veio a completar a cristalização do seu prestigio, como se o cavouqueiro houvera baixado a
uma sepultura, arrastando atrás de si a saudade dos que o choravam.
Entretanto, o mesmo fenômeno se operava no espírito de Jerônimo com relação à Rita: arriscar
espontaneamente a vida por alguém é aceitar um compromisso de ternura, em que empenhamos alma
e coração; a mulher por quem fazemos tamanho sacrifício, sela ela quem for, assume de um só voo
em nossa fantasia as proporções de um ideal. O desterrado, à primeira troca de olhares com a baiana,
amou-a logo, porque sentiu nela o resumo de todos os quentes mistérios que os enlearam
voluptuosamente nestas terras da luxúria; amou-a muito mais quando teve ocasião de jogar a
existência por esse amor, e amou-a loucamente durante a triste e dolorosa solidão da enfermaria, em
que os seus gemidos e suspiros eram todos para ela.
A mulata bem que o compreendeu, mas não teve animo de confessar-lhe que também morria de
amores por ele; receou prejudicá-lo. Agora, com aquela loucura de faltar à entrevista justamente no
dia em que Jerônimo voltava à estalagem, a situação parecia-lhe muito melindrosa. Firmo,
desesperado com a ausência dela, embebedava-se naturalmente e vinha ao cortiço provocar o
cavouqueiro; a briga rebentaria de novo, fatal para um dos dois, se é que não seria para ambos. Do
que ela sentira pelo navalhista persistia agora apenas o medo, não como ele era dantes,
indeterminado e frouxo, mas ao contrário, sobressaltado, nervoso, cheio de apreensões que a punham
aflita. Firmo já não lhe aparecia no espírito como um amante ciumento e perigoso, mas como um
simples facínora, armado de uma velha navalha desleal e homicida. O seu medo transformava-se em
uma mistura de asco e terror. E sem achar sossego na cama, deixava-se atordoar pelos seus
pressentimentos, quando ouviu bater na porta.
- É ele! disse, com o coração a saltar.
E via já defronte de si o Firmo, bêbado, a reclamar o Jerônimo aos berros, para esfaqueá-lo ali
mesmo. Não respondeu ao primeiro chamado; ficou escutando.
Depois de uma pausa bateram de novo.
Ela estranhou o modo pelo qual batiam. Não era natural que o facínora procedesse com tanta
prudência. Ergueu-se, foi a janela, abriu uma das folhas e espreitou pelas rótulas.
- Quem está ai?... perguntou a meia voz.
- Sou eu... disse Jerônimo, chegando-se.
Reconheceu-o logo e correu a abrir.
- Como?! É você, Jeromo?
- Schit! fez ele, pondo o dedo na boca. Fala baixo.
Rita começou a tremer: no olhar do português, nas suas mãos encardidas de sangue, no seu todo de
homem ébrio, encharcado e sujo, havia uma terrível expressão de crime.
- Donde vens tu?... segredou ela.
- De cuidar da nossa vida... Ai tens a navalha com que fui ferido!
E atirou-lhe sobre a mesa a navalha de Firmo, que a mulata conhecia como as palmas da mão.
- E ele?
- Está morto.
- Quem o matou?
- Eu.
Calaram-se ambos.
- Agora... acrescentou o cavouqueiro, no fim de um silêncio arquejado por ambos; estou disposto a
tudo para ficar contigo. Sairemos os dois daqui para onde melhor for... Que dizes tu?
- E tua mulher?...
- Deixo-lhe as minhas economias de muito tempo e continuarei a pagar o colégio à pequena. Sei que
não devia abandoná-la, mas podes ter como certo que, ainda que não queiras vir comigo, não ficarei
com ela! Não sei! já não a posso suportar! Um homem enfara-se! Felizmente minha caixa de roupa
está ainda na Ordem e posso ir buscá-la pela manhã.
- E para onde iremos?
