sexta-feira, 27 de janeiro de 2017

Gente Pobre - 04. Não tem vergonha - Dostoiévski

Fiódor Dostoiévski


04.




9 de abril


Prezado Makar Alexeievitch


Não tem vergonha, meu bom amigo e protetor, de albergar no seu cérebro tais ideias? Sente-se deveras ofendido? Ai! Sou, por vezes, tão irrefletida nas minhas apreciações! Mas desta, pode crer, nem sequer pensei que o senhor pudesse ver nas minhas palavras tom de zombaria. Fique certo de que nunca seria capaz de brincar com a sua idade ou o seu caráter. A culpada de tudo foi a minha cabecinha oca, ou, para melhor dizer, o facto de me aborrecer horrivelmente... E quando o tédio se apossa de nós, de que não somos capazes para conseguirmos combatê-lo? 

Para lhe falar com franqueza, ao ler a sua carta pareceu-me também ver nela um tonzinho de brincadeira; mas agora sinto-me deveras penalizada ao pensar que o senhor estará zangado comigo. Não, meu leal amigo e protetor, será injusto se me julgar, por um momento que seja, insensível e ingrata. Sei apreciar bem tudo o que fez por mim, protegendo-me do ódio e da perseguição de homens abomináveis. hei de sempre pedir a Deus por si, e se Ele ouvir as minhas orações, o senhor será absolutamente feliz. 

Estou hoje muito doente. Ora sinto arrepios de frio, ora um calor que parece abrasar-me, e Fédora mostra-se inquieta com o meu estado. Quanto aos escrúpulos que demonstra em visitar-me, julgo-os destituídos de fundamento. Que importam os outros? O senhor é nosso amigo, e é quanto basta. 

Adeus, Makar Alexeievitch. Não tenho mais que lhe escrever, e mesmo não me seria possível prosseguir; estou muito doente. Mais uma vez lhe peço que não se zangue comigo e creia no respeito e afeto inalteráveis da sua dedicada e agradecida.



Bárbara Dobresselof





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Esse é o tipo de livro que modifica algo na gente. “Pobre gente” foi o primeiro romance de Dostoievski, começou a escrever em 1844 e terminou no ano seguinte. O personagem Makar Dévushkin, um auxiliar administrativo que leva trinta anos copiando documentos, mora numa pensão humilde, seu pequeno quarto fica ao lado da cozinha, é o que pode pagar com o seu salário também minúsculo. O frio e a frieza de uma sociedade que ignora os pobres. Crítica social contundente, comendo pelas beiradas narrativas. Segundo alguns historiadores, uma das obras que mandou o autor para a cadeia siberiana. Eram os 25 anos de um gênio então já se apurando na escrita, despertando assim, para sentir seu tempo e as humilhações da época, desesperos; um olhar sobre todas as coisas da sofrida gente. Triste narrativa pungente da condição humana em torno desses dois personagens, como vítimas de fatalidades da vida numa sociedade onde poucos conseguem realmente sair do ramerão, e onde muitos se movem numa crueldade austera entre si, forçada pelas inóspitas condições em que vivem. Makar e Varenka vivem um amor idílico ensombrado pelo que os circunda (Makar é muito mais velho que Varenka), agravando as suas próprias condições a um nível desesperador e quase doentio, mas sempre com alguma perspectiva de esperança fundadas em ilusões muitas das vezes patéticas, algo falsamente ingênuas, ilustrativas, no entanto, ao alcance do coração humano que tudo pode sonhar, sem se importar com as verdadeiras condições em que se encontra, principalmente nessas condições por assim dizer desprezíveis.


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Fiódor Dostoiévski
GENTE POBRE
Título original: Bednye Lyudi (1846)
Tradução anônima 2014 © Centaur Editions
centaur.editions@gmail.com


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