quinta-feira, 12 de agosto de 2021

Sarau... Mulheres: História do lagarto que tinha o costume de jantar suas mulheres (Eduardo Galeano)

Mulheres




Eduardo Galeano


05.

HISTÓRIA DO LAGARTO QUE TINHA O COSTUME DE JANTAR SUAS MULHERES



Na margem do rio, oculta pelos juncos, uma mulher está lendo.

Era uma vez, conta o livro, um senhor de vasto senhorio. Tudo pertencia a ele: a aldeia de Lucanamarca e o de mais para cá e o de mais para lá, os animais marcados e os não marcados, as pessoas mansas e as zangadas, tudo: o cercado e o baldio, o seco e o molhado, o que tinha memória e o que tinha esquecimento.

Mas aquele dono de tudo não tinha herdeiro. Sua mulher rezava todos os dias mil orações, suplicando a graça de um filho, e todas as noites acendia mil velas.

Deus estava cansado dos rogos daquela chata, que pedia o que Ele não tinha querido dar. E finalmente, para não ter de continuar escutando, ou por divina misericórdia, fez o milagre. E chegou a alegria do lar.

O menino tinha cara de gente e corpo de lagarto.

Com o tempo o menino falou, mas caminhava se arrastando sobre a barriga. Os melhores professores de Ayacucho ensinaram o menino a ler, mas seus dedos feito garras não conseguiam escrever.

Aos dezoito anos, pediu mulher.

Seu opulento pai conseguiu uma para ele; e com grande pompa foi celebrado o casamento, na casa do padre.

Na primeira noite, o lagarto lançou-se sobre sua esposa e devorou-a. Quando o sol despontou, no leito nupcial havia apenas um viúvo dormindo, rodeado de ossinhos.

E depois o lagarto exigiu outra mulher. E houve novo casamento, e nova devoração. E o glutão precisou de mais uma. E mais.

Noivas, era o que não faltava. Nas casas pobres, sempre havia alguma filha sobrando.

Com a barriga acariciada pela água do rio, Dulcídio dorme a sesta. Quando abre um olho, vê a mulher. Ela está lendo. Ele nunca havia visto, na vida, uma mulher de óculos.

Dulcídio aproxima o nariz:

O que você está lendo? Ela afasta o livro e olha para ele, sem susto, e diz:

Lendas.

Lendas?

Velhas vozes.

E para que servem?

Ela sacode os ombros:

Fazem companhia.

Essa mulher não parece da serra, nem da selva, nem do litoral.

Eu também sei ler – diz Dulcídio.

Ela fecha o livro e vira a cara.

Quando Dulcídio pergunta quem é e de onde veio, a mulher desaparece.



No domingo seguinte, quando Dulcídio desperta da sesta, ela está lá. Sem livro, mas de óculos.

Sentada na areia fininha, os pés guardados debaixo de sete saias de balão, está estando, estando desde sempre; e assim olha para aquele intruso que lagarteia ao sol.

Dulcídio põe as coisas em seu devido lugar. Ergue uma pata unhada e passeia essa pata sobre o horizonte de montanhas azuis:

Até onde chegam os olhos, até onde chegam os pés. Sou eu o dono. De tudo.

Ela nem olha para o vasto reino, e permanece calada. Silêncio, muito.

O herdeiro insiste. As ovelhinhas e os índios estão ao seu mandar. Ele é amo de todas estas léguas de terra e de água e de ar, e também do pedaço de areia onde ela está sentada.

Você pode: eu deixo – concede.

Ela começa a fazer sua longa trança de cabelo negro dançar, como quem ouve chover, e o réptil esclarece que é rico mas humilde, estudioso e trabalhador, e sobretudo um cavalheiro com intenções de formar um lar, mas o destino cruel quer que ele termine sempre viúvo.

Inclinando a cabeça ela medita sobre esse mistério. Dulcídio vacila. Sussurra:

Posso pedir um favor?

E chega perto, oferecendo o lombo.

Coça as minhas costas – suplica –, porque eu não alcanço.

Ela estende a mão, acaricia a couraça ferruginosa e elogia:

Macio feito de seda.

Dulcídio estremece e fecha os olhos e abre a boca e ergue a cauda e sente o que nunca havia sentido.

Mas quando vira a cabeça, ela não está mais ali.

Arrastando-se a toda através dos juncos, procura por tudo que é canto. Nada.

No domingo seguinte, ela não vai à margem do rio. E nem no outro, nem no outro.

Desde que a viu, a vê. E não vê mais nada.

O dormilão não dorme, o comilão não come. A alcova de Dulcídio já não é o feliz santuário onde repousava amparado por suas finadas esposas. As fotos delas continuam ali, cobrindo as paredes de alto a baixo, com suas molduras em forma de coração e suas grinaldas de jasmins; mas Dulcídio, condenado à solidão, jaz afundado nas cobertas e na melancolia. Médicos e curandeiros acodem vindos de longe; e nenhum consegue nada diante do voo da febre e da queda de todo o resto.

Grudado no rádio de pilhas que comprou de um turco que passou por ali, Dulcídio pena suas noites e seus dias suspirando e escutando canções fora de moda. Os pais, desesperados, olham só para vê-lo murchar. Ele já não exige mais mulher como antes:

Estou com fome.

Agora, suplica:

Sou um mendigo do amor, e com voz quebrada e alarmante tendência à rima, sussurra homenagens de agonia à dama que lhe roubou a calma e a alma.

Todos os serviçais se lançam na captura. Os perseguidores removem céus e terras; mas não sabem nem mesmo o nome da evaporada, e ninguém jamais viu mulher de óculos naqueles vales, nem fora deles.

Na tarde de um domingo, Dulcídio tem um palpite. Levanta-se a duras penas e, do jeito que consegue, se arrasta até a margem do rio.

E lá está ela.

Banhado em lágrimas, Dulcídio declara seu amor à menina desdenhosa e esquiva, confessa que de sede estou morrendo pelo teu mel, sozinho no caminho desse mundo cruel, te esperando, te lembrando, água da minha mágoa: – Te ofereço meu anel.



E chega o casamento. Todo mundo agradecido, porque fazia tempo que a aldeia não tinha festa, e ali Dulcídio é o único que se casa. O padre faz preço de ocasião, por se tratar de cliente tão especial.

Gira a viola ao redor dos noivos e tocam glória a harpa e os violinos. Brinda-se pelo amor eterno dos felizes pombinhos, e rios de ponche correm debaixo dos ramos de flores.

Dulcídio estreia pele nova, avermelhada no lombo e verde-azulada na cauda prodigiosa.



E quando os dois ficam enfim a sós, e chega a hora da verdade, ele oferece:

Te dou meu coração. Pisa-o sem compaixão.

Com um sopro ela apaga a vela, deixa cair seu vestido de noiva, rendas borbulhantes, tira lentamente os óculos e diz:

Larga a mão de ser babaca. Deixa de besteira.

Num puxão o desembainha e joga a pele dele no chão. E abraça seu corpo nu, e faz arder.

Depois, Dulcídio dorme profundamente, encolhido contra aquela mulher, e sonha pela primeira vez na vida.



Ela o come adormecido. Vai engolindo-o aos poucos, da cauda até a cabeça, sem ruído e sem mastigar forte, cuidadosa para não despertá-lo, para que ele não leve uma impressão ruim.


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Galeano, Eduardo, 1940-
Mulheres / Eduardo Galeano; tradução de Eric Nepomuceno.
1. Ficção uruguaia- Crônicas. I. Título. II. Série.


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