- O que não falta é p’r’onde ir! Em qualquer parte estaremos bem. Tenho aqui sobre mim uns
quinhentos mil-réis para as primeiras despesas. Posso ficar cá até às cinco horas; são duas e meia;
saio sem ser visto por Piedade; mando-te ao depois dizer o que arranjei, e tu irás ter comigo... Está
dito? Queres?
Rita, em resposta, atirou-se ao pescoço dele e pendurou-se-lhe nos lábios, devorando-o de beijos.
Aquele novo sacrifício do português; aquela dedicação extrema que o levava a arremessar para o
lado família, dignidade, futuro, tudo, tudo por ela, entusiasmou-a loucamente. Depois dos
sobressaltos desse dia e dessa noite, seus nervos estavam afiados e toda ela elétrica.
Ah! não se tinha enganado! Aquele homenzarrão hercúleo, de músculos de touro, era capaz de todas
as meiguices do carinho.
- Então? insistiu ele.
- Sim, sim, meu cativeiro! respondeu a baiana, falando-lhe na boca; eu quero ir contigo; quero ser a
tua mulata, o bem do teu coração! Tu és os meus feitiços! - E apalpando-lhe o corpo:- Mas como
estas ensopado! Espera! espera! o que não falta aqui e roupa de homem pra mudar!... Podias ter uma
recaída, cruzes! Tira tudo isso que está alagado! Eu vou acender o fogareiro e estende-se em cima o
que é casimira, para te poderes vestir às cinco horas. Tira as botas! Olha o chapéu como está! Tudo
isto seca! Tudo isto seca! Mira, toma já um gole de parati p’r’atalhar a friagem! Depois passa em
todo o corpo! Eu vou fazer café!
Jerônimo bebeu um bom trago de parati, mudou de roupa e deitou-se na cama de Rita.
- Vem pra cá... disse, um pouco rouco.
- Espera! espera! O café está quase pronto!
E ela só foi ter com ele, levando-lhe a chávena fumegante da perfumosa bebida que tinha sido a
mensageira dos seus amores; assentou-se ao rebordo da cama e, segurando com uma das mãos o
pires, e com a outra a xícara, ajudava-o a beber, gole por gole, enquanto seus olhos o acarinhavam,
cintilantes de impaciência no antegozo daquele primeiro enlace.
Depois, atirou fora a saia e, só de camisa, lançou-se contra o seu amado, num frenesi de desejo
doido.
Jerônimo, ao senti-la inteira nos seus braços; ao sentir na sua pele a carne quente daquela brasileira;
ao sentir inundar-lhe o rosto e as espáduas, num eflúvio de baunilha e cumaru, a onda negra e fria da
cabeleira da mulata; ao sentir esmagarem-se no seu largo e pelado colo de cavouqueiro os dois
globos túmidos e macios, e nas suas coxas as coxas dela; sua alma derreteu-se, fervendo e
borbulhando como um metal ao fogo, e saiu-lhe pela boca, pelos olhos, por todos os poros do corpo,
escandescente, em brasa, queimando-lhe as próprias carnes e arrancando-lhe gemidos surdos,
soluços irreprimíveis, que lhe sacudiam os membros, fibra por fibra, numa agonia extrema,
sobrenatural, uma agonia de anjos violentados por diabos, entre a vermelhidão cruenta das labaredas
do inferno.
E com um arranco de besta-fera caíram ambos prostrados, arquejando. Ela tinha a boca aberta, a
língua fora, os braços duros, os dedos inteiriçados, e o corpo todo a tremer-lhe da cabeça aos pés,
continuamente, como se estivesse morrendo; ao passo que ele, de súbito arremessado longe da vida
por aquela explosão inesperada dos seus sentidos, deixava-se mergulhar numa embriaguez deliciosa,
através da qual o mundo inteiro e todo o seu passado fugiam como sombras fátuas. E, sem
consciência de nada que o cercava, nem memória de si próprio, sem olhos, sem tino, sem ouvidos,
apenas conservava em todo o seu ser uma impressão bem clara, viva, inextinguível: o atrito daquela
carne quente e palpitante, que ele em delírio apertou contra o corpo, e que ele ainda sentia latejar-lhe
debaixo das mãos, e que ele continuava a comprimir maquinalmente, como a criança que, já
dormindo, afaga ainda as tetas em que matou ao mesmo tempo a fome e a sede com que veio ao
mundo.
