XXIV (2ª) - No se puede hacer la revolución sin las mujeres
morremos de
verdade quando desaparecemos da memória
baitasar
Na superfície nevoenta de la Vieja crescia um desejo imenso de
reconciliação e embelezamento entre dois mundos, os de lá com os de cá,
misturados na cantoria da barqueira, na calmaria repentina das águas, junto com
uma sensação de costume, como se ali fosse o lugar do prazer de reencontros dos
achados e perdidos.
O chão úmido daquele barco era o que nos separava do afundamento naquelas
águas misteriosas. A barca vagava desembarcada das vaidades morais da
generosidade ou medos de castigos, confortável e cômoda com o silêncio da
cumplicidade — Não é bom ser boa... apenas por vaidades da aparência. — pedi
que repetisse, não tinha entendido — Niña
Preta, existem aquelas profissionais
da bondade que fazem da benevolência propagandismo de si mesmas, juntam-se ao
perseguidor como uma dócil besta neutra, dotada de uma profunda
responsabilidade moral. — perguntei de quem ela estava falando — Niña, a falsidade na bondade é difícil
de ver e de não fazer, tem gente contagiada em receber confetes e galanteios. Nunca
diz o que se passa no pensamento. — Como se estivesse sempre brincando de
esconde-esconde? — gosto quando la Vieja sorri, ela agora estava me
sorrindo.
A barqueira ergueu os remos e pareceu conduzir o barco obedecendo ordens
íntimas do seu canto intenso e suave. Procurei os olhos para enxergar a sua
idade e o tempo da barqueira conduzindo gente de um lado a outro — Eu as
atravesso, mas não trago de volta. — ouvi sua voz terna e veludosa, pensei em
como eu iria voltar — Tem outra barqueira fazendo o caminho de lá para cá? — Se
existe, está disfarçada.
Fiquei em silêncio, novamente, obediente e tímida.
Levadas por forças invisíveis aos olhos, chegamos nas areias daquela
praia escondida da outra margem mansa. Uma sensação de excitação despertava
meu olhar e provocava um frio na barriga, talvez tenha dado o passo maior que a
perna, e a minha perna nem era tão grande. Apertava os olhos, como se assim pudesse ver além daquela bruma de
sentidos e cores diferentes — Niña Preta, chegamos ao fim do arco-íris. —
levei um susto, havia esquecido la Vieja, não estava sozinha no barco,
outro alívio de encorajamento — Então, é verdade! — exclamei inocente e jovial
— Tudo é verdade. — respondeu la Vieja. Deitei os olhos no assoalho do
barco, não encarei o seu olhar doce e respondi discordante — Nem tudo, Vieja. — ela não pareceu escutar minha
provocação, apenas prosseguiu, eu estava ali para aprender, não tinha nada para
ensinar — Até a mentira, niña Preta,
até a mentira tem a aparência da verdade.
O barco que deslizou por dentro da névoa estava fixado em terra firma,
não havia ancoradouro para escorar nossa embarcação, apenas paramos — Essa é a
casa dos mortos, Vieja? — ela não
respondeu, olhava para a praia. A barqueira parou de assoviar e sentou no fim
de tudo, na ré do nosso pequeno navio, olhava à praia. Passou por mim, como se
fosse um pequeno assopro. Eu também olhava, procurava algo poderoso, mais por
bisbilhotice que por nervosismo — O que você espera encontrar? — Um mundo
diferente. — Diferente? — Caveiras perfeitas — a barqueira estava sorrindo,
podia haver bondade na morte.
O salvamento dos netos de la Vieja exigia mais que alguns truques de
rezas e chás, era preciso escutar os espíritos antigos que não se mostram à toa
em templos de barro, nem em línguas de fogo. O doutor não escuta nada além dos
livros, mas la Vieja estava atrás de
conselhos — As ilusões das palavras curam alguns males, mas podem nos cegar, niña Preta
— respondi que não estava entendendo — Niña,
as palavras são invencionice. — Como esconder a mentira com a verdade? — não
respondeu, estava com os olhos na praia, até que recomeçou lentamente — As palavras
se dão generosamente, não têm pertencimentos porque são acontecimentos
humanos... — Inventam ou reinventam a morte da vida? — uma miúda como eu sabia
da vida, da morte, da dor, porque a morte se serve da vida — Bobagem, uma serve
à outra, morremos de verdade quando desaparecemos da memória.
Desceu do barco e ordenou — Fique aqui... no barco. — não eram palavras
de ordem, mas de aconselhamento: se eu soubesse o melhor para mim, iria
obedecer. Não resisti a sua autoridade, era natural obedecer la Vieja.
Ela caminhou alguns passos, até que ficou de cócoras sobre as pedras, retirava
dos bolsos pequenas flores, folhas e galhos secos. Montou uma fogueira miúda.
Rezava e cantava numa língua desconhecida para mim, com os braços abertos
e as mãos voltadas para cima — Pardonu al mi, ke mi tiel. — as rezas subiam e
baixavam como conversas entre amigas, até que foguearam os gravetos e as ervas
ajuntados para queimar, e a miúda ardeu em chamas. La Vieja puxava o ar com
as mãos e se abraçava. Parecia reacessa em si mesma. Reacendida de dentro para
fora. Respirava fundo como uma estranha, uma jovem estranha. Olhei para a
barqueira pedindo ajuda — Por favor, o que foi dito por la Vieja? — Perdoe-me por
fazer assim — foi a usa tradução sem comentários.
Ela estava jovem, linda em meus olhos, como sempre foi. Os cabelos pretos
escorridos até o chão, cantando com una pequeña
niña em seus braços. Olhou-me com um
sorriso nos pensamentos, tentando explicar que ali não havia nada, além de mim
mesma — Mi volas lerni danci — olhei à barqueira pedindo que me viesse em
socorro, ela não se moveu, mas os lábios repetiram como se tivesse aprendido de mi madre o olhar, o perfume da sua
voz — Quero aprender a dançar — ergui os ombros para ilustrar que não
compreendia — Atendu, ghis mi revenos — virou suas costas para mim, parecia se
aninhar dentro dela mesma — Espere até eu voltar — desta vez a barqueira
repetiu minha mãe antes dos meus pedidos.
Foi quando senti a saudade como jamais soubera. Não eram lembranças, mas
a nostalgia do que não havia vivido.
Meus olhos eram a mulher agachada junto à miúda. Balançando pra frente e
para trás, rezando e cantando, os meus sonhos não eram os meus sonhos, eu não
me parecia com todas, eu era todas as minhas mulheres. Todas as saudades
estavam em mim: era la última.
Aquela que deveria viver por todas.
Aquela que deveria viver por todas.
As chamas da miúda eram violetas da ametista, pareciam muralhas
invisíveis que protegiam a jovem senhora. A barqueira sussurrou-me palavras dentro do meu espírito — Mi songhis pri vi — e as repetiu — Sonhei com você — não tinha nenhuma resposta com palavras inventadas para acalmar. Queria desistir — Por que você está fugindo? — espichei o ouvido, parei a respiração e
esperei algum ensinamento da sua voz. Expliquei que não estava fugindo, quem parecia fugir era ela. Nada. Nenhuma palavra de generosidade, apenas
o silêncio. Eu a queria ouvir me dizendo — Niña
Preta é forte e capaz de lutar com as
dores da vida.
Não estava magoada, mas queria mais do que me oferecia — Niña Preta!
— la Vieja que me despertava do sono — O que foi Vieja? — eu estava sentada num canto da embarcação, a cabeça
inclinada sobre o ombro e a boca babando sobre o meu vestido vermelho, tudo
mais por ali se parecia com o cinza e o quase branco — La niña Preta volta para
casa, agora. — E a senhora, mi Vieja?
— Eu fico, sou mais necessária por aqui. — ninguém pensava em mim, minhas
dores, frustrações, nunca me perguntavam sobre as minhas vontades — Eu também
vou ficar. — La niña Preta não foi
convidada. — O que vai ser de mim? — depois de tanta vida, percebo como fui interesseira
de mim mesma, minha existência seria especial, mas sempre fui fruto do acaso: una aparición en el mundo de las muertes.
Olhei para a barqueira — Ao cabo e ao fim de tudo a senhora vai voltar
comigo. — Sempre existiu uma primeira vez para tudo. — Até para a morte? — ela
pegou os remos e os deixou mergulhados nas águas — A menina que trate de se segurar,
essa viagem de retorno precisa de atenção.
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