segunda-feira, 18 de janeiro de 2016

Contos Fluminenses: Miss Dollar, Capítulo Quatro

Machado de Assis



CAPÍTULO IV 



Achava-se Mendonça uma vez à porta do Carceller, onde acabava de tomar sorvete em companhia de um indivíduo, amigo dele, quando viu passar um carro, e dentro do carro duas senhoras que lhe pareceram as senhoras de Mata-cavalos. Mendonça fez um movimento de espanto que não escapou ao amigo. 

— Que foi? perguntou-lhe este. 

— Nada; pareceu-me conhecer aquelas senhoras. Viste-as, Andrade? 

— Não. 

O carro entrara na Rua do Ouvidor; os dois subiram pela mesma rua. Logo acima da Rua da Quitanda, parara o carro à porta de uma loja, e as senhoras apearam-se e entraram. Mendonça não as viu sair; mas viu o carro e suspeitou que fosse o mesmo. Apressou o passo sem dizer nada a Andrade, que fez o mesmo, movido por essa natural curiosidade que sente um homem quando percebe algum segredo oculto. 

Poucos instantes depois estavam à porta da loja; Mendonça verificou que eram as duas senhoras de Mata-cavalos. Entrou afoito, com ar de quem ia comprar alguma coisa, e aproximou-se das senhoras. A primeira que o conheceu foi a tia. Mendonça cumprimentou-as respeitosamente. Elas receberam o cumprimento com afabilidade. Ao pé de Margarida estava Miss Dollar, que, por esse admirável faro que a natureza concedeu aos cães e aos cortesãos da fortuna, deu dois saltos de alegria apenas viu Mendonça, chegando a tocar-lhe o estômago com as patas dianteiras. 

— Parece que Miss Dollar ficou com boas recordações suas, disse D. Antônia (assim se chamava a tia de Margarida). 

— Creio que sim, respondeu Mendonça brincando com a galga e olhando para Margarida. 

Justamente nesse momento entrou Andrade. 

— Só agora as reconheci, disse ele dirigindo-se às senhoras. 

Andrade apertou a mão das duas senhoras, ou antes apertou a mão de Antônia e os dedos de Margarida. 

Mendonça não contava com este incidente, e alegrou-se com ele por ter à mão o meio de tornar íntimas as relações superficiais que tinha com a família. 

— Seria bom, disse ele a Andrade, que me apresentasses a estas senhoras. — Pois não as conheces? perguntou Andrade estupefato. 

— Conhece-nos sem nos conhecer, respondeu sorrindo a velha tia; por ora quem o apresentou foi Miss Dollar. Antônia referiu a Andrade a perda e o achado da cadelinha. 

— Pois, nesse caso, respondeu Andrade, apresento-o já. 

Feita a apresentação oficial, o caixeiro trouxe a Margarida os objetos que ela havia comprado, e as duas senhoras despediram-se dos rapazes pedindo-lhes que as fossem ver. 

Não citei nenhuma palavra de Margarida no diálogo acima transcrito, porque, a falar verdade, a moça só proferiu duas palavras a cada um dos rapazes. 

— Passe bem, disse-lhes ela dando as pontas dos dedos e saindo para entrar no carro. 

Ficando sós, saíram também os dois rapazes e seguiram pela Rua do Ouvidor acima, ambos calados. Mendonça pensava em Margarida; Andrade pensava nos meios de entrar na confidência de Mendonça. A vaidade tem mil formas de manifestar-se como o fabuloso Proteu. A vaidade de Andrade era ser confidente dos outros; parecia-lhe assim obter da confiança aquilo que só alcançava da indiscrição. Não lhe foi difícil apanhar o segredo de Mendonça; antes de chegar à esquina da Rua dos Ourives já Andrade sabia de tudo. 

— Compreendes agora, disse Mendonça, que eu preciso ir à casa dela; tenho necessidade de vê-la; quero ver se consigo... Mendonça estacou. 

— Acaba! disse Andrade; se consegues ser amado. Por que não? Mas desde já te digo que não será fácil. 

— Por quê? 

— Margarida tem rejeitado cinco casamentos. 

— Naturalmente não amava os pretendentes, disse Mendonça com o ar de um geômetra que acha uma solução. 

— Amava apaixonadamente o primeiro, respondeu Andrade, e não era indiferente ao último. 

— Houve naturalmente intriga. 

— Também não. Admiras-te? É o que me acontece. É uma rapariga esquisita. Se te achas com força de ser o Colombo daquele mundo, lança-te ao mar com a armada; mas toma cuidado com a revolta das paixões, que são os ferozes marujos destas navegações de descoberta. 

Entusiasmado com esta alusão, histórica debaixo da forma de alegoria, Andrade olhou para Mendonça, que, desta vez entregue ao pensamento da moça, não atendeu à frase do amigo. Andrade contentou-se com o seu próprio sufrágio, e sorriu com o mesmo ar de satisfação que deve ter um poeta quando escreve o último verso de um poema.


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Leia também:


Contos Fluminenses: Miss Dollar, Capítulo Três 

Contos Fluminenses: Miss Dollar, Capítulo Cinco


Texto-fonte: Obra Completa, Machado de Assis, vol. II, Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994. Publicado originalmente pela Editora Garnier, Rio de Janeiro, em 1870.



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