Continua página 96...
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Leia também:
O Cortiço - XV: O Garnisé tinha bastante gente essa noite
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Aluísio Azevedo (Aluísio Tancredo Gonçalves de Azevedo), caricaturista, jornalista, romancista e diplomata, nasceu em São Luís, MA, em 14 de abril de 1857, e faleceu em Buenos Aires, Argentina, em 21 de janeiro de 1913.
Era filho do vice-cônsul português David Gonçalves de Azevedo e de D. Emília Amália Pinto de Magalhães e irmão mais moço do comediógrafo Artur Azevedo. Sua mãe havia casado, aos 17 anos, com um comerciante português. O temperamento brutal do marido determinou o fim do casamento. Emília refugiou-se em casa de amigos, até conhecer o vice-cônsul de Portugal, o jovem viúvo David. Os dois passaram a viver juntos, sem contraírem segundas núpcias, o que à época foi considerado um escândalo na sociedade maranhense.
Da infância à adolescência, Aluísio estudou em São Luís e trabalhou como caixeiro e guarda-livros. Desde cedo revelou grande interesse pelo desenho e pela pintura, o que certamente o auxiliou na aquisição da técnica que empregará mais tarde ao caracterizar os personagens de seus romances. Em 1876, embarcou para o Rio de Janeiro, onde já se encontrava o irmão mais velho, Artur. Matriculou-se na Imperial Academia de Belas Artes, hoje Escola Nacional de Belas Artes. Para manter-se fazia caricaturas para os jornais da época, como O Fígaro, O Mequetrefe, Zig-Zag e A Semana Ilustrada. A partir desses “bonecos”, que conservava sobre a mesa de trabalho, escrevia cenas de romances.
A morte do pai, em 1878, obrigou-o a voltar a São Luís, para tomar conta da família. Ali começou a carreira de escritor, com a publicação, em 1879, do romance Uma lágrima de mulher, típico dramalhão romântico. Ajuda a lançar e colabora com o jornal anticlerical O Pensador, que defendia a abolição da escravatura, enquanto os padres mostravam-se contrários a ela. Em 1881, Aluísio lança O mulato, romance que causou escândalo entre a sociedade maranhense pela crua linguagem naturalista e pelo assunto tratado: o preconceito racial. O romance teve grande sucesso, foi bem recebido na Corte como exemplo de Naturalismo, e Aluísio pôde retornar para o Rio de Janeiro, embarcando em 7 de setembro de 1881, decidido a ganhar a vida como escritor.
Quase todos os jornais da época tinham folhetins, e foi num deles que Aluísio passou a publicar seus romances. A princípio, eram obras menores, escritas apenas para garantir a sua sobrevivência. Depois, surgiu nova preocupação no universo de Aluísio: a observação e análise dos agrupamentos humanos, a degradação das casas de pensão e sua exploração pelo imigrante, principalmente o português. Dessa preocupação resultariam duas de suas melhores obras: Casa de pensão (1884) e O cortiço (1890). De 1882 a 1895 escreveu sem interrupção romances, contos e crônicas, além de peças de teatro em colaboração com Artur de Azevedo e Emílio Rouède.
Em 1895 ingressou na diplomacia, momento em que praticamente cessa sua atividade literária. O primeiro posto foi em Vigo, na Espanha. Depois serviu no Japão, na Argentina, na Inglaterra e na Itália. Passara a viver em companhia de D. Pastora Luquez, de nacionalidade argentina, junto com os dois filhos, Pastor e Zulema, por ele adotados. Em 1910, foi nomeado cônsul de 1ª. classe, sendo removido para Assunção. Buenos Aires foi seu último posto. Ali faleceu, aos 56 anos. Foi enterrado naquela cidade. Seis anos depois, por uma iniciativa de Coelho Neto, a urna funerária de Aluísio Azevedo chegou a São Luís, onde o escritor foi sepultado.
