quarta-feira, 26 de fevereiro de 2014

histórias davóinha: Sô a favô de vendê, pegá no dinheiro e cuidá de vivê 02cp

casarão canela preta


Sô a favô de vendê, pegá no dinheiro e cuidá de vivê
Ensaio 02B – 2ª edição 1ª reimpressão



baitasar




depois dos serviços e as despedidas davó, a cantoria silenciou. foi o tempo de cada um escolher as lembranças que não queria desaprender. os tiuzin ficaram sem a última vez de ver davó antes do sumiço com o Capitão. não escutaram a última palavra. eu estava junto, dei meus ouvidos para os fios do seu suspiro. vi fechar os olhos para não abrirem mais. davó se foi me espiando. isso fez de mim um fiuneto especial. ela não escolheu a hora da partida, mais gosto de acreditar que escolheu quem lhe segurava a mão no desembarque. eu escolhi estar junto davó, ser o seu acompanhamento. um lugar que não queria tá, o único lugar em que eu tinha que estar. sei que nunca vou me arrepender da escolha que fiz. não experimentei medo, senti que o meu amor tava lhe ajudando na partida

por muitos anos, davó foi decisão que governava nos assuntos do casarão Canela Preta. aprendi que para essa posição de destaque não tem muito jeito de chegar, nem é para quem quer. ela tinha a autoridade e a sabedoria do tempo de conversar com desenvoltura com os mais antigos. falava que aprendeu de viver morrendo cada dia um pouquinho

Mifiuneto, escuta com atenção no coração.

Estou escutando, eu tava com os olhos esbugalhados, queria mostrar que o coração tava atento como as vista

Não credita qui vivê é juntá coisa inútil. Aproveita as coisa boa da escola. Escuta com atenção a professorinha.

vavó não foi na escola, mas, também, não aconselhava desfeita com os livros. tinha os livros na cabeça

Mas só tê os livro na cabeça não chega, mifiuneto. Não chega ficá com as história na cabeça, tem munta coisa quié preciso tá escrito, se não tá escrito não existiu. A memória da língua inventa as parte qui não lembra, e o qui existiu muda se fô mais bão pru inventadô. É como se a história dos preto não tivesse vivido, cada um conta do seu jeito e quem ouve tem seu jeito de escutá. A língua e os ouvido tumbém tem cô.

Mas davó sabe como contar as histórias... e têm aqueles que não sabem escrever as histórias como davó sabe contar.

Davó, sabe? Podê sê, mais davó qué dizê qui a vida qui não tá escrita as criança desaprende. As lembrança foge como as areia da praia na mão, sobra do punhado agarrado uns grãozinho. E a serpente enganosa diz uqui qué sobre uqui existiu ou não existiu. O ruim passa sê bão, o fingimento vira virtude. Os bandido são sempre uspretu. O branco ruim vira herói se as suas canalhice não incomodá os branco bão.

Eu sei do que davó tá falando, tem livro ruim que finge respeito e dá aconselhamento de desamor que parece amor... tem livro que mente... tem livro que esconde... tem livro...

Chega, Fumaça. Se tem livro quié ruindade, escreve ocê a história.

Falar é fácil...

davó não entende dos livro, mais sabe qui existe história na cabeça e nos livro, pra gente ruim e pros bão, cada um escolhe o qui serve meió. Ocê precisa escolhê se vai vivê aborrecido, fazendo desfavô, desamando o amô. Ou vivê a vida da vida. O mifiuneto não pode esquecê qui os fingido finge tanto qui credita nos fingimento da vida qui finge. Ocê aprenda escolhê os livro bão, tem vez qui precisa sorte, mais tem outra vez qui só precisa tê atenção na viseira qui vê.

davó chegou à posição de importância pelo jeito do amor que amou nos filhos. não tinha enganamento, se achava que precisavam um puxão nas orelhas dava o tranco e a explicação zangada, mas o colo da avó era o melhor lugar do mundo para ficar. os filhos e os fiunetos sabiam o que tinham tido e haviam perdido. foi quando se espalhou o boato que o casarão tava desgovernado e o tiuzin João tava disposto de ter conversa para vender o Canela Preta

a notícia caiu como um arrebentamento

depois do sumiço davó pensei que o casarão ficava no uso dos filhos e dos mais novos. davó dizia, Desde o Capitão, qui construiu a mansão só com as mão dos preto, o casarão nunca saiu do uso dos Canela Preta.

vender não parecia um bom plano, mas a vontade de ter dinheiro na quantia que não cabia na mão despertou o embaraço da cobiça. a vida davó que juntava os parentes tava fora das vistas e pareceu que cada um seguiria uma estrada, mas ainda tinham cuidado com  o puxão nas orelhas e o xingamento zangado

o tiuzin Jorge pediu reunião dos irmãos, queria esclarecer o zunzun que tinha virado mexerico, o tiuzin João foi logo dizendo

Tem gente com gosto de pagá um dinheirão pelo lugá dos Canela Preta! Acho que temô que vendê.

tudo ficou no silêncio. o madeirame do assoalho parou de gemer. as dobradiças pararam com o zumbido das portas e janelas. só os suspiros esvaziavam os respiros aprisionados. ninguém se olhava. ninguém se via. rezei para que alguém fosse avisar os mais velhos, trazer os espíritos para começar a resistência. a luta é desigual quando o olho da cobiça se atiça. todos falam horrores de tudo e de todos que se atrevem contra o egoísmo do dinheiro. ficamos desligados da nossa caridade. a vida é perdida. e esfria. fica esquecida. o ódio fica difuso, embutido no sopro da respiração. as pessoas ficam com descontrole sobre o rancor que manda no peito

Jorge... o João tá adormecido do juízo, perdido pelo interesse do dinheiro.

isso de conversar dizendo o nome, sem usar a lembrança do que cada um é na família: irmão ou irmã, não era um bom começo de assunto

Bobagem, Vanda. Cansei de puxá carroça feito cavalo e do aborrecimento das vista assustada das madame, nunca sei quando sô o cu ou as calça. Tem veiz qui sô o cu, tem outras veiz qui sô as calça. Quero tê a minha montaria. Não sento como ocê em cima duma mina de ouro...

O quê?

Ocê senta em cima da sua mina de ouro... é só sabê usá!

a tia Vanda não se impressionou com o entusiasmo vendedor do João, nem com o jeito de lhe chamar de puta. e até onde davó contou, ou deixou de contar, ela podia ser a única que tinha correndo nas veias do corpo o sangue do Capitão e da nêga Laetitia. levantou e encarou de frente o tiuzin João. ninguém mexeu os olhos, a boca ou as mãos, a tia sabia defender o seu jeito de ser

E o pangaré de madame...

Qui tem eu?

O pangaré acredita que muda essa vida de arreio se vendê o casarão da mãinha?

E a nêga Vanda vai até quando esfregando o chão dos branco? Quieta com a vida de capacho?

queria tanto que davó tivesse aqui, acalmava os dois. primeiro, com as vistas; depois, com as mãos, fazendo sinal para que o bate a boca de um e o trinca os dentes da outra parassem aquela guerra, Fius, desfeita na família não é bão. Um campo sem dono não vai dá bom proveito.

davó era o respeito dos humanos na família e um espírito respeitado pelos mais antigos

Não gosto de acordá com o corpo amassado, dolorida e desanimada de sê diarista da madame, mas não vendo uma pedra do Canela Preta pra modo de saí dessa vida de vai ou não vai.

foi quando me animei

Davó virou encantamento dizendo que o casarão é da família. Todos podem escolher viver e morrer nele. E todos do sangue da família Canela Preta que vierem na descendência.

Quem pediu a opinativa do rabanete preto?

Cuidado com a língua João. Não mexe além da conta com o moleque.

resolvi aquietar a língua. não tinha estatura pra brigar com o tiuzin nem queria a tia como meu escudo de proteção

Ninguém vai tirá o qui é meu. Nêgo é o seguinte na fila qui não caminha. Nunca sai do lugá, um depois do outro esperando. Depois qui morré se terminô. Os vivo tem qui dá conta de vivê. Sô do lado de vendê, pegá o dinheiro e cuidá de vivê!

os outros da família não pareciam querer se meter. era melhor esperar, ver com que lado davó ficava. acho que foi assim, no tempo de acorrentar os canelas preta, lá na terra mãe. não acreditavam que aquilo ia continuar... e continuou, até a mãinha da terra dos preto minguar com falta de mão para enraizar. as coisas se repetem grandes ou miúdas, aprendemos com as histórias e desaprendemos com o silêncio. o preço da evaporação das lembranças é a repetição sem miolo e sem serventia para o bem de todos. o dono nunca está satisfeito com os escravos que tem

É assim mesmo, mifiuneto. O desaparecimento das lembrança é disfarce qui dono de gente usa pra continuá escravidão da miséria.

essa davó não descansa




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