Aluísio Azevedo (Aluísio Tancredo Gonçalves de Azevedo), caricaturista, jornalista, romancista e diplomata, nasceu em São Luís, MA, em 14 de abril de 1857, e faleceu em Buenos Aires, Argentina, em 21 de janeiro de 1913.
Era filho do vice-cônsul português David Gonçalves de Azevedo e de D. Emília Amália Pinto de Magalhães e irmão mais moço do comediógrafo Artur Azevedo. Sua mãe havia casado, aos 17 anos, com um comerciante português. O temperamento brutal do marido determinou o fim do casamento. Emília refugiou-se em casa de amigos, até conhecer o vice-cônsul de Portugal, o jovem viúvo David. Os dois passaram a viver juntos, sem contraírem segundas núpcias, o que à época foi considerado um escândalo na sociedade maranhense.
Da infância à adolescência, Aluísio estudou em São Luís e trabalhou como caixeiro e guarda-livros. Desde cedo revelou grande interesse pelo desenho e pela pintura, o que certamente o auxiliou na aquisição da técnica que empregará mais tarde ao caracterizar os personagens de seus romances. Em 1876, embarcou para o Rio de Janeiro, onde já se encontrava o irmão mais velho, Artur. Matriculou-se na Imperial Academia de Belas Artes, hoje Escola Nacional de Belas Artes. Para manter-se fazia caricaturas para os jornais da época, como O Fígaro, O Mequetrefe, Zig-Zag e A Semana Ilustrada. A partir desses “bonecos”, que conservava sobre a mesa de trabalho, escrevia cenas de romances.
A morte do pai, em 1878, obrigou-o a voltar a São Luís, para tomar conta da família. Ali começou a carreira de escritor, com a publicação, em 1879, do romance Uma lágrima de mulher, típico dramalhão romântico. Ajuda a lançar e colabora com o jornal anticlerical O Pensador, que defendia a abolição da escravatura, enquanto os padres mostravam-se contrários a ela. Em 1881, Aluísio lança O mulato, romance que causou escândalo entre a sociedade maranhense pela crua linguagem naturalista e pelo assunto tratado: o preconceito racial. O romance teve grande sucesso, foi bem recebido na Corte como exemplo de Naturalismo, e Aluísio pôde retornar para o Rio de Janeiro, embarcando em 7 de setembro de 1881, decidido a ganhar a vida como escritor.
Quase todos os jornais da época tinham folhetins, e foi num deles que Aluísio passou a publicar seus romances. A princípio, eram obras menores, escritas apenas para garantir a sua sobrevivência. Depois, surgiu nova preocupação no universo de Aluísio: a observação e análise dos agrupamentos humanos, a degradação das casas de pensão e sua exploração pelo imigrante, principalmente o português. Dessa preocupação resultariam duas de suas melhores obras: Casa de pensão (1884) e O cortiço (1890). De 1882 a 1895 escreveu sem interrupção romances, contos e crônicas, além de peças de teatro em colaboração com Artur de Azevedo e Emílio Rouède.
Em 1895 ingressou na diplomacia, momento em que praticamente cessa sua atividade literária. O primeiro posto foi em Vigo, na Espanha. Depois serviu no Japão, na Argentina, na Inglaterra e na Itália. Passara a viver em companhia de D. Pastora Luquez, de nacionalidade argentina, junto com os dois filhos, Pastor e Zulema, por ele adotados. Em 1910, foi nomeado cônsul de 1ª. classe, sendo removido para Assunção. Buenos Aires foi seu último posto. Ali faleceu, aos 56 anos. Foi enterrado naquela cidade. Seis anos depois, por uma iniciativa de Coelho Neto, a urna funerária de Aluísio Azevedo chegou a São Luís, onde o escritor foi sepultado